Rita Taborda Duarte

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO1

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RAÚL VALERIO. Serie Fadistas. Herminia Silva. 2010.

RITA TABORDA DUARTE

Suaves Milagres

(Lisboa, 1973). Em 1998, publica o seu primeiro livro de poesia (Poética Breve) e em 2002 ganha uma Bolsa de Criação Literária, para a produção de dois livros (Na Estranha Casa de um 0utro e Dos Sentidos das Coisas — Experiências Descritivas (com co-autoria de André Barata). Em 2003 recebe o prémio Branquinho da Fonseca Expresso/Gulbenkian, pela obra infantil A Verdadeira História da Alice (2004).

Épela altura do Natal que mais se repara nas miudezas particulares de uma família. Se mirarmos de través algumas mesas natalícias, pode calhar-nos em sorte apreciar completas séries perfiladas de narizes aduncos, desde o do avô, muito usado de cheiros, ao do pequeno no colo, alardeando já a protuberância curva, ainda em botão. Olha-se para o rebento e diz-se «cá está o nariz do Monte da Vinha», invocando o berço de origem das curvadas narigas. Mas, nem só de parecenças físicas vive a genética familiar; os genes também acentuam tiques, multiplicam feitios, reproduzindo-os de geração para geração. É por isso que à mesa, no Natal, sonoríssimas gargalhadas, agudas, são duplicadas por primos de barba e barriga, e logo ensaiadas por sobrinhos imberbes; elucubrações galantes, herdadas de pais para filhos, são dirigidas, sem discriminação, às senhoras da casa, avós, noras, cunhadas, netas; e enquanto famílias inteiras se atropelam em gestos gémeos e larguíssimos, como se mãos e braços buscassem deter o que a boca desprevenidamente já deixou fugir, outras apuram o silêncio em cerrados mutismos, que se prolongam até à missa do galo: tios, avós, sobrinhos, de voz enterrada nas carrancas: dar ao dente é o único uso que concedem à boca na noite de Natal.

Na minha família não abundam os louros nem os morenos, e tanto há quem grite de narigueta afiada, como quem descaia a beiçola enquanto remói em surdina, debaixo do nariz em arrebique; também os há alarves e os intelectualistas, de tédio à espreita, mas tudo com justa medida, em equilibrada proporção. Nada de exclusivo nos distingue, à primeira vista, como membros inequívocos da mesma unida família: raros os denominadores comuns: nem grossas sobrancelhas arqueadas, nem bochechas pendentes, nenhum andar de perna à banda que se nos aponte. De um relance, ninguém diria de algum de nós «Ora ali vai um Pereira Andrade», como acontece com tanto Vaz, tanto Correia, Silveiras. Cada qual do seu feitio, cada um na sua bitola, gordos, entroncados, afiladinhos, alguns que se excedem em remoques e azedumes, outros que amiúdam os sorrisos e as simpatias largas. Agora, quem nos conheça a fundo, pelo convívio cúmplice, quem connosco partilhe uma ceia de Natal, rapidamente atesta da validade das genéticas ciências.

A verdade é que desde há gerações de gerações assoma nesta família um ateísmo interino que lhe vem do fundo da alma e se lhe cola à carne; uma natural má vontade contra Deus, que larga um rasto de rancor à nossa passagem, e que se exibe nas mais variadas manifestações. Uma ironia ruim, ora disfarçada de sorriso cínico, a apalavrar- se de franco, ora a desvelar-se de chapa, no sobrolho franzido, carregado de espessas sobrancelhas. A ter de escolher, entre caminhos do bem, caminhos do mal, atalhos pedregosos ou de areia fina, num repente, mais depressa cada membro da família tende para os desvios aprazíveis, carregados de flores irónicas. Um verdadeiro mau fundo no que toca às coisas do divino é o que nos une, está-nos nos genes. Do sangue aos ossos.

E isto não é de hoje, nem fora de ontem: remonta a princípios distantes, quando nem se festejava ainda o Natal, e havia pouco (se pensarmos que o muito é a eternidade) que o então jovem espírito santo pela primeira vez concebera. Nesse tempo Jesus ainda se não afastara de Galileia, e já corria a fama do rabi moço que distribuía milagres: Surge et ambula, e lá iam os paralíticos braço a braço com os ceguinhos. No meio da milagreira foi deixando para trás as nobres rezes de Orbed (Eça em boa hora o lembrou), e na sua luminosa vontade de justiça, desamparou sem dó, sem piedade, as desventuradas ovelhas, a quem muito devia, nem que fosse pela inspiração metafórica por que passou a nomear a sua prole de seguidores. Mesmo a melancólica filha de Publius Sétimo, de fragilidade pueril a remirar, com os olhos fracos, a desfocada ave perdendo as alturas do céu, hipálage certa do seu próprio destino, não comoveu o Messias de Judeia, que por essa altura ainda se não afastara das doces, luminosas margens do lago de Tiberíade. Pagou a menina pela soberba do pai definhando sem queixume, com os olhos tristes alongando o mar de Tiro.

Jesus, coberto de fama, escolhia (este sim, aquele não, este sim, aquele não), com santos e divinos critérios. E foi seguindo esses critérios, santos e divinos, fechando os olhos aqui, para os abrir mais adiante, que deu por si a empurrar lentamente a porta do casebre onde se encolhiam viúva e filhinho na enxerga rota, na triste penumbra à míngua de azeite que os alumiasse. Jesus entrou, bradou Aqui Estou, e fecit lux. À criança sararam as chagas. Fez-se forte e garboso moço, o enfermo menino, e depressa esqueceu o dom concedido. Melhor, esquecer não esqueceu: passou a roer-lhe a dúvida quanto aos verdadeiros intuitos divinos e hesitava, no fundo, em ser o protagonista de um milagre só de encher o olho, alimentando a miraculosa vaidade do Senhor: «porquê salvá-lo a ele, abandonando outros ao sofrimento sem cura, quando na sua imensa potestade tudo podia e em simultâneas de bondade, pa ta ti… e a menina romana dos olhos longos e inocentes, pa ta ta e as ovelhinhas, pacatíssimo animal». Segue-se uma troca de palavras pouco feliz, «se era para salvar o mundo, então que tocasse a trabalhar; se fosse para mostrar poderio, ora aqui, ora acolá, sem regras certas e ao calhar de santíssimos caprichos, que não contasse com ele, para compor o ramalhete». A isto somaram-se uns galhardetes a atirar para o azedo, de parte a parte, e o moço, inchado de ingratidão juvenil, não fez por menos e deixou de falar com deus. Tornou-se ateu. O Outro não gostou e tomou-o de ponta – a ele e à descendência – para a eternidade ou pelo menos até mais ver, seguindo uma linhagem de atitudes que lhe vinha já da mãe, quando entortou a boca à solha e envenenou o tremoço.

Foi assim que nos tornámos, mesmo sem o querer, todos bons ateus e com tão arreigada convicção, que passar de defeito a feitio, e de feitio a código genético, foi um fósforo, uma cadência de estrela. Deus não gosta; leva a mal. E prejudica-nos, em toda a sua extrema bondade. Mesmo imbuído de toda a tolerância divinal, que se impõe ao desempenho de suas sacras funções, só com dificuldade aceita Jesus a liberdade religiosa.

Convivemos bem com isso, nós, na nossa família, e lá vamos persistindo, desafiantes, na nossa ceiazinha natalíssima. Cada 24 de Dezembro, lá está o bolo-rei e não falha o presepiozinho irónico à beira da árvore. Mas Jesus não aprecia a galhardia e, do alto de toda a sua benignidade, guarda-nos rancor. Passados tantos anos, ainda nos leva a peito a soberba ingratidão.

No entanto, no nosso humilde opinar na ceia de Natal, conversamos muito, em família, sobre o assunto e sempre chegamos à conclusão de que Deus está errado: Ele haveria de ser o deus de todos os cidadãos, ateus ou não.