JOÃO MOITA
Alpiarça, 1984
O mundo é a tua vigília.
Levas milénios acordado,
velando a tua esperança.
Velas, teus acólitos seguram
as tuas pálpebras.
Esperas o impossível:
que se erga da terra
um rumor que embale.
Fome, 2015
Os pássaros preferem as árvores
que crescem nos precipícios
e os ninhos que se suspendem no vazio.
Há pássaros que adormecem durante o voo
e acordam em países desconhecidos,
debicando frutos exóticos que os enlouquecem.
No fim das suas vidas terão engolido mais céu que alimento.
Fome, 2015
Meu enxoval apodrece nas arcas imaculadas. Lençóis e panos de cozinha manchados
pela nódoa da predestinação. Eram tempos inapeláveis, alimentados pelas silenciosas
gárgulas do mito: meu irmão refugiava-se na crença.
Meu enxoval ressuma ao açúcar furtado à minha infância e aos belos jejuns da
reconciliação. Era uma casa abençoada pela escassez e por um asseio morno onde
incubavam os germes da violência.
E havia um cão magnânimo na bondade, amparando as lágrimas. Não chegávamos
a meio do inverno sem que nos desse a fome.
Fome, 2015