JUAN RAMÓN F. MOLINA
BOSQUE IV, 2000
Serie: Bosque de tinta
ANTONIO MANUEL PIRES CABRAL
bestiário com b pequeno
1. Os morcegos dançam, sim
Dizem que os morcegos não sabem dançar
e que não têm ouvido para a música
e que um pasodoble para eles é igual
ao mugido dum boi ou ao zumbido
dum besouro ou mesmo ao estrondo
dum comboio expresso ribombando na noite.
Mas o que eles fazem verdadeiramente,
quando voam os seus vertiginosos
ziguezagues, ao perseguir mosquitos,
é uma dança como ainda não vi outra
em palco algum. Os morcegos dançam, sim,
— só que para isso preferem guiar-se
por uma música que de nascença trazem dentro
e que ouvidos profanos como os nossos
não conseguem ouvir
e por isso dizemos que os morcegos
não sabem dançar — quando a verdade
é que nós, que na pista damos
toscos passos a que chamamos dança,
nós é que em verdade não sabemos dançar,
comparados com a virtuosa acrobacia
com que os morcegos dançam
na larga pista dos ares.
2. O que diz a mosca sobre a aranha
Sobre a aranha,
eis o que estranhamente diz a mosca:
«É um predador topo de gama.
Nenhum outro — incluindo o spray insecticida —
tem um modo tão eficiente e sensual
e definitivo de inocular a morte
num corpo mesquinho como o meu,
que na teia ardilosa capturou
e que entre os palpos, com lascívia,
manipula como quem toma um Martini
antes do jantar.
Com ela, a morte que se avizinha
parece-se mais com um refresco de limão
e menos com o alicate com que dizem
que a morte se parece.»
Perante este insuspeito testemunho,
não nos resta senão rever os nossos
severos preconceitos sobre a morte
— que em verdade não são mais que devaneios
que ninguém que tenha morrido confirmou.
3. Pardais altercando
Oiço-os lá fora, em cima do telhado,
pardais altercando com vigor,
esgrimindo asas que são espadas rumorosas
e acaso trocando, no auge da contenda,
coléricas bicadas.
Lembram-me esses pardais cenas canalhas
entre peixeiras desavindas no mercado.
E porque disputam, inflamados, os pardais?
Disputarão talvez alguns bagos de milho
ou talvez lutem para decidir qual deles
vai ter prioridade no uso de uma fêmea.
Para um pardal,
qualquer dessas coisas vale bem
uma rixa (tal como Paris valia bem
uma missa para Henrique de Bourbon).
Depende do tipo de fome
que os pardais tiverem no momento.