Raquel Nobre Guerra

Fundación Ortega MuñozPoesía, S10

RAQUEL NOBRE GUERRA

LISBOA, 1979

ESCURO

contra a noite a palavra que cairá sobre
os homens de pulsos envolvidos em sangue
isto é o coração onde lhes chego pela garganta
arranco-os da terra à força bruta de braços

contra o medo a escuridão para induzir suave
uma ideia de céu contra o próprio céu agora
que a figura da noite não cabe na forma
de a dizermos rapidamente

virão em mim dançando a erudição do seu uso
com plumas e riquezas à boca do cais, fugiremos
reis da cruel justeza do silêncio tão maior

nos aterros que nos coiceiam em rituais de manada
iremos assim cheios só de viver, meditando palácios
no momento de cair

Groto Sato, 2014


PURa

esta gente que colhe água para derramá-la
compassivamente sobre a chaga
esta virtuosa carraça da solidão pública
com redentor cigarro público também
esta solidão assediando cretinos e sábios
esta deserta implausível cartada
grande força erguida a prumo

esta gente sobre esta imperial e sopa à frente
esta gente que se levanta de peito e escreve
para não matar ninguém

Groto Sato, 2014

Não foi preciso muito para que a cidade
começasse a tomar o veneno do milho
e fechasse tudo. A Palmeira, o Estádio,
a Barateira, até os grandes candidatos
à última cadeira ficaram por sua conta.
Lisboa é uma azinhaga tristíssima.

Talvez queiram acabar com a música
as doenças tropicais, os sonhadores.
Fechá-los no foyer servir-lhes faisão
e orquídeas negras, preveni-los de que
no sopé da lixeira haverá sempre lugar
para mais uma mantinha
Que dias estes em que o amor passou
para um tempo que não mexe.
Vida em troca de indícios
de que apenas depois percebemos
a dimensão furiosa do vazio.

Grandes clássicos da vida para quem acha
que por ter lido a Rayuela foi ao cu ao profeta.

Homem, se tiveres sorte saberás
que nunca foi preciso namorar Platão
para saber que o cocheiro vai louco e num só pé.

É importante esta narrativa agigantada de referências
para que tudo feche literalmente com o porteiro da discoteca.

E que não sejamos menos aqui, que ninguém nos ouve,
contra o jogo de não termos conseguido melhor:

I want to fuck everyone in the world
I want to do something that matters

Ficas a dever-me uma.

Senhor Roubado, 2016