Paulo Tavares

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO11

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JUAN RAMÓN F. MOLINA
VI. 2021
Del cuaderno: De un paisaje incierto y sereno

PAULO TAVARES

MISTÉRIO COSMOGRÁFICO

Mas estar em órbita é uma forma
de cair permanentemente, sem nunca atingir
o objecto em torno do qual se orbita.
Newton

As fotografias emolduradas
lembram leis de gravitação, mecânicas variáveis:

queria deter-te noutro tipo de retrato,
modelar a objectiva
às nuances quase imperceptíveis,
quase sobrenaturais, do teu temperamento
sempre um pouco resguardado,

captar-te o espaço inteiro, junto
à nespereira que se agiganta,
também ela discreta, na varanda dos fundos.

Tudo aparentemente certo:
menos a luz e a escala mais fiéis,
o plano atropelado
pelas cisões dos gestos imprecisos, por poeiras
vindas de tantos olhos aclimatados.

E tu, que sabias das órbitas
que nos apartavam,
dos retratos largados no fundo de bolsos,
dentro de pastas, em cima de mesas,
todos perdidos na grande
angular de um tempo em diferido,

garantiste que aquele espaço
era intransitável
— claro e livre de captação.

                           *

Eis os dias sem fundo, os fins
sem retorno,
e a terra adiada perfila-se
sem nenhuma grande guerra de permeio

ou esse outro real esquivo onde tornar
a fincar os pés.

Num rodízio de ausências,
também a perplexidade ondula,
quase endoidecida,
em torno da história dos fantasmas:

na rádio, uma música,
Saturday Sun, e indecifrável

a dissonância que canta dias luminosos
perante a extinção.

                           *

A estrada alonga-se
e, ao mesmo tempo, a descida e a subida,
as fraquezas e as forças:

outro ano que se afunila no mesmo
céu residual,

nas improváveis nuances da vida
que ainda não cabe
num relicário,
que estranha
a perpétua interferência,
que ainda treme
ao contacto de filamentos e artérias.

Minha canção erodida no resvalar
das estações frias,
tão difícil regressar aos albergues
de uma estadia prometida à abundância,

decorar mapas e atalhos,
as estradas em firmamento,
todos esses caminhos
que se virão a perder dos seus lugares.

                           *

Enquanto se afasta o estouro das galáxias,
crescem dentro das estações os seus paramentos estelares
e à curvatura das costas
alteio o golpe desmedido da observação:

enquanto os contabilistas das insónias
ficaram a inventar números,
outros a decalcar missivas
até ao improvável fim do inventário,

a escolher a melhor garrafa
com que atirar a mensagem ao mar,

logo em frente as vias escapatórias
continuaram a bifurcar-se
e o princípio
de eclipse colectivo
não deixou de ficar à espreita,

velha criança suspensa
com o gosto do imponderável
e ainda intrigada
pela triste liberdade de um recreio vazio.

                           *

E eis que os dias continuam amenos,
um pouco mais frios
os contactos imediatos,

abundante a evanescência fabulosa
e os espaços gregários garantidos por atacado,

os traficantes de almas abrem
porões, caixas-de-ar,
e preparam-se para a sua incisão,

os cânticos de perpétuas salvações
confundem-se em peditórios,

como um braço
caído em águas turvas:

e ainda te pedirão contas pelo naufrágio.