Nuno Júdice

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO2

NUNO JÚDICE

PoemAs

Mexilhoeira Grande, Algarve, 1949.

ÀS VEZES

Às vezes sentimos que o tempo chegou ao fim, que
as portas se estão a fechar por trás de nós, que já nenhum ruído
de passos nos segue; e temos medo de nos voltar, de dar
de frente com essa sombra que não sabíamos que nos
perseguia, como se ela não andasse sempre atrás de nós,
e não fosse a nossa mais fiel companheira. Às vezes,
em tudo o que nos rodeia, encontramos essa impressão de
que não sabemos onde estamos, como se o caminho para
aqui não tivesse sido o mesmo, desde sempre, e tudo
devesse ser-nos, pelo menos, familiar. A solução é pegar
no fim e metê-lo à boca, como se fosse uma pastilha
elástica, derreter o sabor que o envolve, por amargo
que seja, e no fim pegar nesse resto que ficou e, tal
como se faz à pastilha elástica, deitá-lo fora. Para
que queremos nós o nosso próprio fim? Já bastou
tê-lo saboreado, derretido na boca, sentido o seu
amargo sabor. Então, libertos do nosso fim, veremos
que as portas se voltarão a abrir, que a gente continua
a andar à nossa volta, que a sombra já não nos mete medo,
e que se nos voltarmos teremos pela frente o rosto
desejado, o amor, a vida de que o fim nos queria ter privado.


REGRESSO A HÖLDERLIN

Quando parti do princípio de que hölderlin poderia
servir de exemplo para o uso poético da loucura,
não tinha visto em que circunstância ele se fechara
num quarto com janela para o rio. E quando
olhava pela janela, o tempo não parava de o atormentar:
queixava-se de que a música das águas não parava,
de que a chuva engrossava o caudal das horas e
dos meses, e inundava as margens de instantes
que ele teria de ir apanhar com as mãos, às braçadas,
até ficar com os braços cheios desse tempo que
não lhe pertencia, e a que não sabia o que fazer.

Então, o que ele fazia era tapar os olhos quando ia
à janela. Mas o vento batia-lhe na cara, e ele sentia-se
como um pássaro que estivesse a ser arrastado
para o fundo dos continentes mais longínquos. E
gritava o nome da mulher amada, que talvez já tivesse
morrido, mas que ele continuava a chamar, como
se ela o ouvisse. Da outra margem, as crianças
brincavam com ele, e respondiam-lhe. «Estou
aqui!» E ele chorava, embora os loucos não devam
ter sentimentos, nem sofrer com as coisas do mundo
normal, de que os afastam, como se estivessem mortos.

Naquele quarto da torre, hölderlin talvez não fosse
um bom exemplo de loucura. Mas vou à janela, de
olhos tapados, para repetir o seu gesto. Na rua, não
corre nenhum rio; e se gritar o nome da mulher que ele
chamava, nenhuma criança me responderá em seu
nome. Hoje, a loucura não faz parte dos rituais que
pontuam a vida das cidades. Quem enlouquece anda
no meio da gente, fala como se a razão lhe pertencesse,
traz os mortos metidos na pasta da memória, e deixa-os
ficar para que ninguém lhos roube. Vagamente, destapo
os olhos, e hölderlin sai de dentro de mim, com os
braços cheios dos instantes que nunca viveu.


A CRISE GREGA

Foi nas ilhas gregas que vi o mediterrâneo
completamente azul, sem sombra de transparência. «E
ainda bem que é assim», disse-me a rapariga grega que
servia cafés à beira das rochas. «Conheci alguns que
quiseram rasgar o mar para ver o que ele escondia,
e nunca mais voltaram.» Percebi o que ela queria: que
eu rasgasse a superfície do mar, e descesse os degraus
do abismo que nos prende até à eternidade. «Se vieres
atrás de mim, e me puxares de volta, farei o que
desejas.» Mas ela fingiu que não percebia a minha
língua, embora falássemos num inglês de aeroporto.

E quando chegámos ao grande anfiteatro, debaixo
das colinas de pinheiros bravos e dos bosques de
ciprestes, o céu estava completamente limpo, como se
os deuses já tivessem deixado de existir. Ainda recitei
um verso em grego antigo, pondo as aves em
debandada. «Vês o que fizeste?», gritou-me a rapariga
grega. «Encheste o céu com uma nuvem de pássaros!»
E ficámos a olhar para eles, à espera de saber para
onde se dirigiam. Mas fazia-se tarde para apanhar
o barco. As ilhas fazem-me claustrofobia, disse
à rapariga grega. E entrei a correr para o barco que
já tinha os motores a trabalhar, sem lhe pagar o café.


NUMA ESQUINA DO INVERNO, ENCONTREI A PRIMAVERA

Que faziam naquele jardim de pedra as árvores brancas
com o seu perfume de magnólia? As suas copas batiam
contra o sol como asas lêvedas, e as pombas excêntricas
do inverno caíam na relva numa embriaguez de cio. «De
onde vem este perfume?», perguntavas. O céu despejava-o
pelo gargalo das nuvens, e o chão brilhava sob o líquido
transparente. E tu abrias a ossatura das palavras com
a lâmina doce dos teus lábios; pousavas cada sílaba
na mesa anatómica da frase, e era como se inventasses
cada significado do amor, ou o limpasses do tampo
da mesa como se faz às migalhas que os pássaros virão
disputar, com os bicos temíveis de uma fome celeste.

Era o inverno em que ninguém sabia que águas
alimentariam as folhas; e os rios secos da memória
abriam-nos o seu leito. Em vão procurei uma descrição
das tardes ao teu lado, o desenho minucioso das formas
do teu corpo, a luz vaga de um entreabrir de olhos sob
o reflexo incandescente de um desejo que não cede
à ascese do poema. Todos os dias te encontro; e todos
os dias a manhã se concentra no centro de ti, quando
te aproximas, e um movimento de cor te envolve,
e faz do teu corpo o centro da única paisagem que
percorro, sob o sabor lento de uma realidade em que
os sonhos se esbatem, como se os tornasses inúteis.

Pudessem abrir-se as portas da noite, e ouvir o que
cantam as mais longínquas aves, ou o cego rumor
dos canaviais, ou um rastejar de répteis nos buracos
dos muros: e dar-te-ia essa música de que é feita
a sombra para que as tuas mãos a transformem na
matéria da respiração, no som de um trago de fogo,
no lume brando da vigília em que o teu contorno
se esculpe, e os meus dedos o percorrem, circunvalando
ângulos e colinas, invadindo segredos e fontes,
demorando a viagem no porto dos teus cabelos,
até chegar ao cais dos teus braços, e sentir
a ondulação exausta, a nua espessura do fim.