Ruy Ventura

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO1

RUY VENTURA

contramina

(n. 1973), poeta, tradutor e investigador, publicou vários livros de poesia: Arquitectura do Silêncio (Prémio Revelação de Poesia APE, 2000); Sete capítulos do mundo (2003); Assim se deixa uma casa (2003); Chave de ignição (2009); Instrumentos de sopro (2010). Em Espanha, editou: Un poco más sobre la ciudad (Cuadernos Porticus, Villanueva de la Serena, 2004) e El lugar, la imagen (ERE, Mérida, 2006). Tem livros e poemas publicados/ traduzidos na Alemanha, no Brasil, nos Estados Unidos da América e em Espanha.

1.

          sangra-se a criatura. introduzida entre os músculos, a faca (ou lança) encontra imagens em dispersão, objectos com bolor ou com ferrugem, mãos cheias de sangue, folhas e livros com nódoas de tinta e de gordura.
          para que viva e permaneça, é necessário que o golpe rasgado entre os ossos lance nos olhos do criador alguns decilitros de água, salgada, nascida nas vísceras de um corpo em que algumas manchas na pele revelam úlceras no estômago ou no duodeno.
          apenas água – sal onde todos os sedimentos (do tempo e do espaço?), todas as secreções (da existência?), se dissolveram para produzirem uma luz branca que, tendo atravessado o prisma das palavras, se multiplicou num espectro – sem limites.

          aberta a ferida, o sangue pode alimentar o criador, mas jamais sustentará a criatura. guardado nos intestinos, permanece – até à solução nas entranhas de quem se escreve e modifica. em parte assimilado, em parte defecado, poucos vestígios deixa para além de uma memória cujos fragmentos ninguém consegue (ou deseja) registar.

          nada resulta da análise do sangue ou da água. colocados sobre lâminas de vidro, não deixam vestígios que permitam ao criador avaliar a consistência da criatura. glóbulos e plaquetas depressa apodrecem, na insegurança de um plasma sem capacidade para resistir à erosão de algumas células, cujo núcleo se divide até à explosão do tempo.
          numa das lamelas há contudo pequenos cristais de cloro e de sódio. regressada ao vapor do início, a água proveniente do tórax entra de novo num ciclo feito de fogo e de metamorfose. mesmo sem espaço, volta a irrigar quanto transcende a estrutura de um edifício perfurado pela faca ou pela lança.

          sangra-se o poema. não sobrevive – se a água não circula pelas veias. 70 % do poema é apenas água – salgada –, sal da terra. a mina sustenta todas as formas de vida que povoam e elevam a existência.
          haverá células mortas (o ferro evita a anemia, mas não impede a secura e o apodrecimento das palavras). o corpo permanece. com sangue, sem água, não passará no entanto de um cadáver – múmia conservada como pedra numa redoma de vidro.

2.

          a gordura (das palavras) altera a circulação do sangue nas veias que conduzem ao coração (do poema). a cisão dos átomos difunde sobre o corpo uma sombra invisível. cria – na garganta e nas glândulas – nódulos que vão resistindo à estabilidade da matéria.
          a luz (não nego) atravessa a edificação dos ossos. chega a devorar pedaços de carne que Saturno não poderia rejeitar. mas a gordura (das palavras) vai alterando a circulação (no poema). há corações que explodem, mãos que enegrecem quando a tarde avança.
          cessante, a escrita anula a escrita e a leitura. (traduzir aumentaria a instabilidade das células.)
          há ouro lançado no aterro. a amputação dos dedos salvar-se-ia por ali.

3.

          a gordura submerge os ossos – e o poema. a anorexia (a que alguns chamam “elegância” ou “concisão”) impede os movimentos de um corpo que precisa de músculos para subir até à boca – do vento ou do inferno –, lugares sem espaço nem semáforos na circulação da alma.
          é preciso que as glândulas funcionem apenas o necessário. o excesso e o defeito perturbam o equilíbrio do organismo.

          o trânsito, nos intestinos, rejeita uma vida sedentária. fibras, bífidus e muita água, sem aromas, da nascente, auxiliam a digestão de um mundo com pés mergulhados em óleo de fritura, comendo carne e tubérculos sem qualquer capacidade de dissolução na corrente que alimenta os vasos sanguíneos.
          submersos os ossos, entupidas as veias – o colesterol do poema impede a circulação do sangue nas palavras (água salgada a irrigar as estruturas do cérebro).

          pode bater o coração. pode bater. sem a agilidade e o dinamismo das estruturas e do pensamento, nada nem ninguém conseguirá contudo evitar a síncope das válvulas do sentido. ou, pelo menos, o inchaço dos membros inferiores – à espera da amputação pela gangrena.

4.

          o retrocesso dos músculos e da carne colou aos ossos uma pele sem água. o esqueleto surge à superfície.
          (sem reboco, a estrutura não resiste ao embate da chuva e do vento. pilares e tijolos sujeitam-se a uma erosão que, em pouco tempo, arrasa o edifício.)
          a pele protege os ossos e a cartilagem. não é contudo suficiente para compensar a atrofia dos músculos.
          o movimento do corpo apresenta um frágil equilíbrio. quase morta, a criatura espera sobre a mesa o avanço do lume e a dispersão das cinzas.

5.

          uma longa tábua (de castanho? de vidoeiro?) apresenta sobre os veios um corpo em decomposição. o quadro, composto em Basileia no ano de 1521, chama-nos para o seu exercício de síntese.
          pintado agora, o apodrecimento das células seria apenas uma linha sinuosa sobre o espaço. o grafiti ocuparia paredes e paredes de betão sem tinta. nada mais seria necessário.
          ressuscitar é recompor os átomos carbonizados pela introdução do ferro e da madeira entre os músculos e os ossos.

6.

          a autópsia confirma o estado do cadáver. a putrefacção suspende-se entre o quarto e o sexto dia de enterramento.
          aberta a caixa toráxica, verifica-se uma total ausência de vísceras. sem coração, sem baço nem pulmões, sem fígado nem estômago nem intestinos, às paredes internas encostam-se no entanto restos de uma complexa estrutura de circulação, que conduz o sangue e a linfa do cérebro às diversas partes do corpo.
          observado o esqueleto, nota-se a presença de cristais de salgema entre as vértebras e também, em menor quantidade, sobre o externo e noutros ossos do tronco.
          a pele, a iniciar o processo de desidratação, apresenta pequenas manchas, entre o verde e o roxo, distribuídas de maneira quase uniforme – mas com maior incidência sobre o polegar, o médio e o indicador da mão direita.

7.

        a impureza dos astros compõe o firmamento. o poeta entra de burro na cidade, deixando pelas ruas o estrume das palavras. resíduos de palha e de verdura fermentam na calçada, fazendo romper por entre as casas línguas de fogo que queimam o rosto e os cabelos.
        o odor do estrume incomoda os transeuntes. com a mão no nariz, abanam a cabeça, não percebendo que o gás libertado aqueceria o interior da casa onde habitam.

        batem latas do lado do rio. afugentam os abutres que tentam debicar a madeira do poeta. não seria necessário. ao seu lado, os corvos resguardam a impureza do corpo, onde brilha ainda a memória dos navegantes e de outro esperma lançado sobre as sílabas.
        o navio reflecte a terra inteira. os espelhos trazem de dentro todo o sangue que enobrece a madrugada. há risos e fumo cortando o horizonte. as ondas agasalham a montanha. trazem de longe o asfalto pisado e as imagens estranhas que povoam a forja onde fundiram a imperfeição dos sonhos.

      nada subsiste do corpo do poeta. ossos, cabelo, tripas, veias, pele e outras vísceras irão participar da podridão dos mortos. os átomos dispersar-se-ão. se o outro disse a verdade, reviverão nas árvores, na pedra, noutros pedaços da madeira de deus (alguns, talvez, abutres como os de agora).
        o estrume do poeta reverdecerá de outro modo. em ervas daninhas que nunca alimentarão o estômago de um anjo ou de uma besta, mas guiarão os olhos até à justiça da sombra, permitindo a constante e discreta movimentação do vento, que levará – sem pressas – sementes igualmente daninhas até aos confins da terra.

8.

          as flores, nesse prado, são de plástico. brilham. parecem lançar sobre nós um odor intenso.
          são na verdade plantas de cemitério, dispostas sobre o campo – nos seus caules de arame revestido.
          gotas de chuva deslizam nas pétalas de uma rosa. toco-a com os dedos. não encontro água, mas imitação de água. acrílico ou silicone colado sobre o plástico, em que a cor – iluminando embora o olhar (e a sepultura) – nada oferece aos sentidos.
          enterradas, essas flores permanecerão – mas nunca serão flores. para viverem, precisariam de morrer, de apodrecer – como escreveu Saúl das rosas (verdadeiras) com raízes, espinhos e perfume.

9.

          a memória-descritiva assegura-nos de que a estátua (ou medalhão) é de bronze, de pedra ou cera d’abelhas – mas no fundo temos a certeza de que o miolo da efígie não passa de sabão ou detergente.
          em segredo, a imagem do poeta foi talhada nos litros de gordura que a reciclagem juntou com devoção em latas ferrugentas ou bacias – e que a diligência misturou em casa com certo químico, para esfregar a roupa.
          há um ar de barrela na escultura sujeita à erosão dos elementos (para que a face não se reconheça).
          se a cinza branqueava o pano-cru e o sol corava, sobre a erva, a roupa branca – do esperma, da urina ou da catinga –, porque não lavrar no sabonete (no omo, no clarim, noutro produto – bom prà lavagem do corpo ou da farpela) busto ou memória que pareça bronze, pedra-mármore ou placa de cantaria?
          lavam mais branco estes rituais quando não têm espinha ou criação.
          assim se evitam sobre as faces cândidas as nódoas e as manchas do passado:
          de um lado a graxa, o unto, o beija-mão;
          do outro o escarro, o pontapé, a morte.

56.

          a velocidade auxilia a limpeza do motor. a incerteza do asfalto configura nos circuitos todas as sinapses que a sombra edifica. o voo não é, contudo, suficiente para limpar do habitáculo todas as marcas de ferrugem deixadas pelo sal e pela água. a oxidação toma conta das entranhas e lança sobre o estômago sedimentos e limalhas que o trânsito não consegue eliminar.
          mesmo limpo, o motor não ignora a entrada da erva pelas fendas do metal. chuva e calor mancham, e rebentam, a chapa (e a memória). o motor sobrevive ao concurso da existência. sem velocidade, sobrevive – diluído no ácido das esferas.

57.

         o ruído dos motores não impede a fixação das imagens sobre a estrada. o movimento acaba por lancetar cada uma das frases, deixando sobre a carne apenas o que lhe pertence, sem outros líquidos nascidos da decomposição da fala.
         o ruído dialoga com a imagem, tal como a imagem, ao longo da tarde, vai destruindo a essência dos motores. não há semáforos que consigam suspender a poeira sobre a mesa. nem os passos, em que a sujidade cerca os olhos sem sombra e as mãos cujas gretas representam um excesso de sangue na lembrança e na cativação dos dedos sob a pedra.
         a erosão é tão só um efeito de linguagem em que o freio não impede o transporte dos resíduos, numa enxurrada cujo entulho ocupa todos os caminhos disponíveis.
         coberto o asfalto, nenhuma incisão será possível sobre os ossos ou sobre a pele. dentro deles, um cérebro resiste à entrada das vozes e à sua fixação na imagem. só o movimento admite a entrada da sombra na circulação sanguínea. sem verbo, o ruído afasta-se. dissolve-se ao entrar nas páginas e ao ver-se confrontado com outros sons cuja estrutura reforça a dissemelhança da matéria.
         com violência, as imagens sobrepõe-se. esfaqueiam quanto as rodeia. só assim impõem nas artérias toda a água necessária para inundar – e salgar – o mundo, cuja passagem nos destrói e modifica.