PEDRO CROFT
SIN TÍTULO, 2017
PEDRO SERRA
XXI poemas portugueses
Ainfância completa, do mundo e do indivíduo nela, integra, nos poemas de Rui Lage, um fluxo de subjecti- vações que se perfaz como contínuo pela fidelidade a sucessivas teatralizações, enredadas entre a nomeação e o inominável, o invisível e o invisível, numa espécie de carta de marear e viagem, em regime de ritornello, feita de iluminação e cegueira. O saldo ou balanço de ser ‘pouca terra’ a que sempre nos toca (afecção ou resto) – em Lage com tonalidades políticas: o país esvaziado, devastado ou esquecido, aquém ou além dos limites do urbano, isto é, do Estado; e existenciais: uma condição pensante separada ou ‘exilada’ – move uma dicção quieta, sem sucumbir ao enlevo complacente ou patológico da bilis negra, nem à corrosão ácida do trabalho negativo do intelecto, muito embora temperada pela fina distância irónica, nunca diletante. Avançando com algum Antero, algum Pessoa, com algum Almada, mas também algum Manuel António Pina, afinidade electiva do poeta – inter alia, que não são necessariamente para aqui chamados –, o movimento ambulatório oscila entre o ‘lápis de cor’ infantil e a adulta ‘mão que agora escreve’, figuras que se assimilam no gesto de exteriorização da memória, dispositivos e disposições ‘cegas’ que inscrevem e cifram a ciência insciente do poema. Era ‘de cor’ (pigmento) e ‘de cor’ (do coração: par coeur) aquele lápis infantil, como o será também o da escrita do exílio sénior, muito embora supondo e admitindo translação de atmosferas e cenários, o que impõe desmancho da integridade do todo: do branco que rodeia os dedos que desenham ao aquém da luz da mão do escriba, ‘luz cansada’. Tanto numa “EN2” – isto é: a Estrada Nacional 2 de um país alcatroado –, como num “Café Piolho” – sinédoque do urbano, no caso, do Porto – o sentido da progressão ou endereço é a Noite, cruzada por um anónimo – o poeta, justamente –, “como traça, / às voltas, às voltas”, não propriamente movido pelo carpe noctem, mas como consciência num cenário ainda grávido de ignições ou ‘clarões’. Os dois ‘faróis’ ou ‘sóis’ do poema “EN2” serão, assim, análogos desses ‘lápis de cor’ e ‘mão que agora escreve’, todos figuras e dispositivos da emergência das “coisas para a existência”. Os poemas de Rui Lage, enfim, são o lugar de relação dessa dualidade solar: o mundo ‘certo’ da infância e a errância – o erro: veja-se como o passado entra no café ‘enganado’ – da idade adulta.
Sem terra para a Modernidade que, em declinação portuguesa, sempre foi engonhando, a poesia pode, entretanto, ser movimento furibundo: “Lisboa é uma azinhaga tristíssima”, lemos num poema de Raquel Nobre Guerra. A farpa é aguda, pois ‘azinhaga’ tanto pode aludir à dureza irredutível de um projecto moderno – o da cidade, precisamente, afinal emperrada por modos rústicos –, como atrai a famigerada Azinhaga do autor que nobelizou a literatura do país: isto é, a consagrou como valor de troca, quer o entendamos como preço quer como ideologia artiste. Deu aos que vêm depois o peso normativo do passado e dos hábitos de percepção com que relacionar-se. Enfim: “rituais de manada”, sendo especialmente execrada por esta poesia a ala dos ‘tristes’, dos que passeiam a usina melancólica na praça – a “virtuosa carraça da solidão pública” ou, ainda, a “gente que se levanta de peito e escreve / para não matar ninguém”. A sabotagem disto faz-se por demolição, com ironia ou sarcasmo alla rabiosa, faz-se, enfim, pelo crime como uma das belas letras: “I want to fuck everyone in the world”. Com ressaibos vários – algum Herberto poderia ser um deles – trata-se de “arranc[á-los] da terra à força bruta de braços”. Assim, contra a ‘noite’, dispõe-se a ‘palavra’ e o ‘sangue’; contra o ‘medo’, a ‘escuridão’; contra ‘o céu’, ‘uma ideia de céu’. Digamos que a poeta carrega o caos para alumbrar a estrela que dança: “virão em mim dançando” e “iremos assim cheios só de viver”, como lemos no poema “Escuro”. Poeta de uma vasta erudição, sem se ajustar propriamente à poesia dita ‘culturalista’, erudição que se indistingue de um insubornável vitalismo – será esta, talvez, uma descrição possível daquele singular ‘céu’ que nega o ‘céu’ das manadas –, vai-nos deixando dívidas e impelindo a ser devedores delas: “Ficas a dever-me uma”, conclui o poema de Senhor Roubado – estação do metro de Lisboa – aqui antologiado. A título de exemplo anoto, neste sentido, no já aludido poema “Escuro”, o feliz uso da preposição contra, que traz à retentiva, pelo menos, antecessores como Fernando Pessoa, Ruy Belo ou Manuel António Pina. Em português, a forma é anfibológica, podendo valer tanto como ‘oposição’ ou como ‘encosto’. Estas valências, enfim, devolvem-nos o enredo da relação da poesia de Raquel Nobre Guerra quer com o mundo da vida, quer com o arquivo de literatura e artes. Ou, com ressonância de Luiza Neto Jorge, figura tutelar da poesia pós-60: “viver / meditando palácios / no momento de cair”.
Também Cláudia R. Sampaio pode atrair um portentoso texto em prosa de Luiza Neto Jorge intitulado “O Facto Importante” – Urszene de poemas e figuras vários desta poeta –, concretamente levado para o teatro concentracio- nário de arranque da autora d’A Primeira Urina da Manhã: o hospital psiquiátrico. O sujeito do poema de Sampaio segue um ‘velho da perna torta’, o que o distingue do sujeito que diz no texto de Luiza, quieto e voyeur do episódio singular. Assim, o sujeito ‘levanta-se’ e é no movimento espacial diferenciado dele e do ‘velho da perna torta’ que sobrevém o acontecimento-mestre: “estatela-se lá à frente / e todo o hospital desaba”. A identificação com o ‘velho de perna torta’ não é completa, muito embora se possa considerar que insinua especularmente a ‘queda’ que o poema ensina – o poema cai da boca, dos dentes, etc. Contudo, há algo de diferente, pois o sujeito do poema – enfim: a poeta – é uma saturação de singularidades que se banalizam: “eu também desabo / instante sim, instante não”. Ora, este agonismo de emergência on e off, tombo e sublevação, supõe um modelo de corporalidade que define a ontologia do sujeito: “eles não percebem que eu, holograma / nunca sei onde vou estar”. A condição hologramática do corpo – lembrando, nalguns dos seus atributos, o ‘corpo deslumbrante’ de G. no capricho “rosencrantz, episódio dramático” do poeta António Franco Alexandre – diz-se também no verso final do poema: “sou toda inclinada”. Ou seja, é no interstício do estar ou não num lugar ou em qualquer lugar, que carreia um modo de insciência: “nunca sei onde vou estar”. Tudo isto para chegar a uma afinidade clínica, digamos, entre o poeta e o poema: “Este poema não tem cura. / Este poema não sabe que é / um poema”. Sujeito e poema incuráveis no sentido de que, como cor- pos, são uma estranha continuidade incontínua – o estranho espelho que é o Outro, por exemplo aquele Carlos do início do poema, “não percebeu que estou toda colada”. Fórmula que suporá, talvez, algum envio a Sylvia Plath. Um holograma, enfim, não tem ‘essência’, tal é caso do poema também, que como tal não se submete ao princípio de identidade e do modelo generativo que se lhe foi supondo: “Este poema é uma mãe em chamas / na barriga do filho”. A imaginação do fim que temos no terceiro poema seleccionado, uma ante-despedida, acrescenta algo à ontologia do holograma. Pelo já dito, ele não corresponde ao ‘mim’ que diz, que é afinal um nome deslocado, singularidade irredutível. Desse abscôndito ‘mim’ não fica nem ‘migalha’, mas deixa inter alia “abelhinhas doidas que ignoraram / o meu salto”, os poemas hologramáticos e a sua insciência de si que os torna infinitos, “vinco que não morre” num cenário global mortuório ou de “terra sem terra”.
Ao invés da ‘pouca terra’ ou vida de um lugar concentracionário, nos poemas de Nuno Brito a ‘certeza da expansão’ é imaginada como marinhagem cuja lei formal, dir-se-ia, é a do um que é dois – “Um marinheiro = dois marinheiros” é o título do primeiro poema de As Abelhas Produzem Sol, como num canto há duas orações, Agostinho de Hipona dixit –, abstracção que replica um mundo em que há ‘pessoas’ e, porque assim é, são garante da produção ou segregação de ‘futuro’. Valência que indistingue vida e poesia, faz do poeta, o ‘linguista da terra de fogo’, um abridor de portas, oficiante de um ritual sacramental – eterno retorno, repetição na diferença. Por analogia, a ‘porta’ que se abre, o acto baptismal, é saxum molinum que novamente conjura a figura do dois: as duas mós, figura que poderia sustentar a atracção de um poema de Fiama Hasse Pais Brandão. O par que é Um significará algo como uma poesia que é heliotropia: “um homem que olha diretamente para o Sol”. No poema “Enquanto dormes”, a moa- gem de sono e vigília, de macho e fêmea – “Tem já na boca o hálito da fêmea” ou “o mesmo sabor agora nas duas bocas” –, da vida e da literatura, da noite fosfórica – a ‘Pedra de Bolonha’ – terá uma síntese na figura final: “Ao lado deste homem está um diário aberto que nos diz que Os géneros mentem”. A mentira extra-moral dos ‘géneros’ pode engatar a mistura genológica do livro As Abelhas Produzem Mel – lirismo/ensaísmo, verso/prosa, etc. –, mas também a confusão erótica ou amatória dos sexos. Quem diz a moagem do dois, diz também o ‘destilar’ da canção, ou o canto como destilação, o que encontra uma revisão do Novo. Afinal, as vanguardas foram, em rigor, “curvas que parecem rectas”, ou seja, nunca “negação, apenas incorporação do desvio”. Poesia e artes, assim, são “Jogos de azar de uma civilização passada / variantes desse jogo numa civilização futura”. O Novo, como o Amor, é ‘arma- zenamento’ e ‘pacto’, decerto provisório – um para sempre que sempre acaba – mas também promessa de infinito. Enfim, o ‘jogo sem jogo’ da poesia passa também pela mixagem de referências high brow e low brow – que em rigor replicam, muito embora sem propriamente ares de família, na poesia dos poetas aqui elencados –, e que posso miniaturizar em Nuno Brito na aposição de Pogues – “Dirty old town” – e Agostinho de Hipona, irmanados como cantores novos de um projecto poético assente nas sagezas da ‘ficção’: que é derrota, tanto roteiro como desbarato.
O impulso pneumático da poesia do Livro Redondo, de Catarina Nunes de Almeida, tendendo para as figuras do círculo, do ciclo, da completude e da unidade, encontra um estimulante símile nos ‘livros redondos’ de Torres Villarroel. O caso é exemplar, a muitos títulos, do Moderno como tempus novus possibilitado por espaços heterotópicos – museus, arquivos –, paradoxalmente instaurando também a sua necessária transcensão. As esferas terrestres e celestes do novator espanhol foram arquivadas, o episódio é conhecido, como livros, acto de museifica- ção do mundo – a sua cadaverização – com a concomitante asseveração de que a ‘vida’ est ailleurs. O ‘vivo’ advém do ‘morto’, digamos, alquimia enigmática que atrai também o ómphalos e o cofre uterino, onde aninha um príncipe escondido. O Tu que, com diferentes liturgias do amor, o sujeito dos poemas de Nunes de Almeida apostrofa – Buda, Cristo, o Amante ou o Filho (ao filho Gustavo, ‘bibliografia activa’, é dedicado o livro) – é um corpo simultaneamen- te alheio e próprio – indiviso; entretanto, o sujeito é ‘disciplinado como um cadáver’ – ou seja, é uma poeta – que alumbra ‘tudo’ sem saber porquê: não há enigma, dir-se-ia, pela lição tutelar de Alberto Caeiro, num poemário que também conjura Pasolini, Adélia Prado, Ruy Belo ou Anacreonte. Não haver enigma, em rigor, é um enigma, como decorre dos versos que dizem não ‘ser’ o Eu ‘do poema’, nem ‘estar’ nele ou ‘conhecê-lo’. E pur... um galo canta, ou seja, o mundo-‘tabernáculo’ nasce do canto, justamente. A poesia, no Livro Redondo, é uma prima philologia: “É aqui que estamos / onde estamos” ou, ainda, “o poema compreende agora a paralaxe invisível das estrelas”. A nomeação poética é, assim, oferenda e excesso, salmodia ‘habitada’ (em poemas e versos razoavelmente longos, de sintaxe fluída, domesticando o discursivismo pela aposição de imagens surpreendentes), suturando visão simbólica e pensamento, dom e contra-dom. Ou, recortando dos poemas seleccionados, se “Certos nomes estendem a casa multiplicam o alimento”, igualmente “Sei que o nascimento é uma missa de corpo presente”. A poesia, enfim, é uma insubornável admissão do direito de o banal – o mundo, precisamente – devir excepcional: “Transforma-se a colcha lisa / num dos nomes de deus”, versos que recorto de um poema do Livro Redondo que aqui não foi respigado, mas podia perfeitamente tê-lo sido.
Um poeta escreve sem pestanejar, dir-se-ia aliás ser gémeo daquele animal de olhos sempre abertos de que fala o Aristóteles – o peixe. Na edição da Enfermaria 6, a capa do pequeno volume Fome, de João Moita, reproduz, em disposição longitudinal, a gravura em tom sépia do esqueleto de um peixe, também inscrito no verso da penúltima folha do livro e recto da última, neste caso em tinta negra, em posição horizontal e aumentando a escala da figura: verso e recto abertos, expõem o peixe seccionado pela nervura do livro. Por último, a imagem fractal volta a ser reproduzida, em corpo menor, no verso da última folha, a que alberga o colofão, novamente em tinta negra e disposta longitudinal- mente. A repetição na diferença desta imagem rima com o programa poético do sujeito lírico: “Venho para anunciar que tudo contribui / para a hipóstase do recomeço”, lemos em Miasmas. Ancestral e sempre nova, a escrita poética é recomeço fundante do mundo, um “rumor que embal[a]” do “mundo [que] é a tua vigília”. Fome reúne poemas que, grosso modo, se ‘esqueletizaram’ em relação aos que foram arquivados em anteriores livros – da ‘humildade’ de um tempo prioritário de leituras (e.g. Antonio Gamoneda e Herberto Helder), ao tempo de um escrita ‘humilhada’ –, mas tão só para na redução intensificar ainda mais vigilância e insónia no ritual (‘velas’, ‘acólitos’) ‘arrepiante’ de nomeação/ criação do mundo. Arrepio e rumor que insuflam versos em que se percebe ainda a cadência do versículo bíblico e a assimilação profana de um deus veterotestametário. Isto é, violento: “A violência é a religião de Deus”, lemos no poema homónimo do poemário O Vento Soprado Como Sangue. Poesia ‘religiosa’, pois: indistinguindo o gesto de re-ligare do acto de re-legere. É esta a ‘fome’, de palavra e de mundo, no fundo, sustentada pelo “Arrepio: / prazer dos contrastes / abrangência das contradições”. Sopro sanguíneo, isto é, sempre mediado pelo corpo, fazendo e desfazendo corpo com o corpo da Natureza. Assim, o poema será como aqueles pássaros que preferem “ninhos que se suspendem no vazio”, tendendo ao instante de arroubo, sendo que tal hic et nunc é ficção suprema, pelo que são aves que, no fim da viagem aos confins do desconhecido pelo qual transitam – em caminho de ‘morte’ e ‘deslumbramento’ enlouquecido –, “terão engolido mais céu que alimento”. Tudo afinal, já tatuado ou predestinado na infância – do sujeito e do mundo. Infância como “enxoval [que] apodrece nas arcas imaculadas”, não-tempo em que se “incubavam os germes da violência”.
No modo irónico subtil e maior que é o seu, Tatiana Faia proporciona-nos o retrato do que poderá ser a arqueologia dos seus poemas: “escavado com o cuidado de pincéis que afastam o pó / quando os arqueólogos desta equipa puderem decidir / que o que em ti esteve vivo é apenas este golpe de teatro / uma coisa para ser guardada numa caixa insignificante / num museu”. Versos do último libro édito, Um Quarto em Atenas, não deixam de repli- car a tensão vida/arte que temos já cifrada num título antecessor: Teatro de Rua. Note-se que o ‘vivo’ demandado pelo trabalho arqueológico – e que se deduz tratar-se do objecto principal da tarefa – é cifrado com tonalidade de moderada displicência, o que não significa que nele se não invista importância; ainda, é mostrado como coisa que não é exactamente um ‘em si mesmo’, mas sim uma ficção – um ‘teatro’; e, sobretudo, se apresenta como coisa que tende para o arquivo – o ‘museu’. Ora, o poema “Observação de Autor Desconhecido Enquanto Vítima do Síndrome de Penélope” talvez nos devolva uma espécie de filme de palavras da condição dessa sorte de poeta dentro e fora do mundo da vida – de um mínimo de vida –, imerso numa mise-en-scène que o rodeia de ‘bárbaros’ e cujo enco- lhimento – ou exílio solitário – se diz assim: “minguava agora entre água estagnada / e uma mesa calcetada por um caco”. Lembra vagamente algo do poeta no Corte Inglês de Ruy Belo, mas não é esse o ponto relevante. Por um lado, o poeta opta “pelo lado mais oscilante / de usar um nome ou de nunca ter sido alguma vez / verdadeiramente circunstancial”. A míngua do poeta é também a míngua de uma qualquer circunstância marcante, marcação que não obstante faísca substancialmente nos poemas de Tatiana Faia – geografias, lugares, espaços toponimicamente doa- dos (e.g.: Lisboa, Atenas, Oxford) –, o que, no extremo, faz da sua poesia exemplo de uma muito séria resistência às políticas e maneiras da crítica cultural. Isto não significa que a poesia em pauta se mova por aquela injunção modernista de que a linguagem ensina a execração das coisas. A sua é uma “arte de subtrair coisas” que, parado- xalmente, também “continua a acrescentar”. O poema “A Beleza dos Teus Amigos”, entretanto, fornece algumas achegas mais. Aí, o teatro do mundo é tardio, isto é, vem depois da antiga primavera grega – a poeta, recorde-se, é uma reconhecida helenista: “é tarde demais para falar de centauros”, lemos. É contra essa Grécia póstuma que se enquadra uma circunstância qualquer, por exemplo, o “teu casamento”. O sujeito do poema, por outro lado, tem “sido o estrangeiro que se observa / a partir do escuro” e que “avança na última estação em direcção / a um pouco mais de nada”. A composição do lugar, entretanto, modeliza a hegemonia dos ‘bárbaros’, refractados em descrições de cunho crítico social e político: e como saldo, “o contrário da vida é isto mesmo”. Contudo, o sujeito do poema não perfaz a redenção de tudo isto pelo viés de um nostos: “nenhum poema te deve já / a articulação de um regresso”. E pur... o saber-se e dizer-se “estar vivo” é ainda acolhido no poema, não foi subornado. Por um lado, na antecipação – na ‘espera’ – dos amigos: “na concentração de uns segundos / num parque coberto de neve”. Por outro, na poesia como ‘fazer’ e ‘refazer’ que é cálculo incerto “aqui e agora”. Ou seja, na ficção de instantes – o instante como ficção, justamente – cuja banalidade devém extraordinária. Que estes instantes do ‘estar vivo’ demandem arquivo – demanda que só aparentemente é retroactiva – é outro modo de colocar a hipótese indeterminada de haver ainda espaço e tempo para a poesia.