PEDRO J. GÓMEZ. Serie Castelo Branco 6, 2010.
MANUELA PARREIRA DA SILVA
nasceu no Alentejo (Portugal), em pleno século XX. É professora de literatura e cultura portuguesas na FCSH (Lisboa). Tem investigado e editado o espólio de Fernando Pessoa. Publicou dois livros de poemas: O Álbum de Vishnu e Entre Cão e Lobo (Assírio & Alvim, 1999 e 2007).
O IRMÃO
(Oito poemas, in memoriam)
1
Ouço a tua voz off fora do campo onde o corpo se detém, e me faz de longe um aceno triste.
Escuto a improvável fala. Sei que não mentes, porque pus o sal na tua boca.
2
Partiste antes de todas as mortes, minha irmã febre em busca do que é costume buscar o castelo, o ouro, o amor. Deixaste-me a mim num conto de fadas inacabado, sozinho
à mesa da ceia de Natal. E não me regressaste ainda
3
Os faróis atropelam o tempo, desvendando, aos poucos, a longa estrada. É sempre noite, quando partes para o sul. Os quilómetros correm acesos no tablier. Não podes parar, nem voltar para trás, para onde te fica o segundo coração. Vais enterrar os mortos. Levas flores palavras para entreter a vigília e selar as sombras. Hoje, porém, é inútil a pressa. O teu irmão espera-te, mas não vais poder abraçá-lo.
4
Repousa, por um instante ainda, no meu olhar. Sem nada para dizer, como quase sempre. Com tudo, ou quase tudo, por dizer.
5
Foi breve o irmão chegou quando, em Novembro, o sol já se escondia, partiu quando a terra mal começara a florescer. Morou na casa estreita, na noite de um só sonho esquecido de acordar.
6
Esqueço o sangue e o risco da fraternidade, mas nunca o som prodigioso das suas sílabas.
7
Habita na tristeza, um resto de luz. O dia gasta-se como uma vela antiga descendo o rio, ardendo na memória Na caixa negra do corpo, onde se registam as despedidas
8
Um raio de sol atravessa o templo. Passa entre os umbrais, cortante como a espada, oblíquo como a chuva, sem outro sentido do que ser um raio de sol cindindo a espessura do vazio Interminável ausência.
MITOLOGIAS
Num remoto jardim, uma borboleta agita as asas. Mas é aqui que sinto uma vontade súbita de pairar sobre as flores, de voar contra a luz num sobressalto branco.
A ave desce pousa devagar no ombro da manhã.
A ave / o anjo regressa do futuro com a ponta da asa tingida de azul. Traz nas suas penas uma intensidade desconhecida, uma vertigem e, presa no bico, a fórmula divina do vazio.
Os gregos sabiam: deus é aquilo que acontece Estar contigo, junto ao Tejo, medindo o ritmo da maré, e soltar-se a brisa no canavial e encontrar-se o brinco caído num abraço Ou talvez, perfurar a terra até à incandescência e aceder à forja dos desejos, descobrir o caminho marítimo para qualquer parte e ser abalroado por um pirata, visitado por uma ninfa absolutamente material.