Hugo Mezena – Máquina de fazer viagens

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO11

Hugo Mezena

Máquina de fazer viagens

O jornalista a preto e branco que apresentava o telejornal à cabeceira da nossa mesa de jantar tinha uma cara tão séria e uma gravata tão direita, falava tão devagar e tão explicado que nos sentíamos atrapalhados de cada vez que ele ficava pendurado à espera de uma reportagem que demorava a entrar. O genérico terminava e o jornalista levantava os olhos, o nosso avô soerguia-se e levava a mão à pala do boné: – Boa noite, Senhor Doutor. Como o jornalista não fazia caso e passava à primeira notícia, o nosso avô sentava-se e fazia-nos calar com um dedo à frente do nariz. E o jornalista, variando a gravata de dia para dia, todos os dias falava da América. Avançava com o que acontecia na Guerra do Golfo, e o nosso avô dizia: – Como é que ele decora aquilo tudo? E o que o jornalista dizia sobre a América era verdade, porque tudo o que os jornalistas diziam era verdade. Se o nosso avô ia a erguer-se da mesa antes de o noticiário terminar, levantava e baixava o boné ao jornalista. Não dizia nada, para não o interromper. Eu e o meu irmão falávamos muito da América. Dos Estados Unidos da América. Na América aconteciam coisas mais importantes do que as que aconteciam na nossa aldeia. Na América ninguém conhecia a nossa aldeia. Quando começou a Guerra do Golfo, era a América que lançava as bombas. Na nossa aldeia não havia bombas, nem era possível que alguém se lembrasse de atirar bombas para lá. E quando voltávamos a pé da escola, eu e o meu irmão falávamos da guerra e decidíamos quem ia ganhar. O meu irmão dizia que o Iraque tinha muito gás, por mais bombas que a América lançasse, o gás do Iraque dava cabo de tudo. Eu dizia que a América era mais esperta e tinha muitos aviões. Mas, para o meu irmão, não era assim que as coisas aconteciam. O Iraque tinha mais gás e pronto, era quanto bastava. Isto semanas a fio, enquanto nem o jornalista dentro do televisor nem em nossa casa se falava de outra coisa. A América, a América, a América. E um dia nas férias de Verão, quando as tardes não acabavam e o sol era tão forte que magoava a vista, peguei num pau como para me ajudar a pensar e disse: – Deve haver uma maneira de ir à América. E o meu irmão: – É preciso ter um avião e os aviões vão acabar no fim da guerra porque o gás do Iraque vai rebentá-los todos. O meu irmão, em bicos de pés, fazia voar aviões com uma das mãos e acertava-lhes com mísseis de gás vindos da outra. Mas tinha de haver uma maneira de ir à América e era isto que lhe estava a dizer quando ouvimos um restolhar, um trabalhar de motor, fomos a correr e surgiu um carro branco no caminho de nossa casa.

Uma vez por ano surgia aquele carro à entrada do caminho de nossa casa e nós corríamos para ele e de lá de dentro olhava-nos o nosso tio, que chegava sozinho e ficava a buzinar connosco aos saltos do lado de fora da janela. O nosso avô e a nossa avó aproximavam-se, o nosso avô levantava o boné e o nosso tio saía, muito derreado, e ia cumprimentá-los. Entretanto fazia-nos festas na cabeça e nós agarrávamo-nos à cintura dele e ele voltava a fazer-nos festas na cabeça e queria andar e não conseguia porque nós estávamos agarrados à cintura dele. Era isto. Sempre igual. Havia sempre um dia no Verão em que isto acontecia. Depois o nosso tio regressava ao carro e tirava a mala pequena. Erguia-a e nós saltávamos tentando agarrá-la, mas nem aos cotovelos dele chegávamos. Dizia-nos que tínhamos de esperar até estarmos dentro de casa e nem que pedíssemos muito ele nos deixava saber o que havia lá dentro. – O que é? – perguntávamos, mas ele não dizia na mesma. Era a máquina. Pelo menos nós chamávamos-lhe a máquina e era uma máquina porque inventava e mudava coisas e é isso que as máquinas fazem. A máquina era sempre pequena, com um tubo e uma manivela. Tinha um truque para funcionar e era isso que o tio nos explicava: só o dava a conhecer a outra pessoa quando queria que esta também a pudesse utilizar. Mais ninguém sabia o que fazer com ela. Era por isso que era a nossa máquina. Depois o tio baixava-a e entregava-ma. O meu irmão agarrava-se logo ao meu braço e dizia: – Dá-me a mánica, dá-me a mánica! Ficava agarrado a mim até eu a ter experimentado e até lha dar para ele se calar e não vir o avô ralhar e dar-me com o boné na cabeça. O nosso tio não dizia nada porque entrava logo em casa a arrastar a mala que trazia na bagageira do carro. Enquanto isso, o nosso avô andava em volta dele com o boné na mão e a nossa avó ia tirar água do poço, que ficava no campo mais abaixo e onde chegava depois de passar por um caminho estreito no qual tinha de se baixar por causa dos ramos de uma figueira. Depois ia apanhar um limão e dava-lhe uma limonada num copo que tinha passado por água para ficar mais fresco. Passados uns minutos, o nosso tio reaparecia sentado a uma mesa no alpendre e ganhava aquele ar que queria dizer que era o nosso tio e esquecia-se de nós para o resto do Verão. Às vezes ficava tanto tempo com a mão a segurar o queixo por cima dos papéis que nem o nosso avô se atrevia a abrir a boca, para não o interromper, como fazia com o jornalista da televisão. – Ele encontrou a mánica no lixo – garantia o meu irmão. Eu dizia que não, que ele era um inventor importante e era a pensar que se conseguia inventar as coisas. Era preciso pensar muito para conseguir fazer uma máquina daquelas, todos os anos diferente e devia ser muito difícil e era preciso saber muito do que o nosso tio sabia para o conseguir. E o meu irmão dizia que não, que aquilo não valia nada, mas nos dias seguintes ficávamos a experimentar a máquina e queríamos que ela funcionasse, só que de início nunca funcionava porque precisava de aquecer e nós tínhamos de nos habituar a ela. Certa vez, eu e o meu irmão fomos para o caminho à frente da nossa casa e o meu irmão levou o canudo da máquina a um olho, deu à manivela e disse que não acontecia nada. Eu disse: – Tens de levantar a máquina para o céu. O meu irmão levantou-a e disse outra vez que não acontecia nada.

E eu: – Dá mais à manivela! Ele deu mais à manivela com o cotovelo levantado e eu segurei a máquina para ele conseguir andar mais depressa: – Dá mais, dá mais! Ele deu a toda a força e continuou a dizer que não acontecia nada. E eu: – Dá cá isso! Ele tirou o olho do canudo: – Esta mánica não presta! Depois não queria dar-me a máquina e eu disse que ia falar com o nosso tio e ele disse que ia dizer-lhe que eu tinha mais tempo a mánica e não o deixava brincar com ela. – Vai – disse eu e agarrei-lhe as mãos e tirei-lhe a máquina. E ele, como ficou nervoso, pôs-se logo em bicos de pés. Quando o meu irmão ficava nervoso, punha-se em bicos de pés e tentava tirar-me a máquina, mas eu levantava-a como o nosso tio costumava fazer e ele não lhe conseguia chegar. Nisto ouvimos passos, risos já muito próximos de nós e demos por duas cabeças a espreitar por cima do muro. Eu escondi logo a máquina atrás das costas, e o meu irmão: – Vamos fugir! Mas o grandalhão já tinha saltado o muro e vinha a abanar muito os braços, para fazer os ombros mais largos. E o outro vinha logo a seguir. O meu irmão fez o mesmo e escondeu-se atrás de mim. Nisto, o da frente arrancou- -me a máquina das mãos, e eu: – Dá cá a máquina, ó Cabeça de Cabaça! Ele olhava para aquilo sem perceber nada. Tinha a boca aberta e o lábio de baixo era redondo e feio. E eu: – Senão parto-te todo! E o Cabeça de Cabaça não ensaiou nada e partiu-me logo todo. E ao meu irmão a seguir. E o outro mais pequeno, que se enfiava atrás dele, ajudou. Depois pegaram na máquina e puseram-se a mexer nela. Começaram a perguntar porque é que aquilo era uma máquina: não tinha motor, não fazia barulho, não trabalhava. E era de madeira. – Uma porcaria de madeira – diziam. E bem lhe mexeram. E como não lhes respondemos nem levantados pelos colarinhos, ameaçaram atirá-la ao chão. – Essa mánica é para mudar as nuvens, ó Cabeça de Cabaça! Eu ainda mandei calar o meu irmão, mas o medo é assim: – Espreitas aí por esse canudo! E antes de rir o Cabeça de Cabaça encostou o canudo a um olho, depois ao outro, apontou a máquina para o ar e deu uma gargalhada que eu nunca cheguei a esquecer. Riu-se mais. E depois passou a máquina ao outro e ele espreitou também. E riu-se muito, mesmo já tendo rido antes, sem espreitar. E riram-se os dois um bom bocado ainda. No fim, o Cabeça de Cabaça, olhando-nos das alturas da sua ira, ergueu a máquina acima das nuvens e desta vez atirou-a mesmo ao chão. Depois acabou de parti-la com os pés. Desapareceram. 

Levantámo-nos e fomos mostrar a máquina ao nosso tio. O meu irmão quis inventar uma história, mas a que ele improvisou era ainda mais estapafúrdia do que a verdadeira, e eu não deixei. Chegámos ao alpendre onde o nosso tio estava com os cadernos e as folhas dele e antes que o meu irmão falasse eu contei o que tinha acontecido. A única coisa que ele disse foi que nesse ano não teríamos outra máquina. Justificação: aquelas máquinas demoravam a construir e para aquelas férias não havia nada a fazer. Quando no Verão seguinte o carro branco veio pelo caminho de nossa casa e buzinou, o nosso avô tirou o boné da cabeça e a nossa avó foi buscar água para preparar uma limonada. Mas assim que o nosso tio me cumprimentou com um grande aperto de mão, em vez de lhe perguntar pela máquina nova, eu quis saber como é que ele tinha feito todas as máquinas anteriores. Qual era o segredo para fazer uma máquina daquelas? O nosso tio olhou-me, já não parecia tão alto, e perguntou a minha idade. – Doze anos – respondi. E em vez de o deixar falar, fiz-lhe outra pergunta. Uma pergunta que andava há muito na minha cabeça. A pergunta era se ele fazia aquelas máquinas de propósito para nós ou se ganhava a vida a fazer máquinas para outras pessoas que também as quisessem. – Quisessem para quê? – perguntou ele. – Cada pessoa deve querer uma máquina para uma coisa diferente – disse eu. O nosso tio nunca tinha pensado nisso, mas era capaz de ser assim, disse ele, e passava o tempo a fazer máquinas daquelas, ou melhor, máquinas parecidas com as que nos dava, uma vez que essas eram mesmo só para nós. As outras eram maiores, mas também serviam para as pessoas fazerem aquilo que muito bem entendessem com elas. E disse que eu tinha feito uma pergunta difícil. Depois o meu irmão não deixou continuar a conversa porque começou a agarrar-se à cintura dele e a perguntar- -lhe pela máquina nova. O nosso tio pegou-lhe ao colo e disse que não tinha tido tempo de construir a máquina desse ano. Não tinha sequer trazido a mala pequena onde a máquina costumava estar guardada. Isto significava que teríamos de ser nós a construí-la. – Que seca! – disse logo o meu irmão. – Construí-la, como? – perguntei. E apesar de o nosso tio nos ter explicado que tínhamos em casa muitas coisas com que começar o trabalho, o meu irmão perguntou umas cinquenta vezes se ele não tinha uma máquina já pronta. Depois convenceu-se de que não valia a pena e passámos os dias seguintes a construir a nossa própria máquina. Tivemos de pensar muito bem o que construir e depois como começar. E foi uma trabalheira. Eu dizia uma coisa e o meu irmão dizia logo outra, só para dizer o contrário. Fizemos e desfizemos tudo várias vezes. O meu irmão queria construir uma máquina estrambótica: pensou na máquina de produzir insectos. – Como nas pragas do Egipto – dizia. Eu deixava-o falar, até porque ele saltava de uma ideia para a outra e não se decidia em relação a nada. Não ficou muito bem, mas fizemos uma máquina. Era a nossa máquina. E tínhamos de perceber ao certo o que fazer com ela. Fomos para o caminho de nossa casa e o meu irmão deu à manivela com toda a força, mas nem assim havia maneira de acontecer alguma coisa. Dizia, como nos anos anteriores: – Esta mánica não funciona. Eu insistia, porque ele já tinha o braço cansado: – Dá mais à manivela!

Fazia-o andar com o braço à roda e ele bem espreitava pelo canudo, mas não produzia resultado nenhum. Depois achou que o problema era da manivela e pusemos uma manivela maior. O meu irmão disse a toda a gente que eu tinha construído mal a máquina. E o Cabeça de Cabaça apareceu também, transpirado por todos os lados, com o outro franganote atrás dele. Voltaram a saltar o muro. – Vamos fugir – disse o meu irmão e pôs-se logo atrás de mim. Mas quando o Cabeça de Cabaça, ainda com os restos do riso do ano anterior, me perguntou se aquilo era outra máquina para mudar aquelas coisas lá em cima no céu, expliquei-lhe que era uma peça de uma máquina muito maior, uma máquina que o nosso tio estava a construir num quarto secreto dentro de casa. – Um quarto secreto? – perguntou ele. – Um quarto onde nem o nosso avô pode entrar sem autorização – disse eu. Isto interessou ainda mais ao Cabeça de Cabaça e ele disse logo que nos partia todos, a mim e ao meu irmão, se não o deixássemos ver essa máquina maior. Então estivemos a pensar como tirar a chave do quarto ao nosso tio. Era preciso esperar que ele saísse do alpendre, porque ele estava a ler e não havia maneira de ir lá interromper o trabalho dele, fosse por que razão fosse. Deitámo-nos os quatro na erva. Era o nosso posto de observação. E esperámos. E estava calor. E uma hora depois lá estava o nosso tio, debruçado sobre a mesa, a olhar para aqueles papéis que nunca mais acabavam. – Isto é um frete – acabou por dizer o Cabeça de Cabaça. – É sempre assim – disse eu. – Vais ver que à noite a nossa avó o vem chamar e ele se levanta para ir comer. É claro que eles foram embora e não voltaram e o meu irmão ficou a achar que a tal máquina grande existia mesmo. E foi outra trabalheira convencê-lo do contrário. Quando as férias chegaram ao fim e o nosso tio perdeu aquele ar que queria dizer que era o nosso tio e veio despedir-se, quis saber como nos tínhamos saído na tarefa que nos tinha dado para fazer. Era a pergunta de que eu estava à espera. A guerra tinha acabado e já se falava de outras coisas na televisão, o meu irmão já não tinha medo do gás e por isso tínhamos inventado a máquina de viajar para a América. – Só dá para ir à América? – perguntou o tio. – Não pensei em mais nada – respondi, mas fiz-lhe outra pergunta, uma pergunta que andava há muito na minha cabeça. – Vai para a América? Ele guardou a mala que a minha avó lhe deu e meteu-se no carro: – Vou para a Itália. É aqui mais perto. A forma como disse aquilo era estranha e eu dei por mim a coçar a cabeça e a dizer: – Então vou fazer uma mudança à máquina para ir à Itália. O tio abriu a janela do carro e olhou para mim: – Eu passo o ano todo a fazer uma máquina para poder vir aqui.