Rui Lage

Fundación Ortega MuñozPoesía, S10

RUI LAGE

PORTO, 1975

POUCA TERRA

aos meus pais, Carlos e Cidália

Estava certo, esse mundo,
como um mapa todo de linhas puras
figurando um grande delta
branco ao redor dos dedos.

Era de cor o lápis que mareava
minha tão próxima
longitude do berço. Como
devia ser, como
estava certo, muito pouco
ficava por encher:
a mão bastava para compreender
o avião de cor em fuga desordenada;
hoje acha-se aquém
de toda a luz para que foi criada.

Estava certo esse mundo,
estava certo o rio, o astronauta,
a casa primeira, a cosmogonia
da cidade, o mito da flor, tudo
o que não tardaria a chegar à mão
que agora escreve exilada
do caderno de desenhos
e se desprende da morte a tanto custo
conquistada, até pender, com pouca terra,
pouca terra para os lados do levante.

Berçário, 2004


cafe piolho

para o André Guerra

O endereço da noite é na mesa ao fundo
sob a luz mais cansada.
Aí nos sentamos ao fim do dia
já demovidos da vida
(passada em revista e, feito o sinal,
pedida curta em chávena escaldada).

Para lá se dirige o passado à procura
do rostro que lhe esteve destinado,
mas logo o desencontra no café
onde, afinal, entrou enganado,
e tendo olhado em volta
achou-se vencido.

O que esperar desse rosto
a que soubemos apenas responder sem palavras,
caso entrasse agora, e se dirigisse,
irreconhecível, para a mesa do lado,
uma corrente de ar frio nas costas e de novo,
voando, o fumo do cigarro?

De consciência tranquila ou pesada
o tempo já foi das palavras
e os cafés de rostos familiares
que entram desfigurados.
Em vão nos chamaríeis agora
pelos nomes de baptismo:

já não respondemos por nós
pois raramente estamos
onde pensávamos.

O endereço da noite é na mesa ao fundo
sob a luz mais cansada.

Revólver, 2006


EN2

Escavo as trevas à força de faróis:
aponto à estrada florestal
esses dois minúsculos sóis
com que inauguro galerias provisórias
claustros, arcadas, naves arbóreas,
e de halos breves conjuro cancelas,
muros velhos, veredas, levadas.

O seu clarão torna visível o invisível,
traz coisas para a existência:
marcos quilométricos, apeadeiros,
serrações assombradas,
pilares de pesadelos que suspendem sobre os vales
absurdos viadutos aéreos.

Com faróis ilumino porque não tenho luz própria:
cego viajo, como a traça,
às voltas, às voltas,
tão negro como a noite que lá fora me cerca,
peixe dos abismos, toupeira,
cometa.

Estrada Nacional, 2016