CLÁUDIA R. SAMPAIO
LISBOa, 1981
estou no hospital psiquiátrico
onde as árvores são mais descompassadas
ainda estou metade debaixo da cadeira
em que costumava sentar-me
o Carlos cumprimentou-me e falou-me do tipo
que lhe apertou o pescoço
não percebeu que estou toda colada
e que me falta o pires para pousar a chávena
perguntaram-me se sou a senhora que vende tabaco
se fosse, talvez tivesse mais dinheiro
e um cancro
levanto-me e caminho atrás do velho da
perna torta
tenta equilibrar-se nos aguaceiros riacho com
um pequeno chapéu de chuva mal amado
estatela-se lá à frente
e todo o hospital desaba
eles não percebem que eu também desabo
instante sim, instante não
são mais os sim, mas também não
e eu não, e eu sim
e assim sucessivamente
para cima, para baixo
para baixo, para cima sempre um holograma
eles não percebem que eu, holograma
nunca sei onde vou estar
devia ter ido à boleia com o velho
da perna torta
mas não sabia que ele ia desabar
não sabia que as pernas tortas
desabam antes de mim,
que sou toda inclinada
A Primeira Urina da Manhã, 2015
Quando for embora não deixarei
migalha de mim.
Levarei o cheiro a desorientada
melancolia e desastre
e não deixarei um cabelo que seja.
Levarei comigo as gatas e os livros,
a roupa deixo-a às minhas amigas,
o umbigo, à minha mãe.
Vou e não esqueço.
Partirei sem as orquídeas que
me assombram delicadeza
e sem os cactos que me superam
em estirpe.
Vou aberta como um eterno retorno
e na simplicidade de um bebé que
procura um sítio onde se sentar.
Aqui há a desactivação das almas à
nascença e a ovação aos tristes.
Há a exultação do silêncio profundo
e a altivez congratulada dos néscios.
Há o sangue cansado dos bichos
e a preparação para a fuga da terra.
Aqui há a terra sem terra e a saliência
do teu ombro morto.
Há orelhas frias que soluçam tarde
e uma cova a dizer adeus.
Por isso vou embora no sentido inverso
ao das árvores
numa descida clandestina à mulher que
morreu em ondas.
Vou embora e deixo o meu vinco que
não morre mesmo que me passem com
alcatrão fresco e me estiquem.
Deixo apenas a verdade dos meus
olhos quando pendurados na janela,
a sorrir mundos
deixo as abelhinhas doidas que ignoraram
o meu salto,
e o riso da desistência
porque ainda preciso de mim.
Ver no Escuro, 2016
Este poema não tem cura.
Este poema não sabe que é
um poema.
Ofereço-lhe, amando, o meu
interior nocturno transformado
em mulheres velozes,
com uma batidinha no estômago
e um desmaio universal.
Morrerei assim, às mãos largas
de todas as perguntas deixadas
no meu dorso.
Que será feito da minha essência?
Este poema não tem essência.
Este poema é uma mãe em chamas
na barriga do filho.
Ver no Escuro, 2016