Maria do Rosário Pedreira

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO2

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA

Lisboa, 1959.

Arte poética

Num romance, uma chávena é apenas
uma chávena – que pode derramar
café sobre um poema, se o poeta,
bem entendido, for a personagem.

Num poema, mesmo manchado
de café, a chávena é certamente a
concha de uma mão – por onde eu
bebo o mundo, em maravilha, se tu,
bem entendido, fores o poeta.

No nosso romance, não sou sempre
eu quem leva as chávenas para a mesa
a que nos sentamos à noite, de mãos
dadas, a dizer que a lata do café chegou
ao fim, mas a pensar que a vida é
que já vai bastante adiantada para os
livros todos que ainda pensamos ler.

No meu poema, não precisamos de café
para nos mantermos acordados: a minha
boca está sempre na concha da tua mão,
todos os dias há páginas nos teus olhos,
escreve-se a vida sem nunca envelhecermos.


Ainda bem
que não morri de todas as vezes que
quis morrer – que não saltei da ponte,
nem enchi os pulsos de sangue, nem
me deitei à linha, lá longe. Ainda bem

que não atei a corda à viga do tecto, nem
comprei na farmácia, com receita fingida,
uma dose de sono eterno. Ainda bem

que tive medo: das facas, das alturas, mas
sobretudo de não morrer completamente
e ficar para aí – ainda mais perdida do que
antes – a olhar sem ver. Ainda bem

que o tecto foi sempre demasiado alto e
eu ridiculamente pequena para a morte.

Se eu tivesse morrido de uma dessas vezes,
não ouviria agora a tua voz a chamar-me,
enquanto escrevo este poema, que pode
não parecer, mas é, um poema de amor.


Dêem-lhe o que pedir – a mão aberta como
uma ave deitada no seu peito, estancando a dor;
e beijos, muitos, pequenos goles de água na sua
boca triste. Levem-no para a luz e acendam
fogueiras nos seus olhos, pois esteve cego para
o amor. E cantem-lhe ao ouvido fados que o
tempo não possa desmentir, dêem-lhe o que pedir –

sol, uma razão, os vossos dedos mil vezes no seu
corpo, os meus dedos cortados para despertar
um sonho na sua pele. Rasguem-lhe as ligaduras
que nunca foram laços e livrem-no dos vermes
que pastam nas suas feridas. Deitem-no na neve
dos lençóis e encostem-lhe aos lábios bagas de
sumo vermelho, leite, e um pão que seja um seio
de mulher – o meu seio amputado, se ele o pedir.

Segurem-lhe o rosto com as mãos e soprem-lhe
os brancos do meio dos cabelos. Protejam-no
da escuridão absurda da noite roubando estrelas
e calem o silêncio chamando pelo seu nome
devagar. Porém, não o molestem nunca com
palavras – deixou a meio demasiados livros e
há-de morrer exausto do que não sabe; mas não,
não o deixem morrer mais uma vez, levem-no
convosco aonde forem e dêem-lhe o que pedir –

tempo, uma razão, o vosso riso explodindo
mil vezes nos seus lábios, as minhas lágrimas
cansadas para lavar a terra dos seus olhos. Não
o amem em vão, nem jurem amá-lo até ao fim,
porque, depois do fim, não saberão o que fazer de
tanto amor. Guardem-no, por isso, do bafo da
morte e dêem-lhe, simplesmente, o que pedir –

o vosso sangue mil vezes derramado nas suas
veias, o meu coração arrancado para lhe bater
no peito, a minha vida – sem ele ma pedir.


Não lhe contes como é fria a terra
sobre o meu corpo, nem como o uivo
do vento, lá em cima, me gela o coração.
Agora tenho braços de não estender e
pernas de não ir a nenhum lado. Sou

cada vez mais morta quando não está;
mas não lho digas – cuidará que o amor
que lhe tenho é uma doença e quererá
ficar de favor, ou de pavor irá, mas para
sempre. Deixa-o partir apenas de vez

em quando sem o saber. Fique eu morta
também de vez em quando, com bichos
na boca e o peito cheio de poemas. Assim

como assim, é só com ele que desejo falar.


Quando chegaste, eu já tinha a morte
dentro do meu sono; e só por isso não
sentia a pedra do coração nem o corpo
quase quase tão frio. Tu não notaste

que os corvos negros carpiam já sobre
o meu telhado – e ninguém te disse que
eu estava a morrer, porque só eu sabia
que desistir é coisa de um momento.
 Juram, porém, que ouviste o sangue
cansar-se nas minhas veias e as larvas
estrebucharem rente à terra; e que então
disseste, sem dominar um grito, que o
quarto te cheirava absurdamente a flores.

Não me contaram se chamaste por mim,
se pela morte. Mas fui eu que acordei.


Vamos ser velhos ao sol nos degraus
da casa; abrir a porta empenada de
tantos invernos e ver o frio soçobrar
no carvão das ruas; espreitar a horta
que o vizinho anda a tricotar e o vento
lhe desmancha de pirraça; deixar a

chaleira negra em redor do fogão para
um chá que nunca sabemos quando
será – porque a vida dos velhos é curta,
mas imensa; dizer as mesmas coisas
muitas vezes – por sermos velhos e por
serem verdade. Eu não quero ser velha

sozinha, mesmo ao sol, nem quero que
sejas velho com mais ninguém. Vamos
ser velhos juntos nos degraus da casa –

se a chaleira apitar, sossega, vou lá eu; não
atravesses a rua por uma sombra amiga,
trago-te o chá e um chapéu quando voltar.


Por serem mães, nem viram aquilo que
parecia um raio de sol interrompendo o
mundo; e levam os meninos mortos ao
colo no fio dos caminhos, confundindo
sempre a lã dos xailes com o calor do
sangue que lhes ensopa as mãos. Seguem

sem poder acreditar – ou então acreditam
que não seriam capazes de amar tanto
uma coisa parada no tempo, e por isso
vão, imperturbáveis, ouvindo bater dentro
do próprio peito os corações vermelhos
pequeníssimos. Mais adiante, deter-se-ão

para descobrir um seio redondo e cheio à
minúscula boca prometido – não vá ela
abrir-se de repente e, milagrosamente,
começar a chorar.