EDGAR PÈRA
Sudoeste & Almada nos meus filmes
Breve relato ilustrado
Li A Cena do Ódio aos 13 anos, mesmo depois do 25 de Abril, e no meio de tantos panfletos e manifestos este poema parecia-me o mais revolucionário de todos os discursos (3 ou 4 anos mais tarde leria outro manifesto fundamental, Discurso sobre o Filho-da-Puta de Alberto Pimenta, mas isso é outra história). Durante a minha adolescência José de Almada Negreiros era, aos meus olhos, um poeta, arauto da insubmissão futurista. Foi no início dos anos 80, já na ressaca da revolução, que me aproximei do Almada pós-futurista, um artista obrigado a conviver com uma ditadura que eu apenas conheci de raspão durante a infância (mesmo assim, vivi o autoritarismo nas escolas e antecipava, com horror, a possibilidade de ir para a guerra), pelo que nunca poderei verdadeiramente imaginar os problemas resultantes de criar arte num regime totalitário. Foi nesse período que comprei num alfarrabista o número 1 da Sudoeste. A revista combinava o carácter programático e gráfico num só objecto, era um Movimento num só homem.
O conceito geo-mental de Sudoeste inspirou-me por diversas vezes ao longo do meu trabalho. Comecei por dar o nome à primeira produtora de Produções do Sudoeste. Em 1985, pouco depois de sair da Escola de Cinema, realizava uma série imberbe com bandas portuguesas pop-rock intitulada Os Musicais do Sudoeste. Confesso que a experiência foi algo traumatizante, dado que os meus objectivos não coincidiam com o que eu sabia fazer. Só oito anos mais tarde, com o filme SWK4, já depois de descoberta uma cine-linguagem própria (com A Cidade de Cassiano), iria ganhar coragem para trabalhar com actores, e, aos 32 anos, fui repescar os textos de um Almada dez anos mais novo. Senti uma enorme liberdade ao manipular a meu bel-prazer aqueles textos virulentos e proto-surrealistas da minha adolescência. Com SWK4 libertei-me finalmente das grilhetas realistas, pode-se dizer que a minha cine-identidade era finalmente impressa em película. Quando o filme foi exibido no Fantasporto a sala dividiu-se entre os aplausos e os assobios, cumprindo-se o milagre futurista de divisão das águas. No placard do hall do Teatro Carlos Alberto podiam-se ler alguns comentários (nada virtuais) ao filme, onde me chamavam Ed Pêra (uma referência ao famoso Ed «pior cineasta do mundo» Wood) e acusavam-me de pôr os esqueletos do Almada aos saltos na tumba (salutar ginástica). Não me podia congratular mais; como Almada um dia disse, quando se fazem homenagens o homenageado é afinal o homenageante, e eu não andava à procura de palmadinhas nas costas. Com SWK4 senti que continuava (de forma singular) a torrente modernista e futurista do início do Século XX. Na direcção certa (e certeira).
Já no início do século XXI imaginei, ainda à sombra do Sudoeste, uma série de filmes e cine-concertos intitulados (A Saga do) Sudwestern. Nele participaram músicos (Tó Trips & friends) e actores (Miguel Borges e Marina Albuquerque, entre muitos outros). A ideia base deste projecto foi criar um ambiente que conjugasse Fado e Western (no Sudoeste da Europa), com uma distância irónica. Afinal os fadistas e os cowboys viveram na mesma época.
Em 2017 regressei a Almada Negreiros na longa-metragem Caminhos Magnéticos (inspirada na obra de Branquinho da Fonseca). 34 anos depois de SWK4, filmei com Ney Matogrosso A Cena do Ódio, musicada por Paulo Furtado, a.k.a. The Legendary Tigerman. Foi um privilégio ouvir da boca do Ney aquelas palavras que há tanto tempo me perseguem, e que não poderiam ser mais actuais, apesar de todas as referências a uma época já remota.
Seguem-se imagens dos meus kadernos e fotogramas inéditos de SWK4. As sobreposições foram todas feitas na câmara (filmando uma vez, rebobinando e voltando a filmar).