Fernando Pinto do Amaral

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO1

FERNANDO PINTO
DO AMARAL

(Lisboa, 1960), poeta, narrador, ensaísta e tradutor. A obra poética que completou até ao ano 2000 encontra-se reunida em Poesia reunida (2000). Posteriormente publicou Pena suspensa (2004) e A luz da madrugada (2007), assim como o livro de contos Área de Serviço e Outras Histórias de Amor (2006) e o romance O Segredo de Leonardo Volpi (2009). Em Espanha apareceu Exactamente mi vida (Antología poética 1990-2007) (2009).

quatro poemas

LABOR

Ninguém sabe quem és        Nem mesmo tu
vês mais do que poeira
entre cada palavra        entre cada
sinapse
em noites como esta quando aprendes
a amar o próprio nada quando rompes
a membrana do tempo

Cala-te agora e espera
o abraço infiel da madrugada
até que os vermes recomecem
o seu lento labor
nos rostos ainda acesos        no sorriso
de alguém que noutra vida terá sido
em ti mais do que és


INSÓNIA

Demasiada morte reconheces
nisso a que chamas vida sem saber
onde estás quando a noite
irradia outra luz
e acende devagar todos os rostos
os seus olhos de assombro       talvez
semelhantes aos teus quando escutavas
na cama em São Filipe as badaladas
desse antigo relógio de parede
uma     duas      três      quatro
vibrando no silêncio Ainda hoje
cada som desse tempo ressoa
no longo corredor da tua infância
como a voz de ninguém     E no entanto
ouves agora as mesmas badaladas
ecoando de meia em meia hora

São palavras que alguém te quer dizer
tanto tempo depois


«LA NOVIA»

Senta-te aqui de novo, recomeça
uma antiga canção, talvez a mesma
que soluçavas em segredo, quando
tudo em ti se abrigava nesse reino
longe de toda a podridão do mundo.

Senta-te aqui mais uma vez, repete
a primeira descida a esse abismo
onde viste nascer há muito tempo
isso a que chamas alma, a sua música.

Hoje talvez suponhas que não tens
«sequer esse refúgio» e todavia
a canção ainda ecoa quase a medo
no exausto silêncio do teu peito.

Não sabes escutá-la? Não distingues
o eco dos seus últimos compassos
no coração da noite?


EQUINÓCIO DE OUTONO

Chega-se a este ponto em que a gente não sabe
DAVID MOURÃO-FERREIRA

E também tu chegaste agora a esse instante
a que podes chamar equinócio de outono
quando tudo te sabe apenas a abandono
quando tudo o que vês é a luz ofuscante
do tempo que se esgota em ritmo galopante
e a vida se dilui na promessa do sono