Marlene Ferraz – As mães não flutuam

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO11

Marlene Ferraz

As mães não flutuam

A pergunta circula na cabeça enquanto desdobro o braço até ela. Sabe que podemos ficar com a criança? Vinda da boca doutra mulher ainda fura mais a pele. Entra no corpo. E anda por todas as veias até se instalar no oco da cabeça. E, então, movimenta-se, para a frente, para trás, como um sopro de ar envenenado. Anda, meu amor. Ela tem o riso mais limpo do mundo. Digo mundo, sem ter ido muito depois deste chão. O riso mais limpo do meu mundo. Ou apenas o riso mais limpo. Vamos vadiar, mamã? Costumo usar o verbo para arejar o peso dos dias. Mas hoje vadiar pareceu excessivamente ordinário na língua dela. Vocábulo encardido. Violento, até. Vamos respirar, amor. Ela tem ainda os dedos curtos, redondos. E cabem perfeitamente nos meus. Como se tivessem sido feitos para caber nestas mãos e não noutras. A carta registada dos serviços sociais na cadeira. E a memória da entrevista com a mulher da pergunta que circula dentro dos ossos. Sabe que podemos ficar com a criança? O aviso veio com a denúncia anónima. Por calculada ausência em espaço fechado. O artigo cento e trinta e oito do código penal. A mulher leu com a geometria dos poemas. Quem colocar em perigo a vida de outro, por exposição a uma situação em que esteja impossibilitado de se defender por si mesmo, ou que o abandone quando era seu dever vigiar ou assistir, é punido até cinco anos de prisão. Pausa. E outro apontamento. Com agravação por ofensa à integridade física. Poderia jurar que a minha respiração ficou suspensa durante tempo maior para um animal vivo. Os braços tombados. A cabeça inclinada. Poderia explicar a morte. E os meus desvios durante a madrugada. Ela ensonhada na cama. A porta destrancada. E as ruas despejadas de acusação. Menti. Apenas os minutos para fumar um cigarro. A mulher desviou a vista com sanha. Quem revelou afirma ser por mais de uma hora. Praticamente todos os dias. Virou a cara até mim, depois. A senhora vende o seu corpo? A saliva esgotou-se. Não. A mulher continuou. Novo amante? Acenei com a cabeça. Droga? Silêncio. E como explica ausentar-se vezes e vezes com uma criança dentro de casa? Apertou as mãos. Por tempo algum pensa no risco em que coloca a sua filha? Falei com o último ar que tinha. Acordar dum pesadelo? Ela enervou-se. Um incêndio. Um caimento. Uma morte. A sua filha tem três anos, merda. Esticou-se na cadeira. A palavra merda criou uma tensão mas também uma abertura. Como se, finalmente, os muros tivessem desabado. Olhámo-nos. Mulher e outra mulher. A vida é fodida. E eu preciso da bafagem da madrugada. Vamos respirar, amor. Voltou às perguntas. Com quem está a sua filha, agora? Endireitei a cabeça. Com a vizinha de cima. Ela abriu o processo em papel. Já a inscreveu no jardim de infância? Poderia ter mentido. Não. A mulher parecia consultar os registos sem método. Vamos ter de rever o caso. Silêncio. O pai? O homem. O ilusionista. O filho da puta. Em viagem. E, por um instante, a maquinaria cardial encalha. Eu sabia que não poderia ser afeição para sempre. Até nos podemos enganar com palavras duvidosas, atiradas pela cavidade bocal sem matéria comprovativa. Mas raramente a opacidade das esferas oculares nos ilude. A não claridade. O não repouso. Uns olhos que não repousam em nós não podem amar. Continuam enervados. A esgaravatar. Ou a debandar. Como se o 150 outro fosse apenas um pouso temporário. Se tivesse de explicar o amor, seria assim: quando os olhos se demoram. Sem medo. Nem variação. Ficam. Pendurados. Ou adiados. Por terem já o lugar em que poderiam morrer. O amor pode ser vida. Mas morte, também. É ficar tanto que o corpo abranda. Para. Cai, até. Aviso de que o ciclo orgânico se tem completo. Planta. Bicho. Cimento. Vamos respirar. A mão dela na minha. Como se um fio nos condenasse. Não temos elevador no prédio. As portas nos corredores. Campainhas. Tapetes. Olhos mágicos. Os vizinhos que podem estar a espreitar pelo círculo de vigia. E a boca que denunciou a minha ausência por não saber dos apertos na minha caixa respiratória. Anda. Ela não está com o vestido das flores mas o riso limpo desaperta-se entre os cabelos finos. Salto a vedação. Vem ao meu colo. E ela vem. Estende os braços aos meus. Digo sem usar verbos. Não temas a violência da água – não é assim tão mais que a dos atos humanos. E há barcos, meu amor. Ela aponta. Barcos. Sim, barcos. De metal. De homens. E até de enganos. Barcos que cortam as ondas e vão adiante. Barcos que se afundam. E que afundam outros, também. Barcos. Vês aquela linha ao fundo? Ela acena com a cabeça. É onde tudo começa. Ou acaba. Lá iremos. Eu e tu. Sem nenhuma outra mão que nos separe. Como se nos fosse salvar. Anda, meu amor. E ela acomoda-se no meu corpo. Somos partes da mesma coisa. A mesma pele. A mesma carne. Vou contar até três. Ela ri-se. Números curtos. Os que importam para adiar o nosso tempo. Anda. Apenas um salto. Um. Assim, eu e tu. Mas talvez estranhes que as mães não flutuem. As mães também estalam. Partem. E vão ao fundo. Não tenhas medo, amor. Não tenhas. Que o medo é a forma inventada de nos atarem os pés. E os pés, meu amor, só funcionam acertadamente se livres.
Um.
Dois.