Carlos Alberto machado – As canas estavam ao contrário

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO11

Carlos Alberto machado

As canas estavam ao contrário

É bom não ter certezas. E quanto menos memórias, menos certezas.

Farrapos de tecidos velhos, umas vagas vozes desarticuladas, um breu entrecortado por velozes dardos de luz. E um quente húmido. E silêncio, que é talvez o não lembrar nada.

– E o canavial, onde é o canavial?
– Não sei, deixem-me dormir.

Primeiro, um latejar mole, depois um zumbido difuso, a cabeça a deixar de ser sua.

– Não podes dormir, fala!
– As canas estavam ao contrário, eram tracejadas, paralelas à linha do mar, persianas a tapar a luz que vinha do mar.

Uns garotos encontraram-no a dormitar num banco de jardim da praça velha. A seu lado, dois pedaços de cana, de pontas afiadas, manchadas com o que parecia ser sangue, escuro e seco. Cheirava a algas. Um dos miúdos disse está morto e tocou-lhe, a medo. O homem, sem abrir os olhos, agarrou numa das canas e ergueu-a, esbracejou e disse qualquer coisa que não se percebeu bem e logo voltou ao estado inicial. Está vivo, cuidado, exclamou outro miúdo. Está a dormir. Pois está. Vamos chamar um polícia. Estás doido? O que é? E se dizem… Mas foram.

O mar estava ali, assim, naquele momento, e depois, noutro momento, era outro. É possível dizer menos de um mar? Era uma situação banal, a de um homem e de uma mulher que chegam perto de um mar, dunas adentro até onde houve força do motor do carro e mais ou menos habilidade do homem que o conduzia. Ponto. Motor desligado. Deixaram-se ficar em silêncio dentro do carro. Ela saiu primeiro. Deu uns passos em direcção ao mar e sentou-se na areia, a fumar. Olhos fechados. Está frio, disse o homem, que se aproximara. Puxou também de um cigarro, deu-lhe lume, ficou de pé a olhar a praia, uma praia muito extensa, a perder de vista, como se diz. Era dia claro. De Fevereiro. Acabamos os cigarros e vamos embora. Vamos como? Achas que consegues tirar dali o carro? Se não conseguirmos, vamos a pé até à estrada e pedimos boleia. Vou ao mar. Estás doida, com um frio destes? A mulher não respondeu ao homem, levantou-se e começou a caminhar. Parou na rebentação. O homem gritou-lhe vou-me embora e ela está bem. Parou junto ao carro para tirar de lá um pequeno saco de viagem e começou a caminhar pelas dunas. Chegou à estrada e sentou-se num marco quilométrico. Passavam poucos carros, não fez sinal a qualquer deles. Fumou, dois, três cigarros. Levantou-se e começou a fazer o caminho de volta ao mar. Lá estava o carro, a ficar coberto com uma leve película de sal e areia fina. Desceu a última duna para o mar. Não viu a mulher. Caminhou para um lado e outro da praia, a olhar bem o mar e começou a gritar o nome dela. Entrou no mar, como se fosse uma estrada. Gritou. Uma onda maior derrubou-o. Enrolou-se na areia revolta, a água repleta de algas. Sentiu-se mal. Começou a gatinhar para terra. Deitou-se num declive de duna. Fechou os olhos. Gostaria de ser pintor, de saber os segredos das cores e pintar mares e dunas e corpos nus. Despertou – se dormiu. Começava a anoitecer. Sentiu frio. Tinha as roupas ainda húmidas e cheirava a algas. Lembrou-se da mulher. Voltou a olhar o mar, mas o mar era outro, claro. Não podia ter lá a mulher de antes. Nem ele a saber dela. Atravessou dunas e chegou a uma estrada. Noite. Fechou os olhos e começou a atravessar a estrada. Um som estridente. Um baque. Ainda sorriu.

Sentiu que era ele naquele banco de jardim de uma praça que não conhecia. Tentou lembrar-se e não conseguiu e sentiu-se contente por isso. Desfaleceu, talvez de fome e de cansaço, o corpo dorido. E era um caleidoscópio de luzes e sombras, mar, ondas, dunas, canaviais, vozes e cheiros desconhecidos.

As canas estavam ao contrário, eram tracejadas, paralelas à linha do mar, persianas a tapar a luz que vinha do mar. E silêncio.

Fevereiro de 2018 – Março de 2021