Andreia C. Faria

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO9

ANDREIA C. FARIA

*

Dou à memória este talhão amargo
em câmara de aluguer, onde me arde
o ar entre vestidos e aprestos
que se engolem como estranha flor à luz
mudável da manhã.

No princípio era a memória
levedando em precisões nocturnas,
tendida pela má carícia até ao animal que dorme
a um canto, a sua cria e o murmúrio
dos meus sonhos sobrepostos. Depois
penúria, o ouro frio das constelações
apontado ao rosto em anos, rasgos
entre a carne e a ferrugem das esferas,
seu suor de animal ao mês
e música.

O perigo partilhado das espécies
que respiram: a olho nu estabelecem
a sua solidão. Roubam ao céu
as alegrias, às farpas do sobrado
o entreter do sangue. Mordem
as migalhas espantosas do amanhecer
no debulhar do Verão
e só a urina as interrompe,
ao fim de horas recendendo.


*

O azul dos mapas, o azul-ecrã dos mares. O pixel donde extraio
               ganga abrigo ventre
               o grão da época
               a orgânica e a métrica
               os filtros e os cristais
a vintage-lividez dos livros,
fantasmas à porta da alegria comum
– e se me deixam deito-me a ler
em luxúria,
uma orquídea de alimento tóxico
com a pele guardada ao vento
em Hiroshima.

Humilha mais a natureza do que a química
quando se é jovem e depois não.
A coisa experimental que tomam no regresso
os astronautas simulando
a sinfónica abstração do sono,
um palco de vozes pousadas
no escuro, mordeduras da lua e do sol,
e na bula que me rege:
É melhor que eu durma.
Quando não durmo o corpo é um lago
e algo no fundo começa a feder.

Do lixo nasce lixo contornado pelos cães.
Dos sonhos nasce carne
da minha carne, um punhado
descerrado e aleitado longe, largando
pai e mãe para apegar-se pelo sonho
à minha carne, e um sabor a pó
de que faço a memória de ossos
dos meus ossos, a mecânica
de uma intimidade.

Áspero e solar fica o coração
implícito
na recurva ausência
da costela, nessa acústica.
De mora, o seu lugar
na carne, um touro a embrenhar-se mais
no vagaroso azul, a acender
cá dentro
ou um artrópode, táctil
enfeitiçando o seu excremento
descascando as dores de crescimento
deixando côdeas
               códigos
               superfícies, cores extremas
constelar a boca
os olhos
a imagem pelos dedos.