Pedro Paixao – O homem que não sabia de si

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO2

PEDRO PAIXÃO

O homem que não sabia de si

Lisboa, 1956

Cedo notou existir uma diferença entre desejar estar com uma pessoa e estar de facto com ela. Uma diferença que não pode ser anulada. Dentro do carro, a trezentos à hora, vai a pensar na namorada: nos caracóis do seu cabelo, nos seus olhos de amêndoa, no longo beijo que lhe vai dar. Quando chega a casa dela, os pais estão na sala a tomar chá e perguntam se ele não quer uma chávena enquanto ela acaba de se arranjar e o cão não pára de ladrar. Quando, passada uma eternidade, ela se apresenta, vestida da única maneira de que ele não estava à espera, e diz: vamos ao cinema ver o último do Woody Allen, não compreende se se trata de uma pergunta, de uma sugestão, de um pedido ou de uma decisão já tomada. Ela sabe que ele aprecia os filmes daquele genial cronista dos nossos desordenados dias. Não lhe apetece por aí além ir ao cinema, mas não quer deixar de fazer o que julga que ela pretende fazer para lhe agradar. O que ele queria era o beijo, que tem de ficar adiado.

A caminho do cinema leva consigo uma série de frases que lhe quer dizer, que preparou quando ia para casa dela: tu és a flor da minha vida, sem ti nem sei quem seria, amo-te como a terra ama a água. Não diz nenhuma. Não vêm a propósito. O carro da direita ultrapassa-o bruscamente e profere um palavrão. Ela pergunta: tens a certeza que este é o melhor caminho? Ele responde, ligeiramente irritado: porque será que nunca acreditas no meu sentido de orientação? A irritação aumenta quando não encontra um lugar para estacionar o carro. Se uma epidemia fizesse desaparecer metade da população do país, diminuiriam para metade o número de carros. É um cálculo que reserva para si.

Dentro do cinema, como sempre, quer ficar isolado nas filas da frente e ela um pouco mais atrás. Estabelecem um compromisso. Mal o filme começa ouve perto de si o barulho ensurdecedor de alguém a comer pipocas. Virase várias vezes na cadeira mas não encontra uma posição confortável. Volta-se para trás e diz: não se importa de diminuir o volume do som? Ninguém lhe responde mas sente nitidamente que a sua namorada já deixou de ver o filme. Por favor, não faças caso, concentra-te no filme, implora ela. Passados dez minutos levanta-se e sai. Dois minutos depois ela levanta-se e sai. Nunca mais venho ao cinema contigo, protesta, é a segunda vez em dois meses. O melhor é levares-me a casa. É o que faz. De regresso à dele volta a pensar na sua linda namorada, a primeira, a mais bonita da cidade inteira, nos cabelos feitos de caracóis, nos beijos que sabem a mar. Chega a casa, fechase no quarto e telefona-lhe pedindo desculpa. Promete que não voltará a acontecer. Volta sempre a acontecer. A tal diferença insuperável.

Com o tempo foi aceitando que assim fosse. É uma experiência comum entre amantes, familiares ou mesmo simples amigos. A outra pessoa nunca é quem tu queres que seja. Simplesmente por ser uma outra pessoa. Se ela fosse exactamente como querias, não a quererias, seria quanto muito uma bela escrava. Aliás não sabes realmente como querias que ela fosse. Se soubesses, o teu desejo diluir-se-ia, transformando-se em puro tédio. Duas pessoas podem amar-se e não suportarem almoçar frente a frente. Proibirem-se de estar juntas para fazer perdurar o seu amor. Por isso é que as cartas de amor são tão importantes: por serem em parte verdade, em parte mentira. O amor também é assim. De qualquer modo já não se escrevem cartas de amor. Eram coisas nas quais pensava, a diferentes horas do dia ou da noite. Um amor que se termina antes de acabar é o único que se pode preservar.

No amor há muitas coisas: memórias, expectativas, segredos e mesmo vícios. O meu amor transforma-me e eu transformo o meu amor. Não é algo que se queira ou não. Acontece assim. Planear uma viagem é muito diferente de a fazer e a vida é uma viagem da qual se desconhece a origem e o desfecho. Ele não era a mesma pessoa que se lembrava de ter sido e chega a acreditar que não foi quem era, nem é quem é. O que lhe pareceu ser desastroso revelou-se uma bênção. O que teve por certeza desfez-se em pó. Não consegue justificar a louca paixão por uma mulher que afinal nem sequer era do seu tipo. Lembra-se de estar com ela face-a-face, tão surpreso pela sua beleza como se nunca a tivesse visto, mas é incapaz de voltar a sentir isso que sentiu.

Afinal quem era ele: o ansioso indivíduo à procura de si, julgando saber com suficiente rigor o que pretende, ou o indivíduo perplexo diante do inconcebível? Foi aqui, ou por perto, que começaram a despontar irresolúveis problemas. Pois se ainda é aceitável não poder saber em definitivo quem o outro é, o que não parece admissível é não poder saber quem se é. Esta ideia ocorreu-lhe quando descia sozinho a Avenida da Liberdade. Uma tontura tomou conta de si. Teve de parar num café, sentar-se e pedir uma água. Uma experiência da qual nunca se esqueceu: não saber quem se é durante uma vida inteira.

O que lhe vale é que há longos períodos de tempo em que não há tempo para pensar em certas coisas. Passar de ano para ano, no liceu e na universidade, já parece dar um sentido suficiente à vida que nos leva. Eu sou quem está no terceiro ano de engenharia química e, se não chumbar, estarei no quarto no ano que vem. É uma segurança para a alma: uma escada que se tem de subir. O horizonte do mundo mostra-se estável: passar de ano. Quando a escada acaba e se tem de procurar trabalho abre-se um abismo e instaura-se uma crise. Passa-se a pensar, com intervalos cada vez mais curtos, que é bem possível que não venha a ser aquele quem julgava que seria. Um receio que ainda se pode afogar com álcool, comprimidos e novos vícios. Tem de se trabalhar, mesmo não sendo o trabalho ideal, que reserva para mais tarde numa gaveta da esperança. O problema está quando se descobre que não existe o trabalho ideal. Qualquer pessoa pode sempre executar, não uma só tarefa, mas várias, e ao executar uma, exclui as oportunidades de ser outro. Vai repetindo para si: ainda não é isto, mas um dia virei a ser quem sou. Só para descobrir, bem mais tarde, que de facto ignora o que mais gostava de ser, de ter sido.

Uma pessoa pensa: o que eu mais quero é vir a ser um escritor, sem fazer a mínima ideia do que é ser-se um escritor. Pode mesmo acontecer que depois de ser reconhecido como tal passe a duvidar se afinal era isso o que desejava ser e sente-se como nunca desadaptado e só. Por isso mais uma vez o álcool, as drogas e os novíssimos vícios. O que ele devia era ter tido cinco filhos e amado uma só mulher, cuidado de uma família, sacrificado o seu odioso egoísmo. Uma pessoa quer ser tudo e não pode ser senão um de cada vez e quem vai sendo não é na verdade senão parte de quem é. Eram raciocínios perigosos que ele evitava tanto quanto podia.

Um dia resolveu deixar de fazer tudo o que fazia para se poder metodicamente encontrar a si próprio. Quando se está a trabalhar uma pessoa confunde-se com o que faz e não é na verdade quem é. Quando uma pessoa se está a distrair, ouvindo música ou vendo televisão, também está longe de si, transportado pelo que não é. Quando uma pessoa está a amar é dominada por uma misteriosa energia que o faz fazer e dizer coisas que por si só nunca faria ou diria.

Chega cansado à casa vazia e senta-se no sofá do costume. O que não quer dizer que fique sozinho. Trouxe consigo do trabalho vagas imagens, fragmentos de inúteis conversas, refugos de ideias de projectos por desenvolver: restos do dia dos quais não se consegue desfazer por um simples acto de vontade. Toma um duche frio. Quando por fim se sente sozinho é para ser tomado por uma recordação, uma culpa, um falecido desejo por alguém. Continua a não ser quem é, se para si próprio é sempre outro oscilando entre a negra melancolia e um imbatível vigor.

Não é fácil não fazer nada. A desocupação abre as portas sobre o tédio. Alguma coisa tem de fazer. Vai ao sótão buscar uma caixa de papelão cheia de postais e cartas que não vai reler, verifica o que tem e o que não tem no frigorífico embora não tenha qualquer intenção de ir comprar o que quer que seja, põe um disco compacto que ouve durante minutos e depois retira-o, perplexo por não conseguir responder à simples pergunta: mas afinal de onde vem a música? Ainda são sete da tarde e nunca mais vai adormecer.

A distância que vai dele ao outro não é menor do que a que existe de si para si. É diferente. O outro parece mais ajustado ao que os outros julgam que ele é, ao que dele esperam. Parece aceitar sem protestos ser quem não é. Não lhe pareceu adequado advertir o empregado que o ajudou a escolher uma máquina de café que não era quem era, um vendedor de utensílios de cozinha, que tinha por força de mudar de vida, de emprego, de ambições. Não pode contudo adivinhar todas as vidas reais e possíveis da pessoa que se limitou a responder: vai bem servido com esta marca. Não sabe se tem um filho a crescer, se está apaixonado, se escreve poemas em segredo, se um dia matará alguém. Tem de ser assim, conclui, senão o mundo não funciona. Para podermos continuar temos de nos desconhecer.

Durante dois anos experimentou práticas de relaxamento e meditação. Tentativas para se encontrar a si próprio. Respirar cadenciadamente fechando os olhos muito devagar concentrado num único ponto. Permanecer assim alheado do mundo e depois voltar a abrir os olhos muito devagar. Desistiu quando percebeu que com estas técnicas não se ia certamente encontrar a si próprio, quanto muito um vazio, um nada. E ele não queria ser nada, queria simplesmente ser quem era.

Quando aos dezassete anos se sentira fortemente atraído pela convicção comunista talvez já fosse por isso. A possibilidade de cada um deixar o trabalho que o aliena e o torna outro para si próprio, tal peça numa gigantesca máquina, e tornar-se ele próprio, inteiro, por fim humano. De cada um segundo as suas capacidades, para cada um segundo as suas necessidades, parecia-lhe um objectivo de uma moralidade e verdade inestimáveis. Mas passados meses de ingressar no partido teve de admitir que só tinha mudado de igreja para entrar noutra mais severa. Cheia de rituais, mitos, mártires e santos, e uma disciplina de ferro. E a bela máxima era apenas uma miragem, se não uma total ilusão. A tal diferença: o que se julga dever fazer, e o que, de facto, se tem de fazer até se poder fazer o que se devia fazer e que é constantemente adiado, todo o tempo entretanto ocupado em massacrar quem por força tem culpa desse atraso. O problema dos ideais está precisamente em serem o que são: irreais. Daí o terror e a escravatura necessários a preencher todo o espaço imaginário dos insensatos e incongruentes ideais.

Chegou a viajar até ao norte da Índia para se recolher numa meditação Vipassana. Onze dias e onze noites sem dizer ou ouvir uma palavra. Uma experiência de facto interessante. Sem se falar o espírito fortalece-se: isso é uma experiência comum. Ao falar há sempre uma queda no mundo. Deve ser por isso que os jovens amantes falam o menos possível. Qualquer coisa pode distrair a paixão, afastá-la, e todos os cuidados são poucos. E depois os amantes começam a falar e já não conseguem deixar de falar e o amor dura até já nada terem para dizer um ao outro. A experiência do silêncio ensinou-lhe que a distância entre ele e si próprio não só era maior do que supunha como não existia maneira de a reduzir. Quando regressou decidiu não dizer uma palavra que fosse durante um dia da semana. Escolheu o Sábado. Quando havia alguma coisa a dizer escrevia-a num papelinho: hoje só preciso de dois pacotes de leite, por favor volte segunda porque hoje não posso falar. Continuava a ser um exercício curioso embora não o conduzisse a si próprio. Se chegar ao outro já é um problema, chegar a si nem sequer é um problema, antes uma impossibilidade.

Numa rua de Lisboa o novo rabino parou-o dizendo-lhe: você é o primo do rabino Yassuf, não é? Apareça na sinagoga. Não apareceu na sinagoga mas começou a interessar-se pelo judaísmo. Em particular pelo significado do Shabat, o Sábado. Não se pode andar de carro, carregar no botão que faz subir o elevador, acender um cigarro, carregar no telecomando, cortar uma flor, assinar uma carta. Não serve para descansar, ou para fazer coisas que não se podem fazer noutros dias. O Shabat pretende, cortando todas as relações práticas que temos com as coisas do mundo, elevar-nos à condição de sentir como um milagre o estarmos aqui e poder adorar quem do nada, com simples palavras, tudo criou: a luz, o mar, os peixes, as aves, os humanos. Mas encontrar-se-ia a ele próprio naquele dia maravilhoso? Tinha dúvidas. Só se fosse, pelo menos em parte, igualmente divino e todo o sentido da sua vida fosse reconhecer essa verdade. Mas ele tinha insistentes dúvidas que o levavam a pensar se não seria aquela uma espécie sublime de ilusão: ele e deus juntos num só, que seria a sua perfeita verdade.

Resolveu escrever um diário para aí expor a sua identidade. Antes de se deitar. Cada entrada começava da mesma maneira: acordei, tomei o pequeno-almoço, fui para debaixo do duche. O que de facto qualquer um podia escrever. E se o diário se tornava depois mais pessoal não deixava de ser com uma intermitente surpresa que olhava para a vida da pessoa de quem tratava o diário. O dia era descrito por ele, para ele: aqui já há pelo menos dois. Mais lamentável: não se consegue escrever de uma única maneira, que seria a verdadeira, o que se pretende escrever, muito menos narrar tudo o que aconteceu. Nem assim, a sós, com dois cafés em cima da mesa, no silêncio do anoitecer era só ele que estava ali consigo. Não era preciso escrever sobre outras pessoas. Bastava ser ele. Escrevia: lavei os dentes. Que coisa estranha ter dentes para lavar e, que coisa mais estúpida, não ficarem para sempre lavados. Afinal o que quer que escrevesse podia ter sido escrito por qualquer um. Ele era um qualquer, e sentiu-se estilhaçar em quatro biliões de humanos respirando em simultâneo sobre o mais irremediavelmente solitário dos planetas.

Esteve para casar duas vezes, mas não casou. Provavelmente por causa da tal diferença. O seu pai bem o avisara que ia acabar a falar com as paredes. Já não quer ser quem não é. Já não lhe importa quem é. Nem nota o que lhe falta para se poder encontrar. Ficou cansado de se procurar em tantas pessoas, lugares, ocupações, vícios. Os dias passam depressa, para não falar das noites. Tem um cancro no pâncreas. Tem medo de sofrer. Não tem medo de morrer. Sabe que vai morrer, que é uma certeza. A única que restou. Quando estiver morto não vai continuar sem saber quem é. Face à morte, a impossibilidade de tudo, aí sim, é-se quem se é.

Mais do que amar alguém, ou alguma coisa, o que tinha amado era a distância que os separava, o insuperável abismo. Uma pessoa não morre no fim do caminho, mas subitamente, numa curva.