Jaime Rocha

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO4

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GUILLERMO PÉREZ VILLALTA - Series Pabellones Imaginarios, 2010.

JAIME ROCHA

duíno

Para Vasco Graça Moura

Num terraço sobre o mar, entre
um círculo de flores e as árvores
da paisagem havia um poeta que
tocava nos deuses e não morria.

Agora, os violoncelos estão parados,
os quadros sustentam a cal das paredes,
as portas abrem-se para o golfo de Trieste
e para os grandes corredores do castelo.
O piano de Liszt adormece na salinha
com os espelhos_____________ .

Guarda dentro de si a memória dos dias
passados no cimo da colina, as muralhas,
os degraus, o cheiro dos livros,
o espaço de Rilke.

Um poeta que desafiou os pássaros e o sol
e se perdeu com o olhar pelas ruínas do
castello vecchio, procurando aí as palavras
dos anjos, as palavras que subiam pelo azul
com as cigarras, sopradas por Orfeu.

Um poeta que escutava junto às fragas,
sob os canteiros, entre os vivos e as rosas.

O vento quente toma conta da baía e da noite.
Os pequenos barcos e as andorinhas dançam

frente aos faróis como se atravessassem Veneza,
ao longe, na obscuridade.

O poeta está ali, no silêncio do lago e do seu
reflexo, distraído com o sorriso do sátiro,
enquanto, gravada na rocha, escondida por
detrás de Duíno, La Dama Bianca espera
pelos amantes.


na cidade, aqui

Aqui era um caminho de hortas.

Habita-se uma cidade dentro
do seu passado.

Aqui havia um banco onde os velhos
passavam a tarde.
Aqui existia uma árvore.
Aqui, neste espaço, era o mar.

Então, vou andando pelas ruelas
dizendo a mim mesmo que é assim
que se constrói a memória,

aqui um lago,
lamaçais, florestas, matas,
habitat de feras, de plantas carnívoras,
de insectos gigantes.

Agora são os prédios, os candeeiros,
o lixo.

Ou_____________________ ,

por aqui passaram carruagens
e diligências com destemidos opositores
à monarquia ou fugas de viscondessas
e condes para noites de alcova.

Por aqui passaram escritores, pintores,
boémios e guerrilheiros fugidos
à polícia secreta.

Aqui houve combates de morte,
doenças e pragas.

Aqui se construíram efémeros
mercados e campos de jogos.

Neste local foi visto fogo-de-artifício,
fogueiras, procissões.

Aqui se nasce para morrer.


sensibilidade

Um homem acorda e surpreende-se
porque não tem um dos braços.
Ou não o sente.

Depois, começa a escrever e volta
a sentir o braço.

O que faltava, durante esse tempo,
era o braço da escrita_________ .

À medida que as palavras surgem
no papel, a sensibilidade do braço
renasce e ele escreve então
um poema, um grande poema
sobre o universo, sobre a morte
dos pássaros e as cheias.

No final, esgotado, repara que agora
é o outro braço que não sente.
Mas o poema já estava escrito, já não
possuía dentro dele mais palavras.

Morreu nesse dia, sem ter escrito
o que queria________________ ,

um poema sobre um atleta
grego devorado pelos lobos.


poeta nA ILHA LENDÁRIA

Na morte de Seamus Heaney

O poeta está ali sentado na noite
como um cavador irlandês,
cortando a turfa molhada,
junto ao frio, ao húmus das batatas.

Ali sentado com uma caneta entre
os dedos, como o avô debruçado
sobre a terra___________ .

As mãos como se fossem lâminas
ou pás, batendo nos canteiros.
As pedras escorrendo pelo corpo,
a quererem fugir para o mar
aos solavancos.

Ou um poeta visitado pelo vento,
na sua ilha lendária, a olhar para
uma folha de papel onde, a pouco e pouco,
aparecem amoras
e zimbro fermentado.

Em frente a uma grande cerejeira,
por detrás dos espinheiros, o poeta
visita Joyce, Kavanagh, Yeats,
Montague, Dante, Austin Clarke.

Toca-lhes nos caixões vazios
e leva-os para um bosque,
para sempre, para norte.


VARIAÇAO SOBRE POEMA 31 DE O INCENDIO DOS ASPECTOS

Para o António Ramos Rosa

É uma mulher que se esconde,
que foge pela sombra, como se
procurasse um vaso de pedra
e os ramos batessem na paisagem
como animais famintos.

E essa mulher, ela, um nó numa
árvore, ela ainda numa dança que
se espalha nos lábios________ ,
um véu, um mineral negro e também
o fogo, uma presença branca.

Uma mulher num labirinto de vértebras
desenhadas pelos dedos, brilhando
para o fluxo da água, como se fixasse
um pássaro no silêncio e com a outra
mão cobrisse o corpo, todo o corpo
da lua, a lua inteira.

Uma mulher milimetricamente
construída, iluminando a boca num
instante, num mecanismo absoluto.

Para o António Ramos Rosa


SOBRE FRAGMENTOS E GRITO

Para Agripina Costa Marques

Pode ser o grito das aves, um momento
em que os sonhos se desintegram, uma
nuvem que se esconde por detrás de
um arbusto. Quando os violinos tocam
há uma espessura que nasce, um enigma.
Abre-se uma fenda e nela o seu reflexo,
uma outra cavidade virada para a água,
com uma voz própria, uma tentação.

É dessa música que se vão moldando as
palavras, os fragmentos do corpo, com
as suas margens, o seu culto, uma memória
de silêncio e treva________________ .

Tudo passa a ser desmedido como um
deserto, um lugar de asfixia. Mas é tarde,
o sol à sua passagem delineou umas mãos
e são elas que transportam esses sonhos
para uma zona de claridade, a claridade
dos pássaros, a sua seiva.


rIO SECO

Para Eduardo Lourenço

Tudo acontecera numa tarde,
as ruas estreitas, o calor, os cães
ausentes. Um homem chegara com
um corpo tapado, tentando que a sua
nudez reaparecesse enquanto se colava
às paredes das casas.

Havia ali uma memória, uma leitura que
se incluía na sombra como uma grande
ave suspensa, um peso que irradiava
do alcatrão. E carreiros, pequenos
carreiros que investiam sobre os muros
velhos, caminhos que saltavam as
vedações para se misturarem com as
hortas roídas pelo tempo_____________

E o homem sorria como uma criança
abrigada nas silvas, num jogo que mexia
com os mortos, os seus mortos, os dedos
sujos de terra.

O silêncio marcava o abandono das
árvores, as formigas escondiam-se nas
fendas e apenas alguns pássaros
procuravam alimento, pássaros doces
destinados a reconstruir o ninho.

Aqui havia uma casa, com uma janela____

E a aldeia tomava uma cor decisiva, um
rumo, apontando para o fim do Rio Seco,
para as campas, para a claridade fria.

Já depois dos cardos, já depois de atravessar
as pracetas despidas, o homem zangava-se
com as pedras, as falsas pedras que taparam
inesperadamente a cal.
Só os comboios o faziam voar, as estradas
abertas que avançavam sobre os charcos.