Ana Luisa Amaral

Fundación Ortega MuñozPoesía, SO11

ANA LUÍSA AMARAL

A agulha: lições

Um súbito botão
que livre se soltou da minha blusa
bastou –

– e olhei-a brevemente,
ela esperando a linha,
em demora maior
do que a palavra demora
de dizer

Ínfima e cintilante,
quase nula em espessura de folha
transparente,
a sua servitude a nós:
de uma amplidão
sem nome:

Da protecção ao frio
à fissura do belo,
o abismo de termos resistido à nudez
recíproca e privada

e assistido depois, ajudados por ela,
ao corpo abençoado por calor
e cores, texturas mil de espectro largo,
o que nos faz humanos

Não mais do que isto,
nós?, a pergunta do velho rei
a estender-se por séculos

E muito, muito antes,
Cristo a falar ao jovem rico:
vai, vende o que tens, dá a quem nada tem

Pois para isto também ela serviu,
doméstica e sublime:

dizer do mundo e suas desrazões:
ensinar que é mais fácil um camelo
atravessar o fundo
de uma agulha
do que um rico ingressar soberbo e livre
no Reino dos Céus

O sopro

A mulher sentada à minha frente
brinca com a carteira –
distraída

Gira e revira a asa
da carteira,
enrola-a entre os dedos,
volta após volta

Como um pássaro breve
e dançarino,
a asa da carteira ganha vida
nos dedos da mulher

A carteira é azul e o fecho é amarelo,
a mulher é velha,
a saia desbotada, uma blusa cansada
e também velha, usa chinelos

Mas brinca com a asa
da carteira
num ar feliz de criança ou pardal,
sem se preocupar com as pessoas sérias
de mãos serenamente,
seriamente pousadas sobre o colo,
lendo quietamente o seu jornal

A mulher sentada
à minha frente
brinca com a carteira,
distraída

Distraída, a mulher? Ou a carteira?

fazendo piruetas,
volteios elegantes, curtos passos de dança,
ao dar-lhe o sol de lado, na cabeça,
a mulher fica quase bonita
no seu ar distraído de criança
ao dar vida à carteira,
que dança

distraída

no seu colo

buraco negro:
o silêncio do escuro

Olhar a escuridão
do não visível,
imaginá-lo aqui,
nesta fotografia
de jornal

O fim do tempo
a conclusão de um espaço,
pequeno abismo
agasalhado
em lume

Os portões do inferno
no anel que o rodeia
e dentro, nada:
a pura escuridão

E nós, borboletas na luz,
moscas defronte a vidro
zumbindo na atracção da paisagem de fora,
teimando entrar no vidro
sem saber da sua transparência

Como conseguir ver
o rosto de um tritão,
a escama mais brilhante
e mais remota
de um corpo de sereia

que existe agora para nós,
real,
bebendo a luz do sol,
a luz de nós,

mas deixando-se ver
como uma antena
(mesmo em papel vulgar)
da história
que nos diz –

O vento e a flor

a minha japoneira

ganhou
novo sentido

quando o seu som
de luxo oriental

passou
a ser ouvido