A. M. PIRES CABRAL
CHACIM, 1941
TRES POEMAS
Cães que tive
Cães que tive
I
Na minha infância houve sempre cães.
Eles passaram por nós humanamente,
benignos, praticáveis, como que utensílios,
e, uma vez esgotados os seus préstimos,
retiraram-se com recato
para uma cova algures no olival.
Uma perdigueira gorda a que por antífrase foi dado
o cheio de humor nome de Miss.
Era da minha idade e durou treze anos
e durante esse tempo, julgando-me vulnerável,
tomou-me a seu cargo quase maternalmente,
rosnando e mordendo aqueles que achasse
que vinham a mim por mal. (Às vezes cometia
erros grosseiros de avaliação,
mas enfim, a intenção era boa.)
Um cão mestiço não sei de quantos sangues
chamado Dick. Tinha o nariz rachado
e sobrancelhas claras em contraste
com o castanho escuro da pelagem,
que quase faziam do seu focinho um rosto,
e era mau como as cobras para os estranhos
— mas indulgente e dócil para nós.
Cães. Anda ainda a sombra deles
em fotografias que esmaecem
numa caixa de lata.
II
Os cães pertenciam à família,
mas secretamente eram só meus,
porque um cão não se reparte com ninguém
e não há infância sem um cão só nosso,
ao qual chamamos algum nome
equivalente a amigo ou companheiro
ou brinquedo ou magia ou aventura.
E eles sabiam-no, e gostavam, e por isso
preferiam o meu assobio a qualquer outro.
Eles ensinaram-me coisas que nenhum
professor pôde jamais ensinar.
Coisas de resto bem mais interessantes
que o nome da mulher de D. Sancho II.
E não cobravam propinas.
Davam-se por bem remunerados
com a minha mão pousada na sua cabeça
— e, naturalmente, com as sopas
(e por vezes alguma carne de segunda)
que minha Mãe, pontual, lhes punha na gamela.
Mas não tiravam os olhos da minha mão
quando eu estava a comer o pão com queijo
da merenda, e nos seus olhos eu lia
o que tomava por uma mansa intimação:
vá, reparte o pão comigo, assim como eu reparto
contigo aquilo que tenho para repartir.
E tinham tanto para repartir. E eu repartia.
III
Cães. A sua voz cheia reboando ainda
nas altas grutas da lembrança. Farejando.
Patrulhando o sol daqueles dias.
Abanando a cauda em sinal de concordância.
Sendo meus súbditos e minha disponível
guarda pretoriana. Amando-me
à sua maneira. E agora jazendo,
nem eu sei já onde — os cães que tive.
Gato morto
I
Na beira do caminho, um achado
que diríamos macabro, se não fosse
apenas natural: um gato morto.
Vêem-se dentes arrepanhando a boca
e as pupilas despojadas do vigor de outrora,
que não deve ter tido tempo de pôr a recato.
As formigas já se aperceberam.
II
Sentindo perto a hora
de desvendar o corpo à morte,
afastou-se da aldeia para morrer.
O instinto ensinou-lhe que a natureza
ainda é o melhor cenário
para reentrarmos nela.
Agora está ali. Mas não está.
Já só por comodidade se pode chamar gato
àquela massa envolta em pêlo,
em vias de podridão,
devassada de formigas.
Donde se ausentou o que quer que fosse
que fazia dela um gato.
III
Como fazíamos quando éramos crianças
ao ver um bicho morto,
cuspo-lhe em cima e prossigo o passeio.
Com cheiro a gato morto e formigas
nas narinas da alma.
Nalguinhas
I
Era um dos ‘cães que já morreram’ —
esses bravos cães compinchas,
que estiveram connosco e cessaram
antes de nós.
Não era meu, mas era como se fosse.
Assobiava-lhe de longe — e ele ia comigo
até aos confins do nosso mundo,
campos fora: adorava essas incursões
que davam directamente para a liberdade
dos caminhos da serra —
liberdade celebrada
a esguichos de chichi criteriosos.
II
Tenho muito que te agradecer, Nalguinhas.
A companhia em tardes imóveis de Verão
em que o relógio emperrava,
e tu a meu lado impaciente,
como perguntando: hoje não vamos?
Mas principalmente
o fazeres de mim um miúdo de dez anos
quando corrias à solta nos lameiros
ladrando às cotovias
— e eu, a ver-te correr, me despia do tempo.