Catarina Nunes de Almeida

Fundación Ortega MuñozPoesía, S10

CATARINA NUNES DE ALMEIDA

LISBOa, 1982

Quando a fala era um motor de busca
quando a fala se construía sobre símbolo e mistério
quando ao pequeno-almoço a criancinha tomava a parte pelo todo
e era uma sinédoque viva

já a poesia corria mundo
na esperança de comer a criancinha.

Livro Redondo, 2019

Não sou deste poema.
Não conheço este poema.
Nunca estive neste poema.

Naquele instante o galo cantou.

Livro Redondo, 2019

É aqui que estamos
onde estamos.
Abandonados a uma ideia de repouso absoluto
à hipótese dum éter luminífero absolver todas as coisas
e todavia acordamos sempre despenteados
cheios de listas de supermercado
e de preocupações ambientais.
Como descrever a sintaxe dum seio que se encheu de leite?
Que importa a meteorologia dos planetas lá longe?
É aqui que estamos
tão lisos tão à mesma altura
que me sinto capaz de negar a esfericidade da terra
de apostar que a terra é afinal uma verruga plantar no corpo de deus
explicar a cosmologia sem a complacente nota do tradutor
com círculos epiciclos equantes
(ah, Ptolomeu, Ptolomeu, porque és tu Ptolomeu?)
e os pés deixam de tocar o chão
o poema compreende agora a paralaxe invisível das estrelas
o movimento das carpas celestes
essa vasta corrente de circos com circos em outros circos.

Ei-lo, o tabernáculo chamado mundo
carregadinho de mochilas de fenómenos de carros em segunda mão.
E pensar que todo o homem tem um silêncio no extremo sudeste do metacarpo
onde se lê «dixerto dexabitado».
É preciso reiniciar o dispositivo abrir a janela
dar por definitivas as primeiras impressões do céu.
Eu sou o escudo de Aquiles.
Eu orbito o sol central de cada homem.
E vou desfiando as linhas da grã-mortalha do amor
com o seu centro em cada lugar
a sua circunferência em lugar algum.

O que eu mais amo no homem é a mancha que não sai.
O que mais amo no homem é o princípio de todos os homens
o homo erectus no homem o que me entra pela unha partida
e enche o poema de sangue.

Uma vez saí para a rua e tive a visão dum Universo fechado e finito,
HIC SVNT DRACONES.
Foi no dia da trasladação dum poeta amado.
Às vezes penso nas linhas do seu nome inscrito sobre a pedra
na transmutação da letra na obscuridade aurífica do destino.
Certos nomes estendem a casa multiplicam o alimento

a escrita alegra-se nesses nomes planetários de todos os nomes
salas de espera dum laranjal.

Quanto à imagem do cervo deitado sobre a mesa
de coração apontado para a seta, confesso
é cada vez mais a minha cara de domingo.
Depois de atravessadas muitas superfícies comerciais
muitas playlists muitas solidões
os lençóis adensam-se como as águas paradas
o fundo da cama é habitado por traças branquinhas
e monossílabos de quatro patas.
Quem podia imaginar que o poema acabaria nesta medievalidade toda?
Apesar da pilhagem tu vais resistindo
sob a forma de varanda por varrer
de chiclete no cinzeiro
de pestana no canto superior direito da almofada.
Se ao menos um de nós soubesse calcular a magnitude de um sim.

Vou subir os olhos devolvê-los ao céu
pô-los a circular para o princípio
fazer do meu caminho o caminho da árvore
e caminhar para a surdez profunda.
Sei que o nascimento é o início duma missa de corpo presente
mas os pensamentos, ah, os pensamentos
habitam a casa antípoda.

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Ó coração
reconcilia-te
pousa pousa.

Livro Redondo, 2019