Paulo M. Morais – Memórias fugazes

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO9

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PAULO M. MORAIS

mEMÓRIAS FUGAZES

  Não vinha a esta terra há pelo menos dez anos. A última vez foi num aniversário do meu pai. Nem sei porque vim nesse ano.

   Deixei de vir a esta terra porque as nossas vidas  descruzaram-se, logo desde que os meus pais se separaram. Eu tinha cinco anos e não guardo recordações
de um único Natal a três. Também não ficarei com recordações a três deste funeral. Nem faço ideia se estarei acompanhado por mais alguém. O meu pai teve muitas mulheres e amantes, mas só teve um filho. O meu pai teve tios, sobrinhos e primos, mas afastou-se deles todos. O meu pai teve muitos amigos, mas era a mim que pedia dinheiro emprestado. Nos últimos anos, quando lhe telefonava por alturas do aniversário dele ou do ano novo, já não era a Manuela que atendia o telefone. Pressupunha que os dois continuassem juntos, mas nunca lho perguntava diretamente. Talvez evitasse descobrir que se tinham separado, receoso de qualquer responsabilidade que caísse sobre mim. Terminava o telefonema dizendo-lhe que desse um beijinho à Manuela.
«Está bem, filho», respondia-me ele.

  «Está bem, filho.» Acho que nunca lhe ouvi um obrigado. Mas, para contar esta história sendo fiel aos factos, preciso de confessar que nunca existiram razões para ele ter de me agradecer. Após o divórcio dos meus pais, quebraram-se as linhas ténues que nos ligavam uns aos outros. Deixámos de ter vida comum e passei a acumular recordações de festas com os meus avós paternos. Por vezes, num ou noutro Natal em casa dos meus avós, o meu pai aparecia como um cometa, a arrastar sacos de prendas. Sentava-se à mesa, enchia o copo de vinho, e passava a noite a contar episódios da vida dele, nos quais aparecia como o herói destemido, o paladino de causas nobres, o símbolo de elevado sentido moral. Pontuava a oratória com risadas cavas, capazes de gerar empatia até no maior dos inimigos. Todos o ouvíamos num misto de reverência, de assombro, talvez de inveja daquele poder encantatório.

  Com o passar dos anos, o modo como eu escutava o meu pai foi-se modificando, tal como mudava a cor do cabelo das mulheres que o acompanhavam às festas de família. Conheci-lhe uma Teresa de cabelo preto, uma Lurdes de cabelo ruivo, uma Ana de cabelo castanho. E a Manuela, claro, loira. Costumava apresentar-mas de supetão, sem preparação prévia. Recordo-me da vez em que, ainda na minha pré-adolescência, ansiei pelos quinze dias que iria passar com ele na sua nova casa, numa vila algarvia junto à costa, embalado pela ideia de repetir uma das poucas recordações de infância que guardava de nós juntos, numas férias de praia, rodeados pelos amigos dele, pela filharada dos amigos dele, e eu muito tímido, como de costume, a observar o poder do meu pai em centrar as atenções, a ver-lhe os braços musculados a empurrarem quilos de areia para formar as barreiras da gigantesca pista para uma corrida de caricas. Nesse verão, quando a camioneta vinda de Lisboa chegou ao terminal daquela terra costeira, vi o meu pai à minha espera, debaixo de uma cobertura oval semelhante a um ovni. Notei que estava acompanhado por uma mulher que eu desconhecia. Desci pesadamente os degraus do autocarro, num misto de raiva e desilusão. Adeus férias só com o meu pai, as férias que finalmente nos tornariam íntimos, companheiros, amigos, as férias que nos fariam esquecer o passado amargurado para podermos construir um futuro sorridente. Talvez por isso não recorde com nitidez o nome, nem a cor do cabelo, da namorada que me apresentou na altura. Era como se estivéssemos na praia, vigiados pelo farol em cima da falésia, prestes a terminar a corrida de caricas. O meu pai vencera,
novamente. Ele, na nossa história, seria sempre o herói. A personagem principal. E as minhas esperanças, tal como as minhas caricas naquele autódromo de areia, despistaram-se. Nenhuma chegou à linha da meta.

  Desde essas férias que perdi as expectativas de que um dia viéssemos a ser um pai e um filho a sério. Cresci num afastamento gradual. Fiz o meu percurso apoiado nos meus avós, sempre atentos e dispostos a suprirem as lacunas e ausências do meu pai. Não lhe pedi conselhos sobre a área de estudos. Não lhe apresentei namoradas. Mas pedi-lhe ajuda para pagar o curso superior e, já adulto, vinguei-me ao não lhe emprestar dinheiro, quando ele mo pediu. Nesse momento de rutura, desisti de nós os dois; raramente nos reencontrámos numa ocasião festiva. E, se agora voltei a apear-me de uma camioneta, no largo dominado pela cobertura oval, é porque me cabe a responsabilidade de empacotar os restos de uma vida.


  O meu pai morreu. Desejaria ele ser enterrado nesta terra algarvia, onde acabou por passar grande parte da sua vida? Ou quereria ser enterrado na terra de nascença, mesmo tendo saído de lá apenas com seis meses de vida? Não faço ideia. Ele mudava de terra consoante mudava de mulher. Não lhe custava instalar-se num novo sítio; fazia amigos com facilidade, arranjava uns biscates, andava nas nuvens com a nova namorada. Depois, cansava-se. E, após cada rutura amorosa, lá vinha estrada abaixo até à sua terra algarvia. É aqui que estão as minhas memórias dele, acumuladas ao longo dos anos em que ainda me senti obrigado a passar parte das férias escolares na sua companhia. Consigo vê-lo a acelerar ao volante do seu Datsun amarelo, com uma bonita mulher ao lado. As janelas estão abertas para deixar entrar o vento refrescante. O cenário é perfeito para as suas conquistas: as falésias com vista para o sol a pôr-se no Atlântico, a brisa romântica da serra vizinha, os areais escaldantes para pousar uma toalha acolhendo dois corpos. Ele também me levava a esses sítios; mas eu sentia-me um pendura, um empecilho, um estorvo, e, numa aceitação do meu papel secundário, encafuava-me, silencioso e envergonhado, no banco traseiro do carro.


  O homem da funerária que me ligou a anunciar o falecimento do meu pai deve ser gente com conhecimentos em repartições de finanças ou notariados. Mostrou-se bem informado, avisando-me de que ele não deixara testamento; de qualquer modo, salientou, também não havia nada passível de ser herdado. Nada de Datsun amarelo. Nada de oficina de automóveis. Nada de contas bancárias com poupanças. Chapa ganha, chapa gasta, como o meu pai costumava dizer. Apenas restava uma casa, arrendada, que alguém precisava de ir esvaziar.

  Tenho a certeza de que o meu pai aproveitou a vida. Eu assisti à imagem de pura felicidade com que ele fechava o portão da oficina mal terminava um arranjo e recebia o pagamento. Com dinheiro no bolso, a boca dele assumia um sorriso contagiante, mantido durante os dois ou três dias em que vivia à grande, rodeado pelos amigos de ocasião e pela mulher do momento. Esse perfil de bonomia, de mãos-largas, de boémio, fazia dele um homem atraente e irresistível. Enquanto sobrava dinheiro, claro. Assim que terminavam as patuscadas de camarões e amêijoas — servidas com papas de xarém, para forrar o estômago aos litros de cerveja gelada —, os amigos afastavam-se, e o meu pai, já de bolsos vazios, arrastava-se novamente até à oficina para trabalhar nos carros à espera de conserto. Mas as mulheres dele, essas tinham mais dificuldade em deixá-lo. Talvez devido à intermitência entre o trabalho e o prazer, à alternância entre as mãos juntas em concha para um mergulho no mar e as mãos sujas de óleo de motor, o meu pai não parecia um mecânico de automóveis. Facilmente o confundiam com um galã do cinema; o bigode farto, bem tratado, nunca mostrou um resquício de fuligem.

  Já não há oficina, nem Datsun amarelo, nem dinheiro para uma travessa de percebes. O funeral do meu pai vai sair do meu bolso. E sou eu quem vai ter de retirar as tralhas dele, para o proprietário poder arrendar a casa por um valor ajustado aos atuais preços de mercado. O funcionário da agência funerária foi muito profissional a tentar acelerar o processo. Não me admirava se ganhasse comissão por fora. Solícito, mesmo sem eu lhe perguntar, deu-me as indicações necessárias para chegar ao número 20 da travessa «com porta e janela para a igreja matriz». Até ensaiou uma piada, referindo a conveniência da localização: a casa ficava apenas a uns passinhos do cemitério. E eu ri-me, não tanto pela piada, mas por ter achado curioso que aquele homem desconhecido se aventurasse no humor negro, numa altura de suposto pesar para o filho enlutado. Saberia ele que não nos dávamos bem? Teria o meu pai assumido perante outros a nossa vida descruzada?

  Cheguei à terra algarvia do meu pai na hora do calor mais intenso. Nas alturas em que fico com a roupa encharcada, lembro-me sempre de uma das máximas dele: «As mulheres que gostam de sexo não se ralam nada com o suor do seu homem. O cheiro a macho até lhes desperta a vontade.» Nunca tive uma namorada assim. A Joana, por exemplo, fazia questão de que eu cheirasse a essências de flores primaveris ou frutos cítricos. Num dia em que me esquecesse de pôr perfume e desodorizante, nem chegava a cumprimentar-me. Entrava em casa, aproximava-se para me beijar e, a uns centímetros de distância (eu já com os lábios estendidos), suspendia o movimento para virar a cara num esgar de nojo.

  — Que horror! Como tu fedes!

  Nessa noite, para abraçá-la na cama, só com duche tomado antes.

  Ao chegar a casa do meu pai, não precisarei de tomar banho. A Joana não veio, mas também não ficou na nossa casa. Tornou-se mais uma mulher que entrou e saiu da minha vida («Vou para casa da minha mãe, tens um mês para tirares as tuas coisas»). Tentei ser diferente do meu pai, mas o resultado é o mesmo. E a injustiça é que eu não sou nada como ele; talvez seja por isso que não seja eu a deixá-las.

  Ao contrário da diversidade do meu pai, só tive namoradas morenas, tal como a rapariga que agora passa por mim. Olho-a fixamente, como se quisesse testar a máxima do meu pai, mas ela ignora as manchas de suor no meu polo creme. Chega até a desviar-se do meu caminho, atravessando para o outro lado da rua. É compreensível. A hora é de fugir à canícula, encontrar frescura dentro de casas arejadas ou debaixo de toldos de esplanadas. Os bancos de um pequeno largo ajardinado propõem um descanso à sombra das árvores, mas eu acelero a marcha. Se a memória não me falha, bastará virar à direita e subir uma ladeira para ir dar com a igreja matriz. Nas traseiras, encontrarei a travessa com a casa número 20, à espera de ser esvaziada.

  O funcionário da funerária sugeriu-me que passasse pela agência mal chegasse. Fiquei com medo de que fosse para me levar a ver o meu pai, com quem protelo sempre o reencontro. Quando vinha de férias, eu era sempre o último passageiro a apear-me da camioneta. Deixava-me ficar quieto no meu assento, a ver toda a gente sair, ciente de que aquilo irritava o meu pai. Fazia-o principalmente por não querer confrontar-me, mais uma vez, com a angustiante inépcia emocional que pautava a nossa relação. Desta vez, não haverá desconforto na troca de beijos, numa intimidade forçada e artificial. E, ainda assim, ao telefone, dei por mim a adiar o momento de reunião, avisando o agente de que preferia ir primeiro até à casa arrendada para poder descansar um pouco da viagem. O homem aprestou-se a deixar a chave na caixa do contador da água, mesmo ao lado da porta de entrada.

  — No contador? Mas não há perigo? — perguntei.

   — Nenhum. Sabe, isto aqui ainda não é como nas grandes cidades... 

— Muito bem.

  — Além disso, não há nada que valha a pena roubar. Veja lá que o seu pai ainda tinha um televisor sem comando à distância...

  O velhinho televisor. Ao passar ao lado da igreja matriz, escuto os sons vindos da fileira de casas à es querda, certamente saídos de aparelhos distantes dos modelos que nos obrigavam a levantar do sofá para ir mudar de canal. Reconheço a casa do Joaquim, companheiro de brincadeira durante parte dos meus verões (será que ele ainda vive aqui? será que ainda poderíamos ser amigos?), e lembro-me de como ficava exasperado por o meu pai não comprar um televisor com comando à distância, igual aos que iam aparecendo pela vizinhança. Mas ele, quando tinha dinheiro no bolso, ou quando arranjava namorada nova, estava mais interessado noutras telenovelas. E se me encontrava enfiado no sofá, a ver uma porcaria qualquer para passar o tempo, aproximava-se para me dar um cachação e dizer-me:

  — És mesmo um molenga! Olha que as coisas boas da vida não passam num ecrã. Passam-se na mesa e na cama!

  Depois, piscava o olho, a tentar amenizar a dureza da palmada e do tom de crítica. Mas, no fundo, eu sabia-me longe de ser um filho de quem aquele pai se podia orgulhar.

  Ao virar da esquina, não preciso de ir à procura dos números em cima das portas. Não me esqueci da fachada da casa, mais pelos tempos da minha juventude do que pelas outras alturas em que cá vim. A pintura descascada do Datsun, estacionado junto ao muro da igreja, contrasta com a parede caiada de branco e a roupa pendurada no estendal da casa da vizinha. Enquanto abro a portinhola do contador e pego na chave, interrogo-me se aquela saia e blusa pretas, típicas de viuvez, estarão relacionadas com a morte do meu pai. Provavelmente não. Dou duas voltas à fechadura da porta de alumínio com vidro fosco e empurro-a. Sinto a frescura do interior. Não há sinais de cheiros de ambientadores ou de perfume de flores; a casa mantém-se impregnada de suor masculino.

  A porta de entrada dá acesso à sala de estar. É uma divisão quadrada que, ao meio, tem uma passagem estreita para a cozinha em forma de T, com pia de mármore, e para a casa de banho minúscula, com sanita, lavatório e polibã. Os cantos da sala estão todos ocupados. Um, com as escadas de acesso ao quarto do primeiro andar. Outro, com uma mesinha redonda de madeira escura e três cadeiras encaixadas debaixo do tampo. Outro, com um móvel retangular, com prateleiras na parte de cima e armarinho por baixo, que serve de suporte ao velho televisor de antena incorporada. No canto restante, está o sofá de dois lugares, protegido por uma coberta com padrões de losangos acastanhados. Pego na ponta franjada da coberta e levanto-a para confirmar se continua a ser o mesmo sofá de napa em que dormia, durante as minhas semanas de férias.

  Aproximo-me do móvel e carrego no botão para ligar o televisor. O ecrã enche-se de uma imagem indistinta a preto e branco. Do altifalante lateral sai um ruído branco de eletricidade estática e tempestade de areia. Percorro os botões numerados dos canais (de 1 a 12), oriento as antenas recetoras, mas não obtenho mais do que rostos e vozes distorcidas. Desligo o velho aparelho e observo as prateleirazinhas. Uma delas tem um pote de cerâmica, uma estatueta africana, um carro de metal. A outra tem os únicos livros que, estou certo, irei encontrar em casa do meu pai. São apenas cinco. Uma pedra polida pela água do mar impede-os de tombarem.

  Pego em A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, de leio a dedicatória na primeira página.

  Pelo teu aniversário. Um abraço do filho.

  A dedicatória não está datada. Aproximo o nariz do papel e não me cheira a óleo de motor, nem a molho de amêijoas à Bulhão Pato. Na prateleira há mais dois livros que eu ofereci ao meu pai: Gente Feliz com Lágrimas, de João de Melo, e o meu romance de estreia. Ambos repetem a mesma dedicatória manuscrita. «Pelo teu aniversário. Um abraço do filho.» Terei vindo a três aniversários do meu pai? Folheio sofregamente o meu romance. Mais uma vez, as páginas estão imaculadas, sem sinal de manuseamento, como se tivessem acabado de sair da máquina impressora. Nenhuma mancha,  nenhuma dobra, nenhum sublinhado. Teria o meu pai tido a perceção de que as duas personagens principais eram baseadas no que eu julgava ser a nossa relação? Ou eu conhecia assim tão mal o meu pai ao ponto de não saber que ele só gostava de ler jornais desportivos?

  O quarto livro, fininho, quase engolido pelos romances mais grossos, parece desdizer-me. A lombada cor-de-laranja, com as palavras inscritas a preto, tem as cores esbatidas. Os cantos da capa estão ratados. As páginas do miolo começaram a amarelecer, mas o mais chocante é descobrir alguns vértices dobrados. O meu pai não leu o romance escrito pelo próprio filho, mas leu Catacumbas da Memória, escrito por um poeta de que nunca ouvi falar. Leu e sublinhou partes de versos, a esferográfica de tinta azul, numa linha trémula:

  Chama-os agora, à beira do leito-sudário,
  eles que te consolem com palavras, sons e imagens
  na descida vertiginosa para a outra margem.
  Eu, bem sabes, amo-te na eternidade
  menos hoje, que te escorraço.

  O verso sublinhado desperta-me para o que tentei iludir de mim próprio. O meu pai, aquele do bigode meio aloirado, do cabelo encaracolado, dos braços maciços, deve ter morrido na solidão. Não houve Manuela ou outra mulher a receber-me à porta. O interior da casa parece um museu; os móveis da sala não foram substituídos, e a sua disposição mantém-se inalterada desde as primeiras férias que aqui passei. Quereria o meu pai, nessa manutenção rígida da forma original, nesse cuidar sacrossanto da primeira ordem, manter o elo comigo, o seu filho, o rapaz que dormia no sofá de napa?

  O último livro da reduzida biblioteca do meu pai é uma coletânea de fotografias antigas. Analiso a imagem do descampado em redor da igreja paroquial da terra onde o meu pai tinha a sua oficina, a qual só abria quando lhe faltava dinheiro. Quem seriam as duas mulheres que figuram no canto inferior esquerdo, uma de saia clara, a outra de saia escura, uma de mãos nas ancas, a outra meio inclinada para o lado direito? Que poderia eu descobrir nas mudanças das paisagens das terras algarvias? Que vida era a deste homem, numa fotografia de início de século, a afastar-se do depósito de água, chapéu de aba larga a proteger-lhe a cabeça do sol, o cajado a pesar-lhe ao ombro? Ou do punhado de gente na rua atolada de carroças, noutro retrato com mais de 100 anos? Que tipo de personagens seria eu capaz de inventar para o grupo de miúdos e graúdos a posar, quase todos de chapéu ou boné na cabeça, junto a um mercado municipal? Como descreveria o efeito nas gentes da neve caída em fevereiro de 1954 ou as aflições pelo largo da feira inundado com a maré cheia?

  Se eu precisar, quem poderá descrever-me as apanhas do limo nas praias? Quem recriará a venda de pescado nos areais? Quem me levará até ao cimo dos faróis ou dos torreões dos castelos para escutar histórias de naufrágios? Quem reproduzirá as anedotas contadas pela fileira de homens sentados em banquinhos à porta das tabernas? Quem cantará as modas entoadas durante
as vindimas? Quem me pode devolver o cheiro e a azáfama da descarga das uvas na adega cooperativa? Quem me conseguirá dizer o nome por que eram chamados os burricos a puxar as carroças com as pipas de vinho ou com as ânforas de água? Quem me relatará as travessias dos vapores, dos barcos, dos galeões? Quem desvelará as injustiças laborais, os amores velados, os acidentes de trabalho nas fábricas de conservas? Quem me ensinará a ordenhar cabras, a descamisar o milho, a lavar roupa num tanque, a varejar as amendoeiras? Quem me irá apresentar a um abegão, a um albardeiro, a um ferrador, a um aguadeiro? Quem me levará às igrejas de portas manuelinas para escutar os murmúrios das viúvas que choraram os seus homens tragados pelo mar?

  Onde estão os guardiões que detêm estas memórias?

  Alinho os cinco livros na prateleira e volto a ampará-los com a pedra polida pelas ondas do mar. Abro o armarinho do móvel. Ao lado de uma garrafa quase vazia de bagaceira vejo um molho de papéis avulsos. Pego na papelada e sento-me no sofá de napa. Contas de água e eletricidade. Formulários de impostos. Faturas de arranjos mecânicos. Tudo desordenado e sem sequência. Pelo meio, a fingir-se perdida, uma única fotografia. Sou eu, com onze anos, nas minhas primeiras férias nesta terra, ao lado do meu pai. Ele a sorrir, com a ponta de uma nota a sair-lhe do bolso da camisa, e eu sisudo. O braço do meu pai está pousado sobre os meus ombros. Ainda sinto aquele braço do passado a pesar-me no presente. Perdi, reneguei, obriguei-me a esquecer todos os bons momentos que tenhamos passado. Agora, esta fotografia de cores esbatidas quer unir-nos à força. Será que não temos memórias partilhadas? Não passei alguns dias colado ao meu pai, na oficina, a ouvir explicações sobre
filtros, discos, pistões? Não andei com o meu pai pelas praias, a sorrir com os comentários que ele fazia sobre as mulheres que encontrávamos? Não estive sentado neste sofá de napa, ao lado dele, a chupar cabeças de camarão, enquanto víamos na televisão os despistes e as ultrapassagens dos fórmula1?

  Não vinha aqui há mais de uma década. E agora, antes de subir ao quarto de cama do primeiro andar, de abrir o guarda-fatos de duas portas com o enorme espelho retangular e tirar dos cabides as roupas do meu pai, de abrir as gavetas da cómoda e despejá-las das cuecas e das peúgas e das camisolas interiores do meu pai, de ver que retratos dispôs ele nas mesinhas de cabeceira (terá mais alguma fotografia minha?), antes de ir até à funerária e pensar se quero ver-lhe novamente a cara, se quero tocar-lhe na mão, se quero fazer-lhe uma festa no rosto (seria a primeira da nossa vida?), antes de decidir se o meu pai será enterrado ou cremado, se haverá missa ou não, se vou ficar calado ou dizer algumas palavras no funeral (mas dizê-las a quem, se devo lá estar sozinho?), antes disso tudo, aquilo de que sinto realmente vontade é de ficar na frescura desta sala, descalçar os sapatos e as meias, tirar as calças, pôr a coberta para o lado, deitar-me de pernas estendidas para sentir o toque da napa na pele das pernas (e assim regressar até aos meus onze anos), e ficar aqui, nesta casa, nesta terra, a visitar estas igrejas, praias, faróis, barcos, falésias, a desatar nós do meu passado, a encontrar histórias das vidas dos outros, antes que tudo se perca na fundura do tempo. Queria ficar aqui, nesta casinha, a escrever livros e a tirar fotografias que um dia, quem sabe, irão parar às mãos da minha filha.

  Há talvez uns dez dias que não falo com ela. Talvez essas fotografias por tirar, esses livros por escrever, pudessem dar à minha filha uma vontade semelhante de se recostar num sofá (que lhe trará recordações de infância) para tentar fazer as pontes que eu e ela fomos incapazes de construir. E se eu ficar aqui, nesta terra, talvez daqui a dez anos ela se venha a apear da camioneta, no terminal que faz lembrar um ovni, para percorrer as ruazinhas até chegar a uma casa com vista para as traseiras da igreja matriz. E aí chegada, talvez ela encontre roupa pendurada no estendal do número 20. E aí chegada, em vez de retirar uma chave do contador, em vez de ter de ir cumprir um protocolo a uma agência funerária, talvez lhe baste bater à porta e dizer

  — Pai, sou eu.

  para poder ouvir uma voz vinda do interior, a responder-lhe com uma sonoridade de televisor velhinho.

  — Olá, filha. Obrigado por teres vindo.