Pere Ferré – O soneto em Nuno Júdice

Fundación Ortega MuñozEnsayo, SO11

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Pere Ferré

O soneto em Nuno Júdice*

O soneto é, sem dúvida, uma das formas fixas mais vivas da criação poética ocidental. Na sua estrutura mais clássica, é composto por catorze versos decassílabos, dispostos em duas quadras e dois tercetos, com os seguintes esquemas rimáticos:

1. As duas quadras apresentam rimas interpoladas abba;

2. Nos tercetos, as combinações são mais livres, sendo as mais correntes, quando apresentam duas rimas: cdc/dcd; cdc/cdc ou dcc e quando apresentam três: cde/cde, cde/dce; cde/dec ou cde/edc.

Contudo, ao longo da sua história, o soneto foi admitindo variantes, tanto do ponto de vista da sua métrica como da sua rima. Formas hipométricas (o sonetilho) ou hipermétricas (o soneto alexandrino) e uma rica variedade de alternativas, foram marcando a vida desta forma poética que, contudo, nunca perdeu o seu invulgar prestígio literário.

Mucho se ha discutido y se sigue discutiendo, sobre la perenne virtualidad de esta estrofa, la más lograda indudablemente de la métrica postlatina; pero todos hemos de convenir en que, lo mismo en tiempo de Petrarca que en tiempo de Carducci; lo mismo en Garcilaso que en Lugones, en Ronsard que en Apollinaire, un soneto perfecto señala el climax, no solo del arte, sino también de la inspiración poética. Todos los miles y miles de sonetos deleznables de que está plagada nuestra literatura, al igual que las demás, no pueden empañar la nitidez de un soneto de Lope, de Góngora, de Quevedo... [Díez Echarri (1970) 244-245]

Eis uma entre muitas outras citações que aqui poderia trazer à colação. É que o soneto na sua voz aparentemente «siempre igual, pero siempre nueva, siempre distinta» [Dámaso Alonso (1969) 371] continua a surpreender pelas constantes renovações que a sua estrutura permite. Da diferente colocação das rimas nas suas quadras e tercetos, provocando por vezes a ilusão de ruptura do modelo – bastará um simples jogo de rimas entre o primeiro e o segundo tercetos para transformar o soneto, aparentemente, em três quadras e um terceto – ao jogo de espelhos, simetrias, oposições, antíteses etc., e até mesmo a algumas infracções – o soneto aberto, por amputação ou acrescento de alguns versos – , tudo isto fez e fará dele um modelo sempre actual, apto a figurar como veículo da expressão poética de qualquer tempo.

Por isso, na poesia contemporânea, pese embora o carácter iconoclasta das vanguardas, com as suas respectivas consequências, o soneto não deixou de comparecer como aquilo que sempre foi: uma obra maior da expressão literária.

Nuno Júdice, após a sua irrupção, no panorama literário português, em 1972, com um livro de «uma exuberância verbal e imagética nos limites, sempre sabiamente respeitados, do descontrolo e do arrebatamento» [Mega Ferreira (2005)]2 só nos dará a conhecer um soneto seu, em 1985, numa fase em que, como lucidamente assinalou Teresa Almeida, criara «um diálogo mais continuado com o imaginário simbolista e decadente» e em que «os poemas longos vão dando lugar a textos mais breves que indiciam um processo de condensação, a que se junta uma tentativa de explorar algumas formas fixas como, por exemplo, o soneto.» [Almeida (2000) 37-38]. Momento este em que, segundo Mega Ferreira, se observa uma cada vez maior «decantação de motivos reencontrados na tradição literária e capazes de inspirar uma poética visivelmente interessada na exploração das analogias entre o mundo sensível e a respiração da unidade significante que é o poema.» [Mega Ferreira (2005)] Por outras palavras: ultrapassada a fase inicial da sua poesia, amadurecido o seu percurso poético, pode inaugurar uma nova etapa e, assim, dar início ao verdadeiro desafio de dialogar «com textos de todas as épocas, pertencentes a diferentes escolas e a variadas línguas.» [Almeida (2000) 44], incluindo formas fixadas pela tradição, como o soneto.

Dizia, então, que só em 1985 editou o seu primeiro soneto. Fê-lo, precisamente, em Lira de Líquen, quase no fim do livro, e com o sugestivo título de «Nocturno» [Júdice (2000) 291], recorrendo, no âmbito dos seus sonetos, a uma invulgar estrutura rimática (aaaa/bbbb/ ccc/cdd), pese embora com o recurso a uma técnica que lhe será muito cara: a amplificação do primeiro terceto, por via da rima, deixando isolados os últimos dois versos, como se de um dístico se tratasse.

Desde essa data até 1999, Júdice recorrerá apenas 11 vezes ao soneto: Enumeração de Sombras (1989), Meditação sobre Ruínas (1994), O Movimento do Mundo (1996), A Fonte da Vida (1997) e Teoria Geral do Sentimento (1999) são as obras onde figuram sonetos, sempre 1, excepto os 5 presentes no livro de 1997 e os 2 de 1999. Assim, se a parcimoniosa incursão neste género, entre 1985 e 1996, parece romper-se com a publicação de cinco sonetos em 1997, o ano de 1998 assinala um recuo aparente. Aparente por duas razões: a primeira diz respeito ao hábito de quase nunca datar os seus poemas, pelo que não é possível garantir que a divulgação dos seus textos respeite a cronologia da sua génese; a segunda, porque, como sabemos, em 2000, em Rimas e Contas, dará à estampa 24 sonetos, num livro em que, como escreveu Teresa Almeida, se encontra plasmada uma clara «contensão clássica» [Almeida (2000) 43]. Após esta data, voltará a uma certa contenção sonetística: três em Cartografia de Emoções (2001), cinco em O Estado dos Campos (2003) e Geometria Variável (2005) e um em A Matéria da Poesia (2008). Finalmente, ainda em 2008, mas escrito entre 25 e 31 de Dezembro de 2004, «num caderno publicado pela Presidência da República, que me foi oferecido pela Margarida Lages no Natal de 2004, com uma fotografia de Bernardino Machado na capa», surge o Breve Sentimento do Eterno, obra que, prossegue o Autor, foi conquistando «uma consistência de livro que decorre do tempo em que o escrevi – uma semana – contrariamente a outros que foram, ou vão sendo escritos ao acaso de viagens e circunstâncias» [Júdice (2008) 11-12], integralmente composta por sonetos – quarenta e um! – isto é, quase tantos como os publicados até então. Números, simples números, os quais, sem os querer transformar em dogma, não deverão ser ignorados.

Tendo em conta estas cifras, conclui-se que Júdice apenas recorre ao soneto de forma muito esporádica e em momentos muito precisos. Gostaria, no entanto, de fazer notar que até à aparição de Breve Sentimento do Eterno – que por comodidade designarei como primeira e segunda etapas – o poeta ensaia um conjunto de potencialidades inerentes a esta forma fixa não se afastando, com raríssimas excepções, dos limites impostos pela tradição. Não deixa, também, de ser curiosa a recorrência ao título «Soneto» ou mesmo «Soneto canónico », «Soneto ainda Clássico», nos seus primeiros livros (6 ocorrências em 11 poemas), começando a abandonar este tipo de designações no livro Rimas e Contas no qual, embora expressivamente iniciado com o importantíssimo «Soneto contando-se», apenas voltará a convocar o lexema soneto para o título três vezes mais num total de 37 poemas!3 Parece, pois, nesta primeira etapa, sentir necessidade Nuno Júdice em reiterar que aquilo que escreve é um soneto, pese embora, como dizia, o quase total respeito pelo modelo; coisa que, paradoxalmente, deixará de fazer quando, com cirúrgicas intervenções, se for distanciando das mais canónicas regras do soneto, muito especialmente na sua terceira e última etapa.

Vejamos: se o seu acto inaugural foi assinalado com um «Nocturno», um não menos sugestivo «Caos» revelar- -nos-á as razões de uma escolha. Eis o poema:

Cruzados ao meio, entre a ave e serpente,
os dois céus tocam-se: o primeiro, escuro
e frio, estende-se em arco para ocidente
onde a noite o detém como um sinistro muro;
o segundo, brando e luminoso, vai subindo
como um caule de oriente para o céu estranho
da manhã águas em círculos de moinho fluindo
para obscuras nuvens juntas em rebanho;
e ambos, fixos numa antiquíssima extremidade, ardem
nesse contacto frágil que os reúne
na ânsia remota de uma serena eternidade:
para logo se dividirem, opostos e contrários.
Nessa vaga fronteira o braço divino os pune
no íntimo sofrimento de êxtases solitários.
[Júdice (2000) 313]

 Júdice escondeu a forma anulando graficamente os espaços inter-estróficos, contudo o soneto está lá: a rima – uma das por ele mais utilizadas – abab cdcd efe gfg –, revela-nos a presença de duas quadras e de dois tercetos. Lendo o poema entenderemos a razão pela qual o seu autor recorreu a esta forma: os dois céus serão separados pelas duas quadras («o primeiro, escuro/e frio», na primeira; «O segundo, brando e luminoso, vai subindo», na segunda) para, num movimento de recuo, de novo se juntarem no primeiro terceto («E ambos, fixos numa antiquíssima extremidade, ardem»). Finalmente, no último terceto, de novo a separação: «Para logo se dividirem, opostos e contrários.», resolvendo-se, assim, o soneto nesta última estrofe. O movimento de vai e vem, aprendido do engenho barroco, é, com mestria, aplicado por Júdice neste poema.

Interessantíssimo é também o soneto «Se numa noite de Natal, a prostituta», publicado em A Fonte da Vida. Mais uma vez, o modelo é respeitado, seguindo, neste caso, o modelo rimático do soneto francês do século XIX – mediante artifício métrico o primeiro verso do último terceto é atraído pelo segundo do primeiro terceto, transformando- se o poema num conjunto de três quadras e um dístico, com a rima: abab cdcd /efe fgg (=efef gg). Mas se aqui convoco este exemplo, não o faço simplesmente por esta razão. O que torna interessante este poema é a discreta infracção insinuada pelo poeta. Este soneto, como não poderia deixar de ser – ou até podia – tem catorze versos. Contudo, poderá ter quinze – e desta forma beliscar o cânone – se considerarmos o título como o seu primeiro verso:

Se, numa noite de Natal, a prostituta

vagueia, no passeio da avenida deserta,
procurando o encontro que não se dá,
e fixa os olhos na luz de uma lâmpada incerta
como se a manhã estivesse ali, agora e já,
[Júdice (2000) 812]

O Autor teve, contudo, o cuidado de não maiuscular a palavra inicial do primeiro verso («vagueia»), reforçando a ideia de que o título é o início do soneto, o seu incipit : aliás, desvelando-nos o mistério e dizendo-nos, inequivocamente, quem vagueia no passeio da avenida deserta.

Os sonetos, para além de observarem, normalmente, a exigência de um só assunto, obrigam a uma clara separação de águas entre a primeira parte (as quadras) e a segunda (os tercetos). Na primeira o assunto é exposto, na segunda, resolvido. Olhemos, então, para o seguinte «Soneto», publicado em A Fonte da Vida :

Gosto de atravessar o teu corpo
por dentro de palavras sem som,
de flutuar no indeciso mar morto
sem a cinza imprecisa de um tom.
Amo cada uma das tuas frases
derramadas no chão de madeira,
perdendo-se entre o pó de lilases,
na luz triste que desmancha a feira.
Vamos então para um outro lado:
onde o mundo nos dê as florestas
sem centros nem clareiras abertas.
A cama de pano desmanchado,
esse jogo branco a que te prestas
- mulher de rosto e formas incertas.
[Júdice (2000) 860]

O verbo, na primeira pessoa, inicia ambas as quadras. Eu «gosto de atravessar o teu corpo»; Eu «amo cada uma das tuas frases». Mas, de repente, ao abrir-se o terceto, muda a pessoa transformando-se na primeira do plural Nós «vamos então para um outro lado», que lado? Que lugar? A resposta foi dada no último terceto:

A cama de pano desmanchado,
esse jogo branco a que te prestas
- mulher de rosto e formas incertas

Mas, em Rimas e Contas, início daquela a que chamei segunda etapa, Nuno Júdice parece, finalmente, abraçar o soneto como uma das suas formas favoritas. Talvez as Rime de Petrarca, ou diálogo com Camões e Florbela Espanca, no esplêndido soneto «O conceito de metáfora» expliquem esta inflexão:

Transforma-se a imagem no objecto visto:
amada no ramo pousada, ave e memória,
peças espalhadas num lugar sem história
que o poema arruma sem nada ter previsto.

Deito essa imagem num velho travesseiro,
toco-a com os dedos de um verso antigo
e digo-lhe: «Amo-te ainda; vem comigo!»
quando ela me oferece o seu corpo inteiro.

Nada do que aqui está tem um fundo
na realidade em que nasce esta linguagem
o verso engana em cada imagem,

e só dentro dele faz sentido o mundo
por isso te escondo aqui, figura desejada,
e tudo o resto pouco mais é do que nada.
[Júdice (2000) 1087]

Como dizia, talvez as Rime expliquem esta inflexão, do mesmo modo que, através da sua arte, presta contas com a tradição, consigo próprio e com a própria Poesia. Não é, pois, por mero acaso que abre este livro com um título como «Soneto contando-se».

Bastas vezes a reflexão sobre o literário foi tema central da própria literatura. Do mesmo modo, o soneto prestou-se a uma reflexividade vestida das roupagens mais sérias ou burlescas. Lope de Vega não fugiu à regra e legou-nos, há quase quatro séculos, esta pequena jóia, inserida na sua obra La niña de plata (1613):

Un soneto me manda hacer Violante
y en mi vida me he visto en tal aprieto.
Catorce versos dicen que es soneto,
burla burlando ya van três delante.

Yo pensé que no hallara consonante
y estoy a la mitad de otro cuarteto;
mas si me veo en el primer terceto
no hay cosa en los cuartetos que me espante.

Por el primer terceto voy entrando,
y aun parece que entré con pie derecho,
pues fin con este verso le estoy dando.

Ya estoy en el segundo, y aun sospecho
que estoy los trece versos acabando:
contad si son catorce, y ya está hecho.

Com a mestria dos génios, ofereceu-nos este soneto fazendo-se, dando-nos a ilusão de que a sua criação irrompia neste preciso instante, perante o nosso olhar, fazendo-nos cúmplices, tanto da criação como da verificação de que se tratava de um soneto. A dificuldade é grande, adverte-nos. Como preencher estes catorze versos? Durante todo o soneto enfatizou os seus aspectos formais: fazer catorze versos é o seu objectivo, rimar é outra das suas obrigações («Yo pensé que no hallara consonante»). Por fim, chegado ao décimo quarto verso, reforça a nossa cumplicidade, pedindo que o julguemos, verificando se as regras formais foram cumpridas.

Lembrei-me deste exemplo quando li o poema «Soneto contando-se». Não é que nele haja uma disposição burlesca, pelo contrário, nem mesmo que Júdice nos faça juízes do seu soneto, mas porque, tal como Lope, reflecte sobre o soneto, porque tal como Lope desvenda, perante os nossos olhos, o mistério da criação. Ei-lo:

Começa o poema como sempre começa:
um verso na página ainda por encher,
de uma imagem que me surge na cabeça,
com um sentimento que se tem de dizer.

Continuo em busca de rima e ritmo,
mesmo que sem eles pudesse passar:
a poesia nasce de outro logaritmo,
e pode mesmo viver apenas do ar.

Mas está no teu corpo o seu pensamento,
com a música e o fôlego do amor.
És tu, ausente e viva, sempre, minha amada,

quem sopra entre as estrofes um doce lamento:
prazer e pranto que registo com rigor,
nos catorze versos desta forma acabada.
[Júdice (2000) 1063]

O vazio, a página em branco, comuns a toda a poesia. A imagem, a expressão do sentimento serão enquadradas pela rima e pelo ritmo, pese embora a Poesia não precise nem de rima nem de ritmo, as suas regras são outras. O mistério da Poesia não se cinge a questões formais ainda que, neste caso, «Prazer e pranto que registo com rigor / Nos catorze versos desta forma acabada.»

O Poeta esculpiu com rigor o seu soneto. As rimas abab cdcd efg efg são as mais correntes em Júdice. E, tal como Lope, coroa a sua obra, esta forma acabada (note- -se os dois sentidos que devemos dar a forma acabada: conclusão e forma fixa) nos catorze versos escritos, isto é: o seu soneto contando-se.

 

Creio que surgiu o momento de recordar algumas frases do autor sobre esta forma poética. Em primeiro lugar, recorrerei à sua «Introdução» aos Sonetos de Antero de Quental. Escreve Júdice:

É significativo que Antero sinta a necessidade de justificar «teóricamente» a opção pelo soneto, no prefácio que faz à edição dos Sonetos da edição Stenio, em 1861. Aí, ele vai buscar à tradição petrarquista e camoniana a preferência por essa forma, indo portanto ao arrepio da tendência dominante do seu tempo – um romantismo que opta pelo modelo francês do alexandrino, libertando-se do espartilho do decassílabo. Compreende-se de certo modo, que para Antero seja preferível um tipo de verso mais curto, que o obrigue a «esculpir» o pensamento, corrigindo o excesso da efusão lírica que é tão patente nas Primaveras: trata-se de uma disciplina cuja fonte reside, sem dúvida, no filósofo. Mas há, ao mesmo tempo, algo de espartano nesta atitude: é como se Antero, ao regressar à tradição, tivesse optado por pisar um terreno firme que lhe permite avançar com um passo mais seguro no nocturno território da sua poesia. É óbvio, por outro lado, que o Eu lírico confere ao poeta essa segurança, sobretudo se o ligarmos a uma forma tão consagrada na tradição como é o soneto. [Júdice (1994) 8-9]

E acrescenta: «Se, do ponto de vista formal, encontramos nele uma explícita proposta conservadora, vemos por outro lado subtis intervenções do poeta que procura uma forma, ou formas, de subverter essa tradição.» [Júdice (1994) 9].

O regresso à tradição, como forma de «avançar com um passo mais seguro no nocturno território da sua poesia» foi, sem dúvida, o caminho ensaiado, também, por Nuno Júdice, neste livro – e mais, muito mais nos que se lhe seguirão – e, ainda que, tal como em Antero, tenha optado por uma forma tão conservadora – recorde-se que neste livro imprimiu 37 sonetos – a forma, nalguns deles, começa a dar indícios do que se seguirá: por contraste, a um sonetilho chama «Soneto ainda clássico» e começa a introduzir rimas internas deixando vocábulos finais sem funções rimáticas ou, ainda, oferecendo-nos um soneto («Horizonte») sem rima.

Sei que há uma linha na perspectiva
dos teus olhos; e dobro-a, como barco
que atravessa o horizonte, descobrindo
os teus cabelos, a ilha do teu corpo,

a caminho dos antípodas. Desenho
o risco frágil que me apontas; e dou
contigo na minha cabeça, mexendo-me
nas ideias, deitando abaixo imagens

e conceitos, como quem desarruma
o quarto, procurando mapas escondidos.
Digo-te que não há nada: o meu espírito

esvazia-se quando entras por dentro dele,
e tomas conta de tudo, e tudo fica por
tua conta, na linha única dos teus olhos.
[Júdice (2000) 1097]

Voluntariamente organizado em duas quadras e dois tercetos – sem rima, este soneto corrobora a afirmação de Júdice: «a Poesia pode mesmo viver do ar.»

Para não me alongar demasiado não me deterei nos sonetos editados em Cartografia das Emoções e em O Estado dos Campos, uma vez que repetem muitas das características anotadas em Rimas e Contas, e assim, passarei a analisar, com mais pormenor, o livro escrito no Natal de 2004 e publicado em Outubro de 2008, todo ele formado por sonetos.

Recuperemos algumas das palavras de Nuno Júdice, retiradas da sua introdução a O Breve Sentimento do Eterno:

(...) tenho, por isso, uma relação difícil com a escrita, no sentido do texto manuscrito, que me lembra sempre a minha pior disciplina no liceu: os trabalhos manuais. É significativo disso que, ao escrever à mão, o que resulta é uma poesia condicionada pela tradição clássica do soneto; e isto será uma reminiscência dessas aulas em que nos punham à frente uma bilha, ou um copo, ou um objecto qualquer de formas geométricas perfeitas, para que o desenho o reproduzisse com total fidelidade. O soneto, de certo modo, tem esse lado académico: sabemos, a escrevê-lo, que há um modelo qualquer à sua frente – de Petrarca a Camões, de Mallarmé a Pessanha – que funciona como esse objecto real que se tem de copiar. [Júdice (2008) 11]

O poema manuscrito – ao contrário do composto pela mediação da máquina – de forma quase determinística, provoca por automatismo a cópia de uma forma, a imitação de um modelo feita com o maior rigor possível; o poema manuscrito, segundo o seu próprio testemunho, escolhe a forma fixa do soneto.

Este poeta contemporâneo discorre aqui sobre a sua utilização do soneto, admite nesta forma ver-se condicionado, na sua criação, pelo peso da tradição clássica, por um academicismo contrastante com a modernidade da sua escrita, parecendo, num primeiro momento, uma cedência à poesia espartilhada dos modelos, mesmo quando eles são tão modernos como os aqui citados, mesmo quando entre eles se encontram nomes que formam parte da árvore genealógica da poesia contemporânea. Assim, para um poeta para quem a máquina de escrever faz, normalmente, parte da sua relação com a criação, o poema fixado pela caligrafia e submetido por automatismos vários ao soneto provoca o sentimento de que será «julgado por esses modelos perfeitos, de que o meu texto parece uma sombra» se bem que, uma vez impressos passem a adquirir uma dimensão nova conseguindo esses poemas «viver para lá dessa impressão inicial.» [Júdice (2008) 11].

Parecerá estranho que aquele que em 1972 afirmara «Eu invento uma poesia que as máquinas poderiam fazer. » [Júdice (1972) 11] se tenha submetido ao soneto. Independentemente daquilo que atrás li, estranha-se que a escolha de uma forma para os 41 poemas escritos durante uma semana seja, simplesmente, uma consequência mecanicista de uma escrita à mão e não um desafio, um jogo, a procura da forma canónica, porventura mais prestigiada, para a renovação do diálogo com a Poesia, após a aventura iniciada em 1985: o poeta e professor, num pacto com a Musa, decidiu revisitar os segredos com ela partilhados, através da mais cara das formas. Assim, neste livro, o recurso ao soneto, bebido essencialmente em águas simbolistas – pese embora a claríssima paráfrase a Camões («Amor») – é o mais voluntário e consciente dos actos de alguém que se dispõe ao sublime desafio de o utilizar exclusivamente como a forma de expressão de um íntimo diálogo entre o Poeta e a Poesia, renovando-o. A variabilidade do jogo de rimas (com casos muito frequentes de predomínio do verso branco) e o recurso a um dos seus estilemas mais constantes (o encavalgamento), fazem com que estes sonetos ostentem uma aparente imprevisibilidade. Contudo, como sempre – ou quase – o último terceto, em especial os dois últimos versos, mantém o papel que lhe foi sendo dado nos mais diversos momentos da sua história.

Mas Júdice vai, neste livro, mais longe, oferecendo insólitos ritmos que confirmam a «siempre distinta» voz:

De manhã, chegaram as nuvens. Atrás
dela veio a chuva. Com a chuva,
apareceu a melancolia. Da melancolia,
nasceu a tristeza. Com a tristeza, foi-se a manhã.

E a tarde veio à tarde. O céu
desceu do céu. As nuvens correram
para as nuvens. A chuva trouxe
mais chuva. A tristeza ficou mais triste.

Isto foi porque a manhã se fez tarde,
a tarde tardou à tarde, as nuvens
enevoaram o céu, e o céu entristeceu.
[Júdice (2008) 17]

O ritmo imposto por curtos segmentos frásicos, encadeados semanticamente através de orações coordenadas, distorce, auditiva e sintacticamente, a tradicional sonoridade do soneto e distorce, ainda, a expectativa que o leitor tem de um soneto. Longe está de esperar que essas frases breves e sincopadas se insinuem, por lúdica ironia do seu Autor como lenga-lenga.

Mas há mais. A adivinha – subvertida também ela – pela anulação do enigma, e subversora do tradicional conteúdo do soneto, como no anterior caso, comparece em «Ventos»; distorcendo ainda para mais os seus clássicos e sagrados nomes (Bóreas, Notus, Zéfiro e Euros) por simples flores (perpétua, malmequer, rosa e violeta):

O poeta que apascenta os ventos dá a
cada um nome de mulher: ao
vento norte chama-lhe perpétua, a flor
que fica e se prolonga no ouvido;

o vento sul é o malmequer, que
cada um tem de escolher, e é de
todos sem ser de nenhum quando
entra por um ouvido e sai pelo outro;

o vento oeste é a rosa, que
brilha muito e dura pouco, e quando
morre ainda pica; e o vento leste

é a violeta, que se deita com
o poeta e se levanta com o sueste,
pintando o dia com cores de borboleta.
[Júdice (2008) 21]

Por fim, mesmo a formulação utilizada por Nuno Júdice de que os seus poemas parecem sombras de seus modelos «até perceber, ao lê-los já impressos, que eles conseguem viver para lá dessa impressão inicial.» [Júdice (2008) 11], confirma o desafio imposto por ele próprio na escolha da forma mais elevada para a materialização da Ideia.

Assiste-se, de facto, nesta obra, ao nascimento dos poemas, emanados da Poesia e gerados pelo Poeta. Assiste-se neste livro, ainda, ao próprio testemunho único da criação poética, ao instante irrepetível da corporização da Ideia – reminiscências de Antero? – profusamente documentado pelos autógrafos que acompanham a outra fixação, alheia ao Poeta, inscrita nos circuitos mecânicos da impressão, como espelho distorcido da fiel materialização, pura e imperfeita – parafraseando o Autor – do Verbo.

Aceita, então, Júdice que a intimidade da criação nos seja revelada, que a metamorfose dessa crisálida «sonhando o seu sonho / de voo» («Metamorfose») saia dos seus próprios versos, mostrando-nos, corajosamente, o vagido do poema em construção, tal como iniciaticamente fizera em 2000, mas aqui levado ao extremo.

Diga-se, a título de parêntesis, que o que nos é ofertado – no sentido mais religioso do termo – muito dista do narcísico autógrafo, aprimorado pela pulcritude da bem desenhada letra e do laminado verso. A imperfeição do manuscrito sobressai, entre vacilações, riscos, entrelinhamentos, anteposições, posposições, da Poesia ao poema, sem subterfúgios, despojado das galas que não sejam as da própria Poesia.

O Poeta mostra-se no poema, também através da sua caligrafia, da sua escrita, em letra miúda, vitalmente apresentada sobre papel pautado em fundo cinzento. O Poeta surpreende pelas ínfimas vacilações que transparecem de algumas palavras riscadas, bem poucas, ou de outras marcas reveladoras de um refazer do verbo; e surpreende, pela escassez das mesmas, como se escrevesse sob o ditado, como se tivesse os textos decorados, ou ainda, como imagino a Sibila de Cumas a profetizar sob o divino sopro de Apolo. O Poeta deixa-nos deste modo observar o momento em que as palavras se sucedem na procura do Sentido. Ut sit documenta. Mas o diálogo com a Tradição será agora subversivamente lançado através de um não dito diálogo entre o amador e a coisa amada mas presente ao longo da obra.

Há um motivo de seda nas cordas
do coração. Puxo-o devagar, com os dedos
da alma, e o que aparece na mão
são coisas simples, confissões, segredos.

Mas se visto com essa seda a tua
imagem, o que os meus dedos tocam
é mais real do que a vida, e tem
o teu corpo, os teus lábios, a tua voz.

Desfaço, assim, o embrulho da estrofe,
e deito fora os cordéis da retórica,
o papel das figuras, a cola da música.

É melhor assim, quando o poema fica
às escuras, no silêncio da casa, e me
deixa ouvir os teus passos, tão junto a mim.
[Júdice (2008) 53]

Nesta nova – ou velha – «Arte Poética», reiterante das «coisas simples», celebra-se o jubiloso cerimonial do encontro entre o amador e a coisa amada, ainda que com mais laivos de São João da Cruz do que de Camões. Poeta e Poesia – a forma pura do poema já despojado do embrulho da estrofe, dos cordéis da retórica, do papel das figuras, da cola da música – falam de «coisas simples, confissões, segredos», no «silêncio da casa». Poeta e Poesia numa proximidade cúmplice, numa partilha exclusiva. É personificada a Poesia ao longo desta obra pelo Tu amado de um Eu amante, a mulher em quem «Provo nos teus lábios um pólen / de borboleta, húmido da noite» («Musa»). E se nos é dado ver o encontro, e se nos é dado observar o próprio autógrafo, o original, paradoxalmente – a antítese configura este livro, logo pelo seu título – nunca nos é dado ouvir o que sussurram, o que confessam, nunca nos são ditos os segredos.

Já Nuno Júdice anunciara sobre a rima e o ritmo, recorde-se: «A poesia nasce de outro logaritmo, e pode mesmo viver apenas do ar.», provavelmente não esquecendo versos da Art Poétique de Verlaine que diziam, em verso e com rima!:

O qui dira les torts de la Rime?
Quel enfant sourd ou quel nègre fou
Nous a forgé ce bijou d’un sou
Qui sonne creux el faux sous la lime?
[Verlaine (1884) 24]

Na «Apresentação» à Poesia Reunida (1967-2000) de Nuno Júdice, Teresa Almeida detectou na obra deste Autor um conjunto de constantes, algumas delas submetidas a claros ciclos temporais. Assim, se no início da sua criação, segundo Teresa Almeida, a presença do mar alcançava uma elevada frequência, assumindo significações de morte, espaço de temporal, lugar de náufragos e afogados, detectou, ainda nesses primórdios, na sua poesia, o topos da fronteira, dos limites: o litoral, espaço entre o mar e a terra.

Segundo a mesma académica, Nuno Júdice parece virar-se para a terra ao longo dos anos 80 – nunca abandonando as imagens marinhas – e nela observará a passagem do tempo, através das estações do ano, penetrando, segundo uma sua muito feliz expressão, no «regime nocturno da imagem» [Almeida (2000] 38] onde o crepúsculo passa a ser fronteira entre a vida e a morte. Mais uma vez o limite, aquilo que separa, o espaço entre. E o soneto adequar-se-á sempre, pela sua estrutura dual (quadras e tercetos), ao jogo de espelhos, às simetrias, à dialéctica dos sentidos, nunca perdendo de vista esse nada que tudo é: a fronteira, o traço que separa.

Se o poema anteriormente lido, «Arte Poética», se colocava no centro de O Breve Sentimento do Eterno este «Fumo», curiosamente escrito e colocado após o anterior (ocupando o 21º lugar num livro com 41 poemas, recorde-se), patenteia de forma clara – também pelo seu conteúdo – a noção de linha divisória, a constante fronteira entre dois elementos, omnipresente na criação de Júdice.

Dia e noite juntam-se nesse fumo
em que o céu respira; e a sua linha
desenha no ar uma frágil fronteira.

Por um lado, o espaço sem limites
em que tudo permanece; para aqui, o breve
sentimento do eterno; antes que o fumo se dissipe
[Júdice (2008) 55]

O «fumo / dessas cinzas em que o dia aquece as mãos» é a «frágil fronteira» entre o dia e a noite, entre «o espaço sem limites / em que tudo permanece» e a eternidade ilusória, breve sentimento só possível enquanto o fumo permanece.

Finalmente, para concluir, ouçamos aquilo que em 2005, no âmbito de Faro Capital Nacional da Cultura, nos leu, em Portimão, Mega Ferreira: «Para Júdice, então, ‘a poesia é o teatro’; e neste palco que começa a construir em 1972, vai erguer a personagem maior do seu drama- -sem-gente, a figura do Poeta, que resgata, na sua dimensão heróica, ao Romantismo.» [Mega Ferreira (2005)].

Pois bem, concluamos com teoria teatral, mais uma vez dos clássicos. Em El arte nuevo de hacer comedias, Lope considerou que o soneto, na dramaturgia, «está bien en los que aguardan»: é a forma adequada para a personagem que espera e que declama o seu solilóquio lírico. Não serão suficientes estas razões para que Júdice utilize o soneto?

Bibliografia
ALMEIDA, Teresa (2000). «Apresentação». In JÚDICE, Nuno, Poesia Reunida (1967-2000). Lisboa: Dom Quixote, pp. 31-44.

ALONSO, Dámaso (1969). «Presencia del soneto» in Poetas españoles contemporáneos, 3a. ed. aumentada, Madrid: Gredos, pp. 369-374.

DIEZ ECHARRI, Emiliano (1970). Teorías métricas del Siglo de Oro. Reimpressão da primeira edição de 1949. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas.

JÚDICE, Nuno (1972), A Noção de Poema, Lisboa: Publicações D. Quixote.

JÚDICE, Nuno (1994). «Introdução» in Antero de Quental, Sonetos, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pp. 7-21.

JÚDICE, Nuno (2000). Poesia Reunida (1967-2000), Lisboa: Publicações Dom Quixote.

JÚDICE, Nuno (2008). O Breve Sentimento do Etreno, Lisboa: Edições Nelson de Matos.

MEGA FERREIRA, António (2005). «Nuno Júdice» (Cito a partir do original dactiloscrito da conferência «Nuno Júdice», proferida por António Mega Ferreira, a 9 de Setembro de 2005, no âmbito de Faro Capital Nacional da Cultura, em Portimão.

VERLAINE, Paul (1884). Jadis & Naguere, Paris: Léon Vanier.