José Bento

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO6

JOSÉ BENTO

tErEsa DE ÁviLa vai DE MEDina DEL CaMPO
Para aLBa DE tOrMEs, OnDE MOrrE

Depois de expulsa de um convento que fundara
(cuja prioresa era uma sua sobrinha), Teresa de Ávila
vai muito doente e faminta para outro convento
em Alba de Tormes, onde morre pouco depois

     Se és o que vives e não o entendes,
podes ler isto sem assombro e temor
de estar armada contra ti igual crueza.

     Olha essa mulher: cedo abandonou
a casa de seu pai, contrariando-o
(não por despeito, mas ao ficar ferido
por ela se confiar
a quem acusara de peçonha
o sangue nele tão puro como em todos),
para desafiar o mundo, projectar
o lar sem manto de quantos ao segui-la
arrostavam descalços calhaus acerados,
entre ameias suspeitosas, entre espadas:

     com a mesquinhez do grande e a comunhão dos pobres,
muros a separar homens nascidos já vizinhos
e rancor de mulheres costumeiras no templo,
na póvoa indigente, na cidade usurária
justificada só por leprosos e crianças
que enxameiam os becos, os casebres.

     A plenitude de sua carne floresceu
no frémito rasgado por uma seta ávida
de lhe esporear o coração:
e ela apagou-se no fogo recebido,
na lição soletrada do mínimo ao infindo,
e foi escuridão, canto e dança, incêndio,
arcos a evolar-se das colunas que os lançam,
lajes a aguilhoar a fadiga e a loucura.

     Desde então mais viveu a aumentar sua vida:
a dispor pedras pardas para brancas paredes,
a lacerar os ombros com desvairo e omissões,
a escrever o excesso em que ansiou sumir-se.

     Hoje, naquele tempo, sempre,
enfrenta um setembro enfebrecido
e reflecte o poente humano sem temê-lo:
pupilas arranhadas pelo cisco dos páramos
e deslumbradas no clarão dos claustros,
mesmo quando enlodadas nas máximas ambíguas
de poderosos senhores a exigir-lhe
a bênção que tornasse triunfantes
as manobras rasteiras da alcateia que são.

     Deram-lhe como leito uma carroça
para mais depressa se afastar e esvair
nos solavancos que arrancam os restos de suas veias,
ferindo-a quase tanto
como os esgares e as côdeas
com que a expulsaram as osgas
da casa que ela ergueu e afagou para acolher
tantas filhas amadas por imenso mistério:

     bate-lhe ainda rijo e lacerante
o bater da porta terminante em despedida
a empurrá-la para os braços derradeiros e abertos,
para a irmã doce e negra que professou com ela
há muitos anos, e agora uma vez mais:

     cumulando séculos e ermos, completando
o sentido de páginas, ciladas, calúnias,
a caminho da morada
que se abre e ilumina ao reconhecê-la,
desde sempre e para sempre infinita e sua.