Urbano Tavares Rodrigues – A rapariga dos olhos de neve

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO2

URBANO TAVARES RODRIGUES

A rapariga dos olhos de neve

Lisboa, 1956

Acintilação do sol feria aqueles grandes e doces olhos de um azul claríssimo, que pareciam quase brancos e que ela protegia com uns óculos escuríssimos, criando, assim à sua volta um clima de mistério, ainda acrescentado pela alvura sardenta da sua tez, que contrastava com o cabelo quase negro, que lhe tombava em cachos sobre a testa e descia desordenadamente pelos ombros abaixo.

Zinia era filha única de um proprietário abastado da região de Tomar, que queria casá-la com um ricaço canhestro e obeso, pelo qual ela sentia a maior repugnância. E por mais que tentasse dissuadir o pai desse projecto, não conseguia demovê-lo. Era homem obstinado, sentia-se velho e doente e julgava assim assegurar o futuro da filha.

Vendo-a tão sombria e às vezes mesmo a chorar nos bancos do jardim, um moço da lavoura que tinha por ela uma silenciosa adoração, veio timidamente oferecer-lhe os seus préstimos.

—Eu vou-me embora, Pedro. Se queres ajudar-me, vais selar-me um cavalo, pode ser o Vento Norte, com o qual eu me entendo bem, arranjas-me umas calças de homem para o meu tamanho, e trazes-me um cantil com água e um alforge com alguns mantimentos.
—Não quer antes uma charrete?
—Não, acho que me atrapalhava a viagem.
—Quer que eu vá consigo?
—Não, Pedro, obrigada, eu vou sozinha até ao Alentejo. E logo se verá o que arranjo como modo de vida.
—A menina é que sabe.

E esmerou-se em tudo o que lhe trouxe, com os olhos molhados de lágrimas.

Lá foi Zinia por esses campos do Ribatejo –era Primavera, relvas e flores ardentes dialogavam com o azul do céu– e lá atravessou o grande rio pelas Portas de Ródão.

Dormia ao relento, embrulhada num cobertor, poupava a comida e a água e às vezes cantava, calcando as terras ermas do Alentejo, bordejando searas salpicadas pelo vermelho das papoilas, pelo ouro dos malmequeres. O casario, com a alvura resplandescente da cal, encandeava-a, mesmo protegida como ia pelos seus óculos quase negros.

Levava consigo, para eventuais maus encontros, uma pistola, que tirara de um gavetão do pai, e uma navalha de ponta e mola, que servia para tudo.

Chegou assim um dia a uma aldeia grande, Safara, com bela igreja e algumas casas apalaçadas, com capela e pedra de armas.

À porta de uma delas, o fidalgo da terra, também grande lavrador, chamou-a e perguntou-lhe para onde ia.

—Por aí…
—Desça lá do cavalo. Talvez a gente se entenda. O que é que sabe fazer?

Zinia sorriu, pouco à vontade:

—Costura, comida, aprendi a tocar piano, estudei línguas, o francês, o espanhol.
—É sabedoria a mais. Se quiser ficar por cá, vai-se habituar a outros trabalhos. Mas fica perto de mim.

E, puxando-a para si, num jeito possessivo, não deixava dúvidas sobre as suas intenções, foi-lhe apalpando o seio, tocando-lhe nas nádegas.

Zinia crispou-se, tentou arrancar-se àquelas intimidades grosseiras que lhe causavam asco, mas o fidalgo zangou-se.

—Que merda é essa, quem é que tu te julgas?!

E cada vez a brutalizava mais.

Até que ela, retirando a navalha do bolso onde a dissimulava, lha cravou num braço, de onde logo o sangue jorrou.

E não esperou um segundo. Saltou para cima do cavalo e largou à desfilada pela calçada e logo após pelos campos, para sul, ensurdecida pelo estampido de dois tiros de caçadeira, que felizmente erraram o alvo.

E agora? Ia galopando por terras de semeadura, montados adustos, onde colava a cabeça ao pescoço do cavalo, para evitar os ramos mais baixos dos chaparros.

Via raposas, lebres, coelhos, aves de rapina, uma natureza selvagem, que o seu galope parecia violar.

Sem comer, sem dormir, já exausta, ia passando pelos montes da zona de Mértola, internando-se numa zona cada vez mais áspera e despovoada.

Foi então que inesperadamente, numa clareira, lhe surgiu pela frente um bando de homens armados, quase todos barbudos e muito excitados, aos gritos.

O cavalo, assustado, tropeçou num pedregulho e caiu com Zinia, que ainda conseguiu destribar-se, mas partiu na queda um dos aros dos seus preciosos óculos pretos.

Ajudaram-na a levantar-se, pareciam espantados com a sua aparição.

Aquele que deveria ser o seu chefe, homem muito alto e magro, sorriu-lhe e com todo o jeito sentou-a no toco de uma árvore que ali fazia as vezes de cadeira.

Zinia recuperava a sua serenidade, tinha apenas uns arranhões nos braços, uma dorzita nas costelas.

Era evidente que se achava no meio de um bando de salteadores, todos armados, olhos cobiçosos e espantados, cravados nela.

—Chamo-me Rodolfo –disse o chefe–. Isto aqui é um deserto. Se quiser ficar connosco, ninguém lhe toca. Nem eu. Temos tempo para ouvir a sua história. Quando quiser ir embora, se quiser, deixamo-la ir.

Zinia, agarrando o aro partido dos seus óculos, ainda zonza, disse:

—Eu talvez possa ajudar-vos. Sei cozinhar, lavar roupa e pouco mais. O cavalo ficou ferido?
—Pouca coisa. Já está o João a tratar dele. Você é que precisa de recuperar as forças.
—Ainda tenho aí no alforge pão e uns queijos, que quero partilhar com vocês.

Comeram à volta dela, uns sentados, outros estiraçados no chão.

Zinia por ali ia ficando, via-os partir para os assaltos. Sabia que Rodolfo evitava, por princípio, o derramamento de sangue, mas nem tudo corria sempre segundo os seus desejos, até a algumas violações ele assistia, voltando a cara.

De uma vez que eles atacaram, já na serra algarvia, uma vilória turística, roubando casa a casa o melhor que se lhes deparava, Zinia acompanhou-os.

Revolveu-se-lhe o estômago vendo os salteadores espancarem quem lhes resistia. E os velhos a soluçarem, as crianças a fugirem para as brenhas, onde se escondiam.

«Quem sou eu? No que é que me tornei?», dizia Zinia a si própria, em meio daquela desumanidade corriqueira.

O regresso foi eufórico para os salteadores, carregados com a presa que levavam, tapetes, ouro, dinheiro, um gramofone, até reposteiros, talheres de prata, cobertores, garrafas de vinho.

Zinia, acabrunhada, seguia cabisbaixa ao lado de Rodolfo. Este acomodou-se num relevo da erva seca e, puxando-a para perto dele, indicou-lhe outra relevância do terreno.

—Sinto hoje, nem sei bem porquê, uma grande necessidade de te contar quem eu sou e como aqui cheguei. Sou filho de um engenheiro técnico de Coimbra, onde fiz os estudos do secundário, com a intenção de me matricular em Direito.

Tinha dezassete anos, era já muito alto e desengonçado e abria uns olhos de espanto e comiseração para os cegos, os mendigos, os sem abrigo que gravitavam nos subúrbios e às vezes eram arredados e expulsos pela polícia das zonas nobres da cidade.

Comecei a ajudá-los, a dar-lhes comida e agasalhos, a falar com eles, a rir, a descobrir os seus dramas e infortúnios, as suas tristes vidas. 

E assim aconteceu que um dia em que a polícia os enxotava à bruta, para uma lixeira dos arredores, eu intercedi, meti-me pelo meio e, agredido também, volteime à autoridade, a soco e à cabeçada. 

Meteram-me numa cela imunda, entre tontos e malfeitores piolhosos e cínicos.

Fui julgado e condenado por agressão à polícia e foi no convívio com os outros presos, que me aceitaram e me industriaram nas suas artes, que me tornei um associal.

Cumprida a pena, trambolhei por este país abaixo, sem rumo, mendigando e roubando para sobreviver e aqui dei com os ossos.

Acompanhei esta malta nas suas razias. Viram-me em acção, afoito e de cabeça fria. Sabia falar, tomar decisões, até lhes fazia os curativos, quando eram feridos nalguma refrega.

Tornei-me assim o chefe, por tácito consenso.

Zínia pegou-lhe na mão e apertou-a, fez-lhe uma festa, que trouxe ao rosto escalavrado de Rodolfo a aurora de um sorriso.

Vieram os chuviscos de Abril e um húmido sol primaveril a adoçar as rotinas do acampamento, os assaltos, furtos e escaramuças habituais.

O gramofone tocava músicas alegres, que os salteadores trauteavam num gáudio que os transformava.

Uma bela tarde a que o arco da velha trazia insólitos coloridos, chegou ao acampamento, esgrouviado, andrajoso, com uma mula pela rédea e o olhar ainda indeciso, nada mais nada menos do que o Pedro, o criado de lavoura que dera fuga à menina Zínia e que aos pés dela se deixou cair, arfando.

—Pedro, como é que aqui chegaste?
—Nem eu sei, perguntando, apalpando o terreno, adivinhando. Menina Zínia, o seu paizinho morreu e aqueles galifões que a menina conhece andam já a cobiçar-lhe as terras, dão-na por morta, desaparecida há tanto tempo. Tem de ir tomar conta do que é seu.

Zínia acenou que sim com a cabeça. Olhou ternamente Rodolfo, que parecia tomado por uma tremura nervosa. Pôs-se em bicos dos pés, agarrou-lhe as abas do casacão e, puxando-o por um braço, beijouo na boca.

—Então gostas de mim?
—Há muito que eu te quero, mas não havia condições. Agora proponho-te vires comigo e casarmos. Achas disparatado?
—Eu não, eu nem sonhava, sinto-me tão feliz.

Pensou um pouco:

—E vamos arranjar um transporte mecânico. Dinheiro não me falta, bem sabes. É dinheiro sujo, mas vai ser bem empregue.

Zínia abraçou-o pela cintura.

—A minha vida verdadeira começa hoje.