Mário Avelar

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO11

MÁRIO AVELAR

Peregrinação do olhar
A Descida da Cruz, MÁRIO RITA

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Seria um sinal de humildade
o sapato que tanto me perturbava,
pudor do artista face ao silêncio

de si emanando naquelas linhas
feitas corpo e carne, não um ícone?
Seria um sinal de humildade?

Era ele que descia para nós
e, ao descer, a nós erguia nesse
pudor do artista face ao silêncio.

Descendo, vindo ao meu encontro,
acercando-se de mim no deserto...
Seria um sinal de humildade,
pudor do artista face ao silêncio?

Acercando-se de mim no deserto,
neste deserto por onde errante persistia.
Eis-me, aqui, à espera do nada.

Enquanto tudo se desvanecia,
desvendei linhas feitas corpo e carne
acercando-se de mim no deserto,

flutuando no espaço da tela,
elevam-se ignorando a cruz.
Eis-me, aqui, à espera do nada,

tão frágil, por elas fortalecido...
Meus olhos contemplando o mistério
acercando-se de mim no deserto.
Eis-me, aqui, à espera do nada.

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Os meus olhos contemplando o mistério...
Um sopro... um afago... balbuciei então:
a vossa face, Senhor, eu procuro.

Não te abandonarei, sussurrou.
Fechei, por um instante, os olhos...
meus olhos contemplando o mistério,

insinuando nas linhas
a nossa precariedade.
A vossa face, Senhor, eu procuro.

Não penses ser óbvio este mundo.
Atenta nos detalhes, na névoa, segredou ante
meus olhos contemplando o mistério...
a vossa face, Senhor, eu procuro.

Atenta nos detalhes, na névoa, segredou, ante
a mancha negra onde, suspensos no ar,
os corpos, de um só corpo, que a nós se concedem.

Esfumando-se, mergulhando como a ave
no abismo do azul.
Atenta nos detalhes, na névoa, segredou, ante

suas obras... a árvore agitando-se
na rua, um cão mais ao longe, sons...
os corpos, de um só corpo, que a nós se concedem.

E sobre um escadote, por um instante,
repousou... suspenso num gesto fluindo.
Atenta nos detalhes, na névoa, segredou, ante
os corpos, de um só corpo, que a nós se concedem.

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Repousou... suspenso num gesto fluindo,
até afagar o solo, deixando antever
um braço apenas, insinuando o corpo

sob o pudor do sudário. Talvez
dissesse: saúdas anjos sem o saberes?
Repousou... suspenso num gesto fluindo.

Se a queda da luz e da sombra é
a sintaxe da pintura, então
um braço apenas, insinuando o corpo,

interpelava os nossos mais
íntimos, remotos cenários. Por fim,
repousou... suspenso num gesto fluindo...
um braço apenas, insinuando o corpo.

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Íntimos, remotos cenários. Por fim,
o coração no afago de Deus.
O poeta, o pintor, o teólogo

miravam a abundância,
neste lugar, neste instante.
Íntimos, remotos cenários. Por fim,

a presença de Deus santificava
este lugar tão banal, estes rostos:
o poeta, o pintor, o teólogo.

Sua presença era também
um desafio para algo revelar,
íntimos, remotos cenários, por fim...
o poeta, o pintor, o teólogo.

Um desafio para algo revelar,
Desígnios ao afagar do chão pela tela.
O vento sopra onde quer.

Ao fechar os olhos, pobre Zaqueu
na minha pequenez, ouvi a sua voz,
um desafio para algo revelar...

Veredas? Amontoados, os sapatos
diziam o caminho percorrido:
o vento sopra onde quer,

ouves a sua voz, mas não sabes
donde vem nem para onde vai.
Um desafio para algo revelar?
O vento sopra onde quer.

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Outrora este lugar acolhera a cruz.
Assim o vira em casa do pintor.
Ali esteve quem é maior do que Jonas.

Quem me vai salvar partira já,
deixando um vestígio apenas, um véu?
Outrora este lugar acolhera a cruz.

Resta a suavidade do amor e a
plenitude da graça, pois
ali esteve quem é maior do que Jonas.

Sua presença era também
um convite à memória, pois
outrora este lugar acolhera a cruz:
ali esteve quem é maior do que Jonas.

Um convite à memória, pois,
em toda a parte por onde andaste,
estive contigo, silent, surrendered,

calm, and still. Open to the word of God,
para aqueles que habitavam nas sombras.
Um convite à memória, pois

da morte uma luz se levantou...
no tempo suspenso do Tintoretto,
estive contigo, silent, surrendered,

Balbuciei, então, a minha prece:
que a sua luz dissipe as trevas.
Um convite à memória, pois
estive contigo, silent, surrendered.

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Que a sua luz dissipe as trevas,
porque a noite teme esta luz.
Que tenho eu para lhe dizer,

ainda que não o veja?
Não sendo o vazio uma ausência –
como só, na praça, Francisco,

entre a perda e a esperança,
insistiu em nos lembrar:
que a sua luz dissipe as trevas.

Que tenho eu para lhe pedir?
Que tenho eu para lhe dizer,
                                                         senão esta alegria que me toma
                                                                                                                           ao ouvir o seu nome?