Patrícia Lino

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO11

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JUAN RAMÓN F. MOLINA
III, 2020
Del cuaderno: De un paisaje incierto y sereno

PATRÍCIA LINO

PEQUENA TRAPAÇA ENGENHOSA

Obedeço aos impostos anuais e às instituições onde ensino
poesia, desaprendendo a pátria, o belo, o cânone e a praxe.
Sou uma mulher leal, ordinária e tenho alguma dificuldade
em posicionar-me verticalmente no hábito e na prática.

Obedeço à respiração, ao sol e cada vez mais ao cansaço
dos dias úteis, reconhecendo a luz e a beleza espontânea
que há em inspirar e expirar, tremendo, uma e outra vez
até à morte, ao sonho e à memória. Sou um rapaz terno

que obedece às regras de segurança e tédio dos aeroportos
à gravidade, à visão, à escuta. Deposito no verso o sopro
do que vejo e escuto, e escrevo de cabeça erguida, ouvido
voltado para a reverberação do grande mundo reprimido.

Obedeço ao poema, que é o silêncio em fala, a curvatura
do meu corpo até ao chão, noventa graus um pouco tortos
e interessam-me os tortos, o mundo coxo. Vou de orelha
encostada às nossas mães e avós, de olho e retina aguçados

sobrevoando a história total. Interessam-me o estudo aéreo
e o rigor panorâmico das aves. Sou uma galinha, descendo
do antigo quetzalcoatlus e ataco, visceral e gorda, o antigo
e masculino consórcio dos deuses. O poema é um tijolo alado.

Obedeço sobretudo ao amor, aos semáforos e aos sinais de rua.
Um assegura os outros, os outros asseguram o amor. A carne
interessa-me também, como me interessam os sismos, a dor
as mãos e as correntes de água. Trepo o diospireiro da casa

com o único propósito de comer. Caio, ascendo e incendeio
o jardim. Sou uma menina muito delicada e é com delicadeza
que projeto o poema monstruoso, como um ralo no Pacífico
e logo adormeço. Nasci para exercer o feminino e o atómico.

USINA NUCLEAR

Sobrevivi às tias, ao mar e ao cânone
à cantada gutural e seca dos macacos
ao disparo do canhão e às mazelas
dos gatos. E franzindo a sobrancelha
sobrevivi também ao fervor copulativo.
Comprei cactos, vassouras, panelas.
Sou um erro do sistema, “uma usina
nuclear”, disse ele gracejando. Afinal
sobrevivi à nação do eterno ontem e
em silêncio, corroborei o receio
dos inimigos: um grito sem volta.
Como sobrevivi, não importa:
talvez em silêncio, talvez cantando.
Aborrecida, não pude senão, furiosa
agarrar-me ao tempo, trepar as costas
largas dos deuses. Sobrevivi também
ao pater familias e ao braço, inquieto
colossal e farto da escrita. Aqui estou
entre a tradição e a voz, escrevendo
contra um país burro. Impossível
na verdade, roçar a língua na palavra
lúcida, e responder: como sobrevivi
a este braço potente que é a extensão
de um corpo teso, quadrúpede dizendo
e insistindo, mais do que tudo crendo
na bizarrice do poema primo e cintilante?

TRISTIS ET PROMISSOR INCIPIT

Tampouco vi Deus ou a Amazónia.
Chegarei atrasada, uma das pernas
mais curta, a coletar o múltiplo e
para sempre sumido passado grande.
Não me esqueço de apagar o lume
ao sair, e já sei como se carrega
o peso dos livros: caminhando
esq.-dir., até endireitar a carcaça.

Falta-me paciência para o verso
predicativo. Duzentos e seis ossos
uma língua, duas mãos sinuosas
e um crânio volante, avoado, faminto.
Suspenso o lume, assopro a sopa
de feijão. A espera amansa tanto
a palavra como o estômago vazio.
Mamífera deliberadamente só.
Conto os feijões, trago-os um por
um à superfície, engulo depois
o caldo. É hora de pular, e pulo
com o afeto do corpo, vacilando
ao pousar. O futuro é para trás.

A LUTA ENDIABRADA DE UM BRAÇO

Tenho tanto medo de partir um braço
sobretudo o esquerdo, e tornar-me
absolutamente inútil. Como errar o mundo
sem errar a gramática? E como errar a gramática
sem um braço? Especialmente o esquerdo
danado e pungente, um bastão feminino
empenhadíssimo em dizer a história natural
no país dos cordiais?

Dizer a história natural é errar a gramática
e errar a gramática é errar o sujeito
regressar ao início dos inícios do planeta
à primeira casca de banana, tropeçar
no primeiro dos murros, escancarar-se
através da luta endiabrada de um braço
gago e engasgado, mínimo, pateta

o membro esguio de um corpo no espaço
um desvio promissor até ao presente

Ou a canção gigante

POÉTICA ZAROLHA

Dedico-me ao verbo e à navalha
com que não aparo os pêlos filosóficos
(apesar de saber como os usavam
cínicos, estoicos e peripatéticos)
e com que relutante disseco a tradição
o cascalho, a anatomia canónica.
Repouso a faca sobre as duas pernas
e falta-me a paciência, a saúde
sintática. O poema é o poema será
ora esta vontade de duas coisas
ora a reserva com que me encolho
e recolho. A mudez voluntária
do indicador alado, que dá voltas
projetando a forma: aperfeiçoar
o que se torce e contorce, o dorso
truncado, teso, ante a sentença
crítica, as listas, a santíssima
trindade. Contornar o aborrecido
estado das coisas, benzer o feio.
Eva Maria, cheia de graça, mãe
Irmã, avó, abençoai-nos. Amen.
Parar aqui ou adiante, entoando
o canto empenhado, engasgado
suado. Preocupa-me sobretudo
a palavra zarolha, anamórfica.

AMOR TRANSATLÂNTICO

Diz-lhe que volto hoje para casa.

Assim que chegar, pulando o portão
depois da alegria desenfreada dos cães
baterei à porta. Uma sílaba gigante.
Olhar-me-á com espanto, envelhecemos
as duas, tão depressa. Mãe.

Diz-lhe que volto amanhã para casa
e que a California me atrasou.

Assim que chegar, tocando à campainha
depois da alegria desenfreada dos cães
ela abrirá a porta. Uma sílaba tremenda.
Mãe. Toca-me sempre o rosto três vezes
para ver se existo. Não existo.

Diz-lhe que volto para casa mês que vem
e que a América do Sul me atrasou.

Ela estará à minha espera, sorrindo:
entre a alegria desenfreada dos cães
perguntará pelo que vi e escrevi.
São Paulo, Santiago, Bogotá
mil engenhos verbais, estudos
anatómicos, ruidosos, atómicos.
Sílaba extensa, um amor transatlântico.
“Não há vida para tantos incêndios”
dirá a mãe. “Poemas, talvez”.

Diz-lhe que volto para casa ano que vem
e que as palavras me atrasaram.