Manuel de Freitas

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO4

MANUEL DE FREITAS

POEM OF THE RIVER

para a Inês Dias

Tinha, desde criança, a fantasia de ir a pé até às margens do Tejo, partindo
do Vale de Santarém. Sabia que o rio estava próximo — ou era, pelo menos,
alcançável — desde que se seguisse o «Caminho de Fátima», nome que sempre me
causou alguma estranheza. Só hoje, com quarenta anos, ousei fazer esse percurso.

*

Vira-se à esquerda, logo a seguir à Légua, e são muitos os lamaçais e os campos de
papoilas que nos convidam a parar. Mas não quisemos desistir. Já desesperávamos de
haver Tejo quando, após um sereno concílio de cavalos, surgiu uma estrada de alcatrão
que nos levou às Caneiras. Nem sabia que ficava ali, a «apenas» seis quilómetros,
aquela aldeia piscatória.

*

Retemperámos forças na Taverna do Ramiro —não com sável, enguias ou fataça, mas
com uma opulenta grelhada mista. Só depois percorremos as vielas estreitas, onde
casas de madeira assentam em palafitas, e cães e gatos parecem ter encontrado o
paraíso. Trata-se, como seria de esperar, de um paraíso triste: as madeiras coloridas
acusam o desgaste do tempo, a pobreza audível destas casas onde ainda mora gente.
Porta a porta, um embarcadouro mínimo confirma que o rio continua a ser uma débil
fonte de rendimento ou de aventuroso recreio.

*

O mais estranho, porém, foi ter reencontrado nas Caneiras, onde nunca estivera,
a «reconstituição» exacta de uma aldeia ribeirinha que surge em muitos dos meus
sonhos. E que hoje, ao teu lado, se revelou mais bela do que alguma vez sonhara, na
sua altiva imperfeição, na música calada dos barcos —tão pequenos e vazios como um
poema que chega, finalmente, ao rio.

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