Jorge Aguiar Oliveira

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO11

JORGE AGUIAR AGUILERA

MADAME SATÃ

eu contei-te: cinco anos antes
do Barros e do seco e molhado Ney
de Hiroxima [desliza melodiosamente
a flor de cerejeira no esplendor
das lágrimas desse teu olhar]não terem visto o rasto da cobra
nem o chouriço ao lobisomem
partiu quem já tinha chegado
sete décadas atrás de Pernambuco
à marginal da Lapa,
predestinado a ficar célebre
moleque de rua para escrever
o tempestuoso show de cabaré criminal
– no camarim fotos do Leonardo,
Eduardo Costa e Lima Duarte –
sem paralelo, … seus feitos:

3 homicídios; 13 agressões; 2 furtos;
3 desacatos; 4 resistências a prisão;
1 ultraje ao pudor; 1 porte de arma
& etc + preto que a pele do medo
, o bandido transformista
pavoneava-se boémio sambista
com as suas camisas de seda.

Foi homossexual.
                                        Não foi, É.
Convosco, senhores e meninos…
– Madame Satã!

 

SOCO GONGO

ocultas os beijos à pedrada
soco gongo tocou o gongo
chega ao fim o round

; se pontuaram os golpes desferidos
sobre as noventa e três pretas
; se foram no abdómen ou na cachimónia
antes de serem esganadas e retratadas
; se os gritos morderam os socos
na nuca, ninguém sabe.
Ocultaram o golpe – o toque
do gongo no ringue do hospital
da cadeia – o fim do round.

Samuel Little morreu.
Caiu o mais atraente pugilista
preso a pioneses A3 a fotocópia
rente à janela d’arrecadação
borrada de batons de putedo drogado

em mil desgraças há uma só,
em cada cidade há mil homens sós
arcando como burros
entretenimentos tevê
enjeitando crochets de linhas d’agonia
sem-par
as corujas sobrevivem
devorando
seus próprios corações

 

SEM-ABRIGO CHANEL

danado, arremessou a rata de peluche
contra o vidro da montra pra matar
a vareja que teimava em não o deixar arrastar
a demência pelas ruas tapetadas de lilases
de jacarandá, naquele jeito franzino,
com os desejos em declínio
e a carne apodrecendo ao luar d
a fome – um soro para a loucura

sentou-se no passeio cabeça colada
ao plasma, esperando o anúncio do champô.
Mal surgiu, gozou, lavando a juba, e
em alerta ficou, pois viria do hipermercado
o sexyfrango de cu ao léu, com desconto
e zás: papou-o. Se não surgisse
um tintol em promoção,
contentava-se com “duas gotinhas”
[Marilyn Monroe] de Chanel N.º 5 da Dior
ou, com um gelado Carte D’Or

grifo rebelde, recusou os beijos à pedrada
da república no ecrã do presidente,
pinchando bocados de rebelião
sobre as fezes do cachorro pulguento
– ora, oremos – no cerne dos escombros
no promontório, o refúgio dos aflitos.

Um veio de raiva ainda ampara
o cego beijo que o instante carimbou
no pré-fabricado amanhecer,
por a sua noite ainda andar
enrolada com a minha

 

GORILAS AO LARGO

alguém se peidou ou o mar está perto.
No próximo caga-lume virar ao cheiro
da sombra da figueira em lupanar.
Se todos os excrementos fossem
dar aos mares, não andaria esse teu jeito
de amar, flutuando no meu coração
os gorilas selados em vácuo,
foram lançados borda fora do navio
ao largo de Malabo
ossadas de hipopótamos
no fundo das águas ocultas laminárias
servem de refúgio a cardumes
miúdos de fome laminar por catalogar
cientificamente, desvairadas tribos
de morte – o astro bala à boca de cena
no Teatro S. Carlos, King Kong tenor
entoa mascando pastilha elástica gorila
a tragédia do duelo entre Kurt Weill e
o hipopótamo de borracha com guizo
na banheira d’espuma da nata
de laço e leque sangue e esporra.

Se a caixa das pastilhas terá ido
parar ao fundo das águas
ao largo de Malabo, não sei

 

GONDWANA II

queria falar-te
de perfumados aromas luzidios
que findam fluindo pelos espelhos
mas não consigo

quando guardares na sacola os gritos
dos degolados, o vento das rosas
e a amargura dos bichos das sobras,
estaremos em condições de partir
para Madagáscar. E, então sim,
daremos o tal salto de gafanhoto
para Berkner sem perder tempo,
a colocar ligaduras nos espelhos
pois nunca irão sarar as feridas
no sangue negro da tua boca
onde há uma vida em cada morte

sob o alçapão ominoso voa o morto
camaleão da mocidade vai e vem,
no yo-yo da eternidade,
renova-se a tumultuosa energia
descarnando d’ovo d’avestruz,
irrompe um casulo d’ousadias

já na Antártida, cumpriremos
o nosso plano à risca

abraçados, entregaremos o corpo
à massa fria do silêncio
evocando o âmbar e o nojo
para daqui a cem milhões de anos
descobrirem o nosso beijo
e o baptizarem de Gondwana II

queria falar-te doutro mundo
mas não consigo