HUGO PINTO SANTOS
DES EN CANTO
Mario Martín Gijón
Relógio D’Água, 2015.
O tipo de elegância destes poemas é anterior ao embaraço das convenções e das mesuras. Como muitas das peças pelas quais os poemas passam. Os poemas de Mirleos talvez não sejam sobre as peças. Serão entre as peças, não sobre. Ou então sob sobre, para evocar o título do primeiro livro do autor. Assim como não poderíamos pedir a um cidadão da Grécia Antiga que se conformasse ao nosso tipo de socialização, estes poemas não são alienígenas; simplesmente, não se conformam com aquilo a que se convencionou chamar écfrase, por exemplo. O registo é mais da anotação do que da erudição. Como se o poeta fosse um viajante que pára e aponta. O poeta não é um arquivista. A poesia de João Miguel sempre se afigurou um acto físico. Não deve ser extrapolação. No prefácio de O Roubador de Água (que se chama, significativamente, «Servindo ou não de prefácio»), podemos ler:
Se quisermos aprender um pouco acerca das coisas poéticas, torna-se necessário saber dos processos físicos. A menos que nos queiramos reduzir ao ponto de vista metafísico, o que não deixaria de ser, em extremo, agradável. Mas as coisas da poesia não são metafísica, por isso tenho de ater-me, por pouco que saiba, ao sítio do mundo que me foi dado.
A poesia é um saber vivo, quase biológico, uma maturação feliz, um acontecer devido ao desenvolvimento do corpo e do espírito.
Mas estes poemas não têm uma relação clara com as obras de arte? Sim, têm. Mas o que mais importa é o que nos dizia este passo de O Roubador de Água. Há uma respiração, uma biologia, nestes poemas, que os afasta de qualquer afectação.
Não é a primeira vez que um museu desperta em João Miguel Fernandes Jorge a escrita de um livro de poemas. Podíamos falar de Museu das Janelas Verdes, de 2002. Mas também, de forma um pouco diferente, de Jardim das Amoreiras, de 2003. O primeiro foi dedicado ao Museu Nacional de Arte Antiga; o segundo fixava-se numa série de estudos de Vieira da Silva. Mas a relação de João Miguel Fernandes Jorge com as artes é antiga e muito profunda. Seria desavisado enumerar todos os exemplos, mas pode referir-se que o autor escreveu cerca de dez livros sobre arte, como Paisagem Com Muitas Figuras (1984), O Que Resta da Manhã (1990) ou Processo em Arte (2008). E há mesmo livros seus em que é impossível encontrar uma fronteira definida entre a arte e, por exemplo, a ficção – É o caso de A Flor Da Rosa (2000), ou de O Próximo Outono, 2012. E é claro que a poesia de João Miguel Fernandes Jorge inicia permanentes diálogos com outras artes que não a escrita. É o caso também do cinema, com um livro como A Palavra (2007) ou Pickpocket (2009).
Em Mirleos, o autor explica, de forma lapidar, a origem do título: «Mirleos, palavra composta de dois elementos latinos: mirus, com o sentido de maravilhoso ou surpreendente, e letum, que significa ruína. Admiráveis ruínas será um dos seus sentidos.» Dificilmente poderia haver melhor ponto de partida para entender este livro. Trata-se, de facto, de ruínas que não podemos deixar de admirar. Não é por medo do ridículo que se deixa de dizer que estas peças regressam à vida nos poemas de João Miguel Fernandes Jorge. É por não querer ser injusto para com a verdade desta poesia. Porque é da verdade que se ocupam estes poemas. De uma verdade maior, que toca a questão da fé, mas também a verdade da vida e a da própria arte. Não é uma ilação excessiva. De resto, há um poema («Retrato de Agripina-a-Antiga») em que se lê: «Da vida espero o mesmo que/da poesia da morte – depósito de restos, arqueologia.»
Nietzsche dizia algures experimentar uma sensação desagradável, de irritação e absurdo, ao entrar numa biblioteca. Podia dizer-se o mesmo em certas ideias de museu, que, felizmente, não estão aqui presentes. A vida do museu em relação com Mirleos – Museu Machado de Castro – está em evidência no facto de ter suscitado um livro de João Miguel Fernandes Jorge. É uma das provas da vitalidade de um espaço.
A «deriva da alma» que lemos no poema oferecido ao «Cristo Negro» não será ela uma espécie de emblema da poesia de João Miguel Fernandes Jorge? A imagem do crucificado é um culminar trágico e especialmente simbólico de uma via de padecimento e de algo que é o oposto da placidez. Um coração irrequieto e atento ao mundo, como aquele que pulsa nos versos de JMFJ. É sabido, afinal, que Jesus trouxe a espada.
Os corpos e rostos destes seres de pedra e tela têm uma ligação forte com o natural. Mas essa relação é tensa, porque os poemas não pretendem ser golpes de mágica. Sem perderem a noção de realismo, elas ganham tanta intensidade que nunca são o objecto de uma hagiografia. Quem escreve do «morrão negro/ dos sentidos» não está preso ao servilismo da representação, nem à vertigem do sem-sentido.
Quando escreve sobre São João Baptista, um calcário de João de Ruão, João Miguel Fernandes Jorge não esquece o Precursor. Mas em vez de recriar a narrativa do primo de Cristo, centra o seu olhar na figura de Salomé. Naquela palidez, na dança da princesa, parece-nos voltar a ler o Oscar Wilde de Salomé.
A liberdade que JMFJ se autoriza, ao ficcionar uma primeira pessoa, como no poema «Martírio de São Bartolomeu» é a de alguém que pode correr o risco desse dramatismo – «À noite afastava-me do acampamento/ bandos de cães, famintos, farejavam,/ colavam-se às minhas pernas/ deitavam-se à minha beira, lambiam-me as/ mãos, a cara/ um restolhar de folhas, de ramos secos». Essa primeira pessoa vai estar presente também no «Tríptico da Paixão de Cristo» – «Aqui fiquei. Não regressei ao seio de meu Pai. Não/ quero contar- -lhe o que vejo». Este é um «Cristo de trapo», atenção. Porque foi gasto pelo mundo, porque é um Jesus que passou por essa rugosidade que é a da vida. Também o tambor (no poema «Camilo Pessanha») é um «sino do trapo». Há aqui a marca do mundo. Nunca é só de arte que estamos a falar.
E quando não é a primeira pessoa, é a intromissão do contemporâneo. No «Tríptico da Aparição de Cristo à Virgem », por exemplo: «Lá fora,/ cordas/ polícia jornalistas fotógrafos/ os cornos do acaso/ filmam a folia/ acrisolado calor/ aparece em demorada visão.»
Mas o que quer isto dizer? O que é que o poeta consegue fazer com isto? Primeiro, se calhar seria melhor perguntar como chegou ele aqui. Chegou, talvez, através de uma atitude não reverencial. Isto é: há uma atenção respeitosa, mas não há uma atitude acabrunhada e de superstição. O contacto com a matéria da fé – como se pode ver em todo o livro – é feito de uma forma corajosa, ascendente, não num espírito cabisbaixo. Porque é de aventura – de deriva, uma vez mais –, que se trata. Não falta aqui o acaso. Por exemplo, no poema «Contador», é assim, ao acaso, que se abre uma gaveta, «qualquer gaveta», aliás, e «às cegas».
No poema «Retrato de Agripina-a-Antiga», «o chão intacto/ da memória» não é contraditado pela «sabedoria, montículo de velhas ruínas». Porque a arte deste poeta é uma arte da memória – há um poema que fala da «estirpe da memória», e outro que sublinha a «carne da memória» –, mas esta poesia não hesita em caminhar por entre ruínas. Porque essas ruínas (as mesmas que estão presentes no título) são o sinal vivo da nossa passagem por aqui, e da vida do mundo.
E porque, como diz João Miguel Fernandes Jorge, no poema «Senhora da Rosa», «o belo incendeia», contemplemos o incêndio destas ruínas admiráveis.