Teolinda Gersäo – 1910

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO1

MÁRIO DE CARVALHO

1910

(Coimbra, 1940), escritora e professora universitária. A sua primeira obra de ficção, O Silêncio, apareceu em 1981. De então para cá, publicou mais de uma dezena de títulos narrativos, que vão desde o romance (A Casa da Cabeça de Cavalo, 1995, Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores; A Árvore das Palavras, 1997, com tradução espanhola em 2003) ao volume de contos (Histórias de Ver e Andar, 2002, Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco), passando por formas narrativas próximas da novela (Os Teclados, 1999).

Havia também mulheres, pasmou a Celina, parando de polir os sapatos e segurando na mão o pedaço de jornal com que puxava o brilho. Ali estava por exemplo aquela, tão tranquilamente que quase parecia sorrir, no meio dos homens entrincheirados na Rotunda da Avenida. E como tinha ficado bem, de blusa branca, olhando em frente, na fotografia! Uma popular, dizia o jornal, a heroína Amélia Santos.

Também ela, Celina, gostaria de ter um destino assim. Ir a passar na rua, e de repente dar-lhe uma coisa no coração e na cabeça, correr para junto dos homens, ficar na fotografia e tornar-se heroína de uma revolução, de uma coisa que abalava o mundo. A Amélia Santos tinha corrido a juntar-se aos homens, era o que o coração lhe ditava, e estava certo. As mulheres querem-se com os homens. No meio deles. Assim devia ser a vida, assim iria ser de agora em diante. Acabavam-se as tardes à janela, o cheiro abafado dos quartos, as noites de calor em que custava tanto a adormecer. A partir de agora haveria para as mulheres uma outra vida. Os republicanos não haviam de querer que continuassem fechadas em casa a trabalhar e a cuidar dos filhos, enquanto eles faziam comícios na rua e nos cafés. As mulheres iriam com eles, seriam suas iguais e suas companheiras. Para isso eles viriam procurar as raparigas solteiras, onde quer que estivessem, batendo à sua porta e tirando o chapéu.

Eram homens bonitos, alguns vestidos de preto, muitos deles de barbas e bigode. Ela, Celina, iria querer um que usasse casaca e chapéu alto. Quanto às barbas e ao bigode, não fazia questão.

Alisou com as mãos o pedaço amarrotado do jornal e guardou-o no fundo do gavetão da cómoda. Só depois recomeçou a polir os sapatos, com um pano velho de lã que foi buscar à cozinha, onde a Vicência enxugava a louça que a Benvinda lavava num grande alguidar de barro.

Percebeu logo ao entrar que não estavam de acordo:

A Benvinda assegurava que agora tudo ia ficar mais barato e se ia viver muito melhor. Nunca se tinha pago tão pouco como se iria pagar este ano por um almude de azeite ou um alqueire de trigo ou centeio. Era o que se ouvia, em todo o lado. Por causa da República, sim, só quem fosse cego não via como o povo estava agradecido pelo que aí vinha. Já havia quem desse às filhas o nome de República, ou de Maria República.

Ah, mas ela, Vicência, era como São Tomé, queria ver primeiro e acreditar depois. Porque, se essa tal República afinal não tivesse préstimo nenhum, coitadinhas das pobres que se chamavam assim, iam ser chacota de todos e apanhar porrada dos maridos. Queriam República? Pois toma, toma, e elas coitadas a levarem por conta, sem terem culpa de nada.

–Pois saiba que na Lameira uma menina até já se chama Querida República do Meu Coração, atirou a Benvinda, levantando um prato meio enxuto à altura da cabeça. Assim mesmo, sem tirar nem pôr: Querida República do Meu Coração.

Celina fechou a porta e fugiu, levando o pano de lã, sem elas darem conta de que tinha entrado alguém na cozinha. Continuavam a falar, enquanto ela se esgueirava, pelo corredor adiante, até entrar no quarto e deixar finalmente de ouvi-las.

Pegou nos sapatos e recomeçou a puxar-lhes o lustro, contente pelo silêncio que havia agora em volta. Que no entanto não durou mais do que um instante, porque logo começou a ouvir os passos da tia Rosa, para cá e para lá, no andar de cima, mesmo sobre a sua cabeça.

A tia Rosa andava pelo quarto, e não parava de andar, porque estava inquieta. A República tinha sido proclamada em Outubro e só se falava da lei do divórcio, que viera logo a seguir em Novembro. O divórcio, pelos vistos, era agora coisa fácil. Ela só não sabia se ia ser assim também para os casamentos a sério, realizados antes, na igreja. Não queria perguntar ao marido para não o deixar perceber até que ponto se sentia insegura. Pelo que ouvia, de um instante para o outro podia um casamento acabar. Sobretudo se não havia filhos, como no seu caso.

Mas podia acontecer-lhe isso, justamente a ela? Justamente a ela, que estava tão feliz no seu lar cheio de belos móveis, quadros e tapetes? A ela, que gostava tanto de se olhar no grande espelho do armário, com entalhes de madeira dourada, de se sentar diante do toucador num banco forrado de seda, escovando os cabelos com uma escova com cabo de prata? Podia perder tudo isso, de repente?

Doravante as promessas feitas na igreja não eram uma segurança para toda a vida? Quem, como ela, tivera a sorte de casar com um marido rico, que prometera que a levaria a Lisboa, e até já lhe tinha comprado um vestido para irem passear ao Chiado, podia perder assim tudo, do pé para a mão? Milhares de mulheres divorciadas, sem vergonha, podiam num instante roubar-lhe André? Antes matar-se do que deixar que isso acontecesse.

Nunca mais dormira uma noite descansada, nem iria dormir, se não tirasse essas coisas a limpo, de uma vez. Pegou de rompante na capa, calçou os sapatos de ir à rua e saiu para a igreja.

Rezou duas avé-marias para ganhar coragem, antes de perguntar ao sacristão se o senhor padre Rocha estava disponível e poderia ouvi-la em confissão. (Queria garantir a confidencialidade da conversa).

–Só se a senhora puder esperar, o senhor padre está reunido com dois colegas e é assunto urgente. Acho que vão demorar, sim. Só se a senhora esperar.

Assentiu com a cabeça e abriu a caixinha de prata onde guardava um terço, também de prata. Iria rezando enquanto esperava, pensou sentando–se num banco. Rezar talvez ajudasse a acalmá-la um pouco.

Na sacristia o padre Rocha e os dois colegas debruçavam-se sobre alguns postais espalhados sobre a mesa.

Estavam agitados, excitadíssimos. O caso não era para menos: Circulavam, até em postais como aqueles, ilustrações indecorosas da República.

–Indecorosas para dizer o mínimo, sussurrava o padre Rocha, enquanto o padre Almeida bufava de indignação e o padre Semedo, que tinha ficado sem palavras, limpava a testa com um lenço aos quadrados.

–É esta a puta que por aí anda à solta, resumiu o padre Rocha, apontando a figura com um gesto largo da mão.

Os dois padres debruçaram-se sobre a mesa e arregalaram outra vez os olhos, como se ainda não a tivessem visto: Uma mulher enorme, com a largura de dois ou três corpos, parecendo caminhar vitoriosamente, ou ser levada em triunfo, por uma multidão de homens, sobre os quais se erguia. Tudo na sua postura indicava acção, movimento, entusiasmo: A bandeira ao ombro, desfraldada, segura pela haste com a mão esquerda, os cabelos soltos, descendo até à cintura, os peitos opulentos, rijos, desembaraçados de qualquer roupa, avançando nus e salientes, oferecendo-se despudoradamente a todos os olhares.

–Virgem Maria, benzeu-se o padre Almeida, como se lhe aparecesse o diabo.

Reparou que, em volta da cintura, a mulher tinha um pano encarnado, vagamente preso por uma corrente frouxa, que a qualquer momento parecia poder cair e deixar-lhe a descoberto as vergonhas. E as grilhetas quebradas na mão direita simbolizavam a morte da religião. Mas não se atreveu a revelar o que via. Respirou fundo e engoliu em seco.

–Nas costas o pano está meio solto, afastado do corpo, disse o padre Rocha num sufoco. As nádegas são por isso visíveis, para quem estiver atrás.

–Debaixo dela, os homens devem sentir-lhe o cheiro, acrescentou o padre Semedo.

–Até aqui se sente, esse cheiro de puta, disse o padre Almeida tapando a cara com a mão.

–E neste postal não é melhor, disse o padre Rocha. A que aqui se apresenta tem cabelos até aos joelhos, um pano encarnado na cabeça, com louros verdes em volta, uma espada na mão e os mesmos peitos nus, que ainda parecem maiores e mais perto de quem vai com ela. Em volta da cintura o pano agora é branco, com alguns botões que logo se desapertam para deixar sair as coxas por cima daquele mar de homens submissos, a que juntaram uma ou duas mulheres, para disfarçar.

–É necessário escrever uma carta ao Senhor Bispo, disse o padre Rocha. Sem demora.

–É melhor escrever-se logo directamente ao Papa, alvitrou o padre Almeida. Aqui está mais uma prova de que querem acabar com a Igreja. É preciso escrever ao Papa antes que… - mas não conseguiu acabar a frase porque um calor lhe subiu de repente à cabeça, uma dor aguda trespassou-lhe o peito e caiu para o lado com estrondo, arrastando atrás de si a cadeira.

Gerou-se uma enorme confusão, antes de se conseguir chamar o médico, que o declarou morto. Um ataque cardíaco fulminante.

Passou sem demora a certidão de óbito e saiu a correr para casa do boticário, onde chegou atrasado a um encontro. Além do dono da casa, estavam o presidente da junta de freguesia e o dono de uma quinta em Vila Pouca. A discussão atingia o auge quando ele entrou:

–É uma oportunidade histórica única, dizia com fervor o boticário. Vamos ter ordem, trabalho, progresso.

–Vêm aí outra vez grandes obras públicas, bradou o presidente da junta. Benvindas à nossa freguesia!

–O país não vai lá com obras públicas, disse o dono da quinta. As indústrias estão a morrer ou mortas, e estamos à beira da bancarrota.

–Ah, mas o caminho de ferro, na época do Fontes, disse o médico. Desde que dobrámos o Cabo da Boa Esperança não se fez nada igual. O país abriu-se à máquina a vapor, aos comboios, ao mundo. O meu pai até tinha comboios de brinquedo, brincava com a linha da Beira Alta, que tinha, como a verdadeira, catorze pontes e treze túneis. E a ponte D. Maria Pia tem, como se sabe, o maior vão da Europa. Portugal ia na altura à frente do seu destino, com a locomotiva do comboio transformada em locomotiva do país, puxando a civilização por montes e vales e mudando tudo ao passar.

–E o cultivo da terra? E as pescas? E as indústrias? E os empregos? A máquina a vapor não era só a do comboio, era a máquina da revolução industrial, que nunca houve.

–O que nunca houve foi planeamento nem organização. Nunca houve um plano de conjunto. Sempre se fez uma coisa aqui, outra acolá.

–Nem sequer temos uma ponte sobre o Tejo, com comboio e tudo, como no Porto. Imaginem a avalanche de turistas que vai trazer a Lisboa, e a prosperidade que arrasta para o país. O mundo vai ficar de boca aberta, connosco à frente da civilização.

–E a dívida? e os juros? E o descalabro das finanças públicas? Não é com grandes obras que o país vai lá. Há outras coisas muito mais urgentes.

–Ora adeus, vocês não acreditam em progresso? Na capacidade de o ser humano se regerar? De viver segundo princípios racionais? Quem, entre nós, é contra o progresso?

–Viva a República! bradavam todos em coro quando a criada Joana entrou na sala. Trazia um tabuleiro com cálices e uma garrafa de vinho do Porto.

–Pode ir, Joana, disse o boticário.

–Boa noite aos senhores, respondeu ela.

Fechou a porta, atrás da qual continuavam a ouvir-se vozes exaltadas. Só deixou de ouvi-las na cozinha, onde o seu filho Alpídio acabava de entrar. Chegava da cidade, na carroça dos leiteiros.

Era o único rapaz da Chapeleira que andava no liceu, na cidade próxima. Levantava-se às cinco da manhã para ir na carroça do Zé e da Silvina, que iam à cidade vender leite, e voltava com eles ao fim da tarde. Em geral dormia no caminho, para lá e para cá, sentado no banco de madeira, entre o Zé e a mulher. O passo da mula puxava-lhe o sono porque o seu dia era longo e a noite sempre demasiado curta. Mas não se queixava, nem sequer nos dias de temporal em que era preciso encolher-se debaixo do capote e do guarda-chuva e mesmo assim chegava ao liceu encharcado.

O senhor Belisário, o mestre escola, tinha chamado a mãe quando ele passou na quarta classe.

–Este rapaz vai longe, disse.Tem de estudar, de ir para o liceu.

A mãe julgou que ele brincava. Estudar como? Ir para o liceu como?

Mas gerou-se um movimento em favor dele na Chapeleira. Todos colaboravam, incluindo a mula, que o levava e trazia a horas certas. Os leiteiros ofereciam transporte e uma caneca de café com leite, o padeiro broa e azeitonas, o boticário cadernos, lápis e livros, o médico roupa e os primeiros sapatos que ele usou na vida, porque não ficava bem um rapaz da Chapeleira andar descalço no liceu.

O mestre-escola rejubilava. Quem sabe ler e tem cabeça aprende sempre mais do que o que vem nos livros. É como no jogo dos berlindes: um empurra outro e esse empurra outro e chegam longe. Sabes quantas pessoas sabem ler em Portugal? Em cada cem, apenas vinte e tal. Se todas soubessem, o país mudava. Era a revolução, Alpídio. A revolução.

O mestre-escola morrera nesse verão, com quarenta e três anos, o que não espantou ninguém porque a esperança de vida andava por aí.

A revolução, entendes, Alpídio? dizia o mestre-escola.

Na verdade, não tinha a certeza se entendia. Encolhido de frio na carroça, gelado pela chuva do inverno, lembrava-se de que o professor morrera e a escola estava fechada. Diziam que ia chegar outro professor, mas nunca mais chegava.

Quando crescesse, pensou começando a cair no sono, queria ser mestre-escola como o senhor Belisário. Se a escola ainda estivesse fechada, iria ele abri-la. E contaria aos rapazes aquela história: um berlinde empurra outro e outro, e chegam longe. Se toda a gente soubesse ler, havia uma revolução.

O que era uma revolução? Não sabia ao certo, mas devia ser uma coisa boa, porque o senhor Belisário se alegrava com a ideia.

No instante em que caiu no sono ainda ouvia os berlindes bater, correr para longe, bater de novo, ao som do passo esforçado e persistente da mula.