Campa Rasa e outros poemas AFONSO CAUTELA

Fundación Ortega MuñozEscaparate de libros, SO2

Poesia mor t al e viva

antónio cándido franco

Campa Rasa e outros poemas
AFONSO CAUTELA

Edições Sempre-em-Pé, 2011.

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Afonso Cautela, nascido no Baixo Alentejo, 1933, publicou o seu primeiro livro de poemas, Espaço Mortal, em 1960. Nessa estreia, logo se percebeu que o autor entendia a sua actividade como de alto risco. A poesia não era para ele um adorno inofensivo, nem uma questão de erudição, nem mesmo de talento, mas um lugar inequívoco onde o poeta jogava a sua sorte. Nesse espaço, que suspendia o mundo, se decidia a vida ou a morte.

No ano seguinte Afonso Cautela deu à estampa novo livro de poemas, O Nariz, que confirmou, com incidências agora satíricas, a direcção anterior. A poesia, apesar do chiste, ou por causa dele, continuava a ser o sitiado sítio onde o poeta corria o risco de perder a vida, mas também, por intenção do risco, por via dum desafio extremo, o lugar onde o poeta reabilitava a consciência, podendo assim em solidão assumir a plenitude substantiva.

A linguagem verbal desta poesia apresenta-se como um curtocircuito daquela razão estreita, curso dum quotidiano dessacralizado, sem nenhuma singularidade mortal ou imortal. Uma tal linguagem não podia alinhar pela economia lexical, advinda com os segmentos mais clássicos e eruditos do versilibrismo modernista; ao invés, a linguagem poética de Cautela chamava a si um automatismo linguístico, caudaloso e libertário, que, não hesitando diante da anáfora e de outros processos de enumeração ou de inventário, se aparentava ao surrealismo. Disto se terá apercebido Mário Cesariny (1922-2006), que integrou Afonso Cautela numa das antologias representativas do movimento, Surreal-Abjecc(ismo) (1963).

Cinquenta anos depois Afonso Cautela publicou novo livro de poesia, Campa Rasa e outros poemas (Edições Sempre-em-Pé, 2011). Meio-século largo durou o silêncio poético do autor, sem que nenhumas razões se lhe possam encontrar, além das que decorrem do desinteresse em dar à luz da publicidade as suas criações, pois não é crível que um poeta que escreveu uma sequência de quinze poemas, num total de trezentos e catorze versos, entre 23 de Julho e 8 de Setembro de 2006, se tenha calado meio-século.

Duas razões assistem, que isto confirmam: primeiro, os outros poemas do livro agora surgido contemplam inéditos em livro (um) e de todo inéditos (dezasseis) escritos entre 1952 e 1990, o que mostra um poeta que nunca sucumbiu a desânimo relativo à escrita de poesia; segundo, o volume que aqui tratamos apenas tomou forma por insistência do editor, José Carlos Costa Marques, como este nos dá a entender na curta e esclarecedora nota de abertura do livro.

Em cinquenta anos de silêncio público, mudou ou não a poesia de Cautela? Ao invés do que se podia esperar de tão longo hiato, não mudou. Logo no letreiro, Campa Rasa, se percebe o mesmo espaço mortal da sua estreia. De novo aqui, neste derradeiro palmo de terra, rural e raso, o que se joga continua a ser uma questão decisiva, tão decisiva como a morte diante da vida.

Na nota de abertura, pediu o editor atenção para o processo de interlocução da sequência de 2006 com um conjunto inesperado de poetas – ou nem tanto, se pensarmos que Cesariny tomou como mentor um Manuel de Melo – Frei Agostinho da Cruz, Bocage, Correia d’Oliveira e Teixeira de Pascoaes, o mais convocado, o mais presente, com duas epígrafes e uma longa paráfrase, no poema décimo, seis estrofes, “Vem tristeza, eu te conheço…”.

Conhecemos hoje a importância que Pascoaes teve na formação final do surrealismo português, na década de setenta, quando Cesariny lhe reconheceu uma importância superior à de Fernando Pessoa. Isto, que no momento passou por capcioso, ou por despiciendo, ou por marginal, sublinhou-se depois, na teorização antipessoana da década seguinte, com O Virgem Negra, como constitutivo, mostrando-se hoje um dos núcleos mais substantivos e genuínos do surrealismo português.

Neste sentido, a poesia Afonso Cautela interpreta a seu modo uma tendência geral da sua família poética mais próxima. Dir-se-á até que no seu livro, partindo dum caldeamento novo, por via dum poeta como Correia d’Oliveira, que nunca interessou Cesariny, mas cuja familiaridade com Pascoaes era imensa, e o mesmo se apontará para Frei Agostinho da Cruz, a tendência geral anterior se reforça num sentido mais largo e singularizante.

Sublinhe-se: um poeta, Afonso Cautela, nascido em época heróica da poesia portuguesa, as décadas de cinquenta e sessenta do século XX, tomando do surrealismo a sua linguagem libertária e calando-se durante meio-século, reabrirá depois no momento do reaparecimento, para o alargar e vivificar, o rego pelo qual o surrealismo em Portugal, pela magna e mágica mão de Mário Cesariny, se fechou.

De resto, se o surrealismo é, mais do que uma questão de literatura, um problema vital, como as mensagens do movimento fizeram questão de reforçar, então este livro aí se perfila como de suma importância, primeiro para o seu criador, que nele teve um momento epifânico de amor pelas coisas vivas e mortas, numa síntese que só ele sabe quão feliz, e em que faz pleno sentido o convite endereçado aos místicos da Arrábida e do Marão, e depois para nós, leitores, que vislumbramos através dos raios destas palavras, no palmo final de terra, ou no berço inicial, a unidade maior da Vida.