Possidónio Cachapa – As carpas

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO1

POSSIDÓNIO CACHAPA

AS CARPAS

(Évora, 1965), escritor, mas também argumentista e realizador. Com romances como Materna Doçura, 1998 (traduzido em Espanha em 2003), O Mar por Cima, 2002, ou Rio da Glória, 2007, tem desenvolvido a sua carreira de narrador. Realizou o documentário Adeus à Brisa, dedicado à vida e obra de Urbano Tavares Rodrigues. Também autor teatral, com peças como Shalom, 2001, A Cibernética e Hipnotizando Helena, ambas de 2005.

No restaurante tailandês, ela pousou os talheres brilhantes e pensou que não deveria ter escolhido aquele prato. Pequenas coisas castanhas escorregavam constantemente do garfo, mergulhando, aflitas, naquilo que parecia ser um lago breve e viscoso. Mas o alemão da ementa baralhara-a. Desejou ter lido com mais atenção o livro que ensinava a língua de Goethe em dez lições.

No interior da sua cabeça, a tia resmungou, “Quantas vezes te disse que nunca se lavam as mãos vezes de mais, nem se come o que não se conhece”. Mas a tia mantivera-se sempre virgem, vestida de preto por mortes do pai e da mãe ocorridas vinte e três anos antes, o que, aos olhos de Matilde, relativizava um pouco a confiança, nela. Pelo menos, depois dos trinta e dois anos. “Não como carne há anos, tia. E, que culpa tenho, se a vida me trouxe até este país onde bratwurst e schnitzel me perseguiram, dias a fio, assinalados em cartazes, montras de loja e até gritados à porta de restaurantes? Cheguei aqui de estátua em estátua, de rua cinzenta em rua cinzenta, vencida pelo cansaço.” A parente tinha ficado calada, menos por força dos argumentos e mais por ter sido criada entre matanças de porcos e galinhas, uma existência completa sem suspeitar sequer de que alguém poderia recusar-se a comer carne… Matilde olhava agora, melancolicamente, para o expositor ao centro e pensando que talvez fosse boa ideia atacar directamente a salada de frutas e os quadradinhos doces feitos com banana, reservados para a sobremesa.

Do outro lado da mesa dela, o homenzinho minúsculo não parava de dar às pernas. Via a perplexidade da mulher, mas só conseguia pensar que tinha tido muita sorte em engatar alguém, antes da uma da tarde. À noite, era sempre mais fácil, mas assim, de dia, era uma coisa a registar. Passou em revista, mentalmente, todos os hotéis baratos que conhecia na zona e onde poderia levá-la, de forma a fornicarem toda a tarde, por poucos euros. Ou apenas durante o tempo que ela tivesse, antes de voltar para o lugar onde pernoitava. Talvez de marido à espera. Isso interessava-o pouco, e se haveria qualidade que o caracterizasse, era a compreensão do outro. Da outra, sobretudo. Passou as mãos nos calçõezinhos de couro, presos por suspensórios com flores e pensou que em breve a mulher, ou rapariga menos nova, vá, estaria por baixo dele a dar às longas pernas, falando uma língua qualquer, enquanto por cima, ele pensaria no mar que quase nunca via ou em barcos onde ainda menos andara.

“Oh”, dissera ela, uma hora antes, levantando os olhos dos pés descalços onde as tiras das sandálias tinham lavrado a murro pequenos sucos vermelhos, “O senhor que é oriental deve saber onde poderei encontrar um restaurante barato e que não venda tudo morto à paulada e com sangue. Li, algures, que todos os orientais, sejam chineses, vietnamitas ou indianos, não comem animais, logo, estão como eu”.

Ele não percebeu logo a história do orientalismo e levou a mão aos olhos estreitos de anão. Mas viu-a assim, tão branquinha e apetitosa, tão passível de ser derrubada na cama por um desconhecido, que lhe disse logo que sim. “Chamo-me Jans… TohShim” e não sou anão, embora pareça. Os meus pais é que por avareza não só quiseram um único filho, como ainda insistiram comigo para que não passasse de um metro e quarenta e cinco”. Ele abanou a cabeça afirmando que isso não tinha importância nenhuma, mas Jans, agora oriental, não se deixou vencer e ainda lhe contou como o karma que, já se sabe, nunca falha, lhe atingira os parentes, fazendo-lhes arder a casa de três andares e os respectivos haveres, numa noite de tempestade. “Envergonhados e sem saber o que fazer com tanta leveza no bolso, o Papá e a Mamã correram para a floresta em frente e desapareceram para sempre. Fiquei pequeno e herdeiro de nada, pela idade de quinze anos. O que sendo pena, não é incomum em famílias do Oriente”.

“Faz o quê?”, perguntou-lhe o homem, enquanto caminhavam para o restaurante. “Faço o quê?”, “Sim, estuda, trabalha, desempregou-se”. “Oh, nada disso. Estou aqui apenas para enterrar parentes”. Ele lamentou, pois claro, que sempre era triste, ainda mais na Alemanha, logo ela que tinha cara de vir tão longe. “Enterrar parentes é como calçar sapatos apertados: custa, mas é necessário e, tarde ou cedo, a coisa alivia, embora deixe marcas no corpo.”

Comiam agora os dois, enquanto duas carpas preguiçosas nadavam em círculo numa fonte de porcelana. De vez em quando, uma delas vinha mais à superfície e fazia bolhas com a boca aberta. Depois trocavam. Era assim.

“Gostava tanto de ir consigo para a cama”, disse-lhe ele, por alturas da sobremesa, e segurou-lhe os dedos com a mão pequenina. Ela sorriu, timidamente. “É muita gentileza da sua parte, tanto mais que nos conhecemos há pouco mais de uma hora…”. “Oh, o tempo para mim, nestas coisas, conta muito pouco. Havendo boa vontade, um para cima, outro para baixo, e no fim, bate tudo certo, ou mais que certo”. Ela passou a mão no tecido fino do vestido. “Admiro o seu espírito compreensivo. Eu por mim, nunca me passaria pela cabeça ter sexo consigo, por não haver nada em si que me atraia. Presumo que eu pouco lhe interesse como pessoa, por isso, acho admirável que se disponha assim a este esforço. Muito obrigada”.

“De nada, de nada”, vamos lá mas é pagar a conta que se faz tarde”. E assim fizeram.

O anão que afirmava não o ser, vivia num apartamento minúsculo, em que a sala e o quarto que eram só um, davam um saltinho para a kitchenette, onde uma panela vivia sozinha, por cima de um fogão de dois bicos. Matilde ia para se sentar, mas nem teve tempo, porque já ele a empurrava para o sofá-cama, com uma mão, enquanto com a outra afastava os suspensórios.

Lá fora, o dia escureceu um pouco, enquanto no chão de soalho a tira de uma das sandálias se movia de vez em quando. Um pouco. Apenas um pouco. Um carro travou a fundo na rua, muitos metros abaixo e alguém gritou insultos em alemão, enquanto a roda traseira da sua bicicleta caída no solo continuava a girar. O semáforo mudou para amarelo, antes do verde e os condutores dos veículos próximos, que tinham olhado distraidamente a cena, arrancaram sem grande pressa, por entre os prédios em construção, sinais de direcção e, por cima, o desenho de nuvens cinzentas que não pareciam dispostas a ir longe.