TERESA RITA LOPES
TRES PoemAs
Faro, 1937
TOUTANKHAMON ENTRANDO NA ETERNIDADE
Na sua estátua funerária
Toutankhamon
entra pela eternidade adentro
com leve passo
firme
Cresceu nesse limiar
como os Kourós gregos
A morte desfraldou
o corpo tolhido pela vida
Ei-lo a elevar-se
como a chama duma vela
Assim dentro do mar
liberto do peso de viver
nosso corpo caminha
como se voasse
MONÓLOGO DA CIGANA, DE DOUANIER ROUSSEAU
Chegou a altura de conviver com os meus amores
como feras mansas
mas não domesticadas isso não
não quero ser o domador de chicote em riste
quero tão só tocar
com o olhar a música que os exprime
que faz desabrochar
ao luar o seu sorriso
ou desferir ao sol sua mais funda chispa
Que venham
enfim
em paz
e me deixem depois
sozinha e plena
A MENINA COM UM PASSARINHO MORTO
(de um pintor anónimo do século XV, dos Países Baixos)
Que requiem poderá conter a mágoa do olhar desta menina
com um passarinho morto nas mãos?
No fundo do lago dorido
dos seus olhos o quieto tormento adulto de quem ama o que morreu
irremediavelmente
É com certeza o primeiro morto da sua vida
Por isso o seu olhar de um azul lancinante cresceu de repente
e ficou
da idade e do tamanho do de todas as mulheres que recebem um morto
amor no regaço
HOMENAGEM A JERÓNIMO BOSH
De onde saem e se expandem os deuses os demónios
os monstros que engendram o teu universo
útero transparente
bexiga azul
e desse líquido amniótico se sustentam?
De onde surgem as fantásticas hastes de paisagens submersas
as pérolas que flutuam
astros nados mortos
os peixes sonâmbulos
as algas carnívoras
os pássaros anfíbios
as palpitantes fosforescências
de águas prenhas?
E por fora deste ventre
outro
concêntrico:
o abismo circundante
O PAR, DE REMBRANDT, EM AMESTERDÃO
Amor é assim
uma mão alcança o ombro dela
e fica
e reconhece aí o seu justo lugar
Outra mão pousa
sobre um seio
não para abarcar para dizer “é meu”
mas “é aqui”
No amor as mãos sabem de olhos fechados
o caminho
No amor é assim:
os olhos e as mãos seguem caminhos
diferentes que vão dar ao mesmo sítio
No amor é como aqui:
os olhos e as mãos respiram ao mesmo ritmo
e suspendem-se
a ouvir o marulho subterrâneo do sangue
E então
ao posar-se sobre um seio votado à morte
a mão passa
para o outro lado do tempo
lá onde o mar soa mais fundo
e todos os corpos perdem os seus limites
ENCONTRO COM VELHOS AMIGOS
num museu de Whashington
1
As meninas
de Renoir
Parar
à sombra do olhar
das Meninas
de Renoir
Pedir
primeiro
à mais pequena
a que tem um regador
para me deixar cheirar
a flor
que tem na mão
e desfolhar
o malmequer
do seu sorriso
Pedir
depois o arco
à dos cabelos castanhos
e correr por aí fora
enquanto houver jardim
Pedir
a seguir
à mais crescida
para me dar a mão
e ensinar
meus gestos
a voar
e meus olhos
a contemplar
o ar
como se o vissem
E envolver por fim
num só abraço
as três meninas
quem sabe lá
se três lembranças
de mim
2
Os auto-retratos de Rembrant
Como quem faz um diário
Rembrant
foi pintando durante a vida sessenta auto-retratos
Ruga
a
ruga
fixou
o declinar
do seu olhar
São nítidos os retratos alheios
jamais os seus
sempre através duma névoa
se velava
aos seus próprios olhos
semicerrados
para se ver
ao longe
NO PRADO, PASTANDO IMAGENS
1
Antonello de Messina: “Cristo morto sustido por um anjo”
Cristo
abandonando
a vida
entregando-se
nos braços
nas asas
de um último
suspiro
seu moreno
suor
cheirando
ainda
2
Patinir
Descobrir
Patinir
meu amigo
há mais de cinco séculos
meu cúmplice
meu arrepio
meu guia
para um país
de vidro azul
sobrevoado
em sonhos
recuperável
talvez
quando abalar
da vida