Vasco Gato

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO11

VASCO GATO

Os imensos corpos que faltam
em todas as roupas quietas,
arrumadas, arremessadas.

E tanta gente pelas ruas,
vestida, capaz apenas
dos seus passos.

É hora já de inverter
o destino da elegia:

quem, se eu gritasse,
me ouviria entre
as ordens dos humanos?

 

Desbravada a dor,
no além-corpo trazido pelo nevoeiro,
os telhados vão florindo longe da nossa suspeita.
Empresto todo o sangue deste dia
à palpitação de uma parte recôndita
do destino. O nosso trânsito fez-se
de veredas flagrantes, e depois:
o elemento turvo em que
de facto desejávamos. Tu apareces,
e a minha mão, tocada pelo nervo do mundo,
abre-se no reflexo dos que nada esperam.

Acordei com a aspereza das coisas nascidas.
Há uma seiva amarga que começa a singrar:
não se chega mansamente a este meio de vida.
O néon da asfixia tem séculos de história.
Os seus dedos são um visco de complacência.
É preciso defender a respiração
como se disso dependesse a veleidade do poema.
Porque depende.
Porque o poema é, sempre foi,
acordar assim e pôr o pé no mundo
contra o baptismo do recato.
O poema não é engraçado
– faltam-lhe dentes.
Mas devora.
Limpa-se à manga esfarrapada dos teus olhos.
Faz com que eu te veja, lúcido fantasma.
Sigo-te nesta música peremptória:
dedicar as mãos ao muito pouco que obsidia;
para o mais, ter bolsos descosidos
e empanturrá-los com a vertigem
de corpos frios.

 

Tal vez um dia
o mundo venha a ser eléctrico,
como o pensamento

teremos saudades deste sofrer,
desta imersão no desespero
de um instante mais,
de uma volúpia mais,
de um frémito mais

não teremos saudades
do transístor — não haverá, aliás,
onde ter saudades

a inteligência, em todas as suas
desencarnações, jamais atingirá
o júbilo de dar banho
a um corpo alheio:
inerme, desejado ou

moribundo

 

Tenho a testa colada ao vidro
onde trepida o frio oceânico
o capricho das nuvens
é por vezes
a verdade inteira
de repente um eco de corda
o que não desejei na vida
copo de pé alto
com que beber
a desolação alheia
pois sei que existo mais assim
em estado de fita desmanchada
desbaratado pelo vento
é ficando parado afinal
que percebo o meu sangue
posso deixá-lo ao mundo
prefiro filtrar o óleo vagaroso da solidão