MIGUEL FILIPE MOCHILA
vILLA DE VALLECAS
Setembro - Novembro de 2017
1.
Vista no mapa, Vallecas é uma longa espinha bruta cravada na garganta da capital. Os vallekanos usam kapa também para escreverem a palavra república. Na Repúblika de Vallekas é-se do Rayo Vallecano, sanguineamente, e há oblíquas linhas rubras que cruzam rostos suspensos num mesmo grito, sobre a cancha recentemente despromovida à segunda divisão nacional. A cada quinze dias, as bancadas estão lotadas. Odeia-se o Real Madrid como se odeia a monarquia machacada por sobre os alicerces do franquismo. Os putos que se passeiam pelos cremes passeios da Villa, ostentando o roxo imperial, são tolerados mas vigiados, como uma espécie de ténia bolçante nos intestinos da resistência que ainda não engordou muito. A linha azul — azul — do metro, que conduz ao coração do capital (Atocha, Sol, Gran Vía), é sofrida como uma espécie de condição. Os vallecanos falam dessa condição no sentido de doença
2.
Em Villa de Vallecas há uma cegonha para cada antena, como se tivessem tirado ticket. À primeira penumbra da noite, vejo-as chegar. Vou à varanda, fumo um cigarro ilegalmente, e saúdo-as. Há uma em particular, espigada e altiva, que reina sobre o Paseo Federico García Lorca, mesmo ao rés de mim. Nunca lhe vi os olhos, mas é tão vertical que parece uma prolongação do metal da antena, um tanto volátil, à mercê de ser torcida pelo vento. À noite, assomo para ver se ainda lá está e sinto-me grato por ser este um bairro de prédios baixos, e poder vê-la reinando sobre o Paseo, tão perto e tão ao alto a um tempo, como se reinasse sobre o mundo.
3.
Aos domingos à tarde, o senhor Manuel senta-se neste banco do Retiro e desdobra uma toada espreguiçada com a sua gaita sanobresa. Quando lhe oiço, um tanto perplexo, o Santa Bárbara, la Bendita, o hino dos mineiros, revolucionário e revolucionado ao ofegar do seu fole, lembro-me desse silêncio barrento, da espessura tijolosa do grande armazém esventrado da Mina do Lousal, dessa peçonha aguada dos poços abandonados tomados pelo lodo, do
relógio parado, que ainda lá está, nesse minuto em que o último homem ascendeu dos intestinos da terra, fuliginoso, derrotado, para o deserto de uma aldeia celebrada hoje por mortos, cardos e urtigas. Quando lhe falei do Alentejo, e desse cante mais triste dos cantes da terra, que tanto trauteei em família, o senhor Manuel falou-me dos gaiteiros de Bragança, da impecável melodia da Grândola de los claveles. Também me perguntou pelo coração desse chaval, e queria dizer o Salvador, e das minas de carvão ora ocas nas verdosas serras das Astúrias. O senhor Manuel perguntou-me se eu conhecia as Astúrias, e eu, que nunca estive nas Astúrias, disse-lhe que sim, que conhecia. E tu sabes que eu não lhe menti.
4.
Às vezes também é domingo à tarde. Penso nas pessoas. Agora sei um pouco melhor a que se referia o Ruy Belo, no seu apaziguado exílio mesetano. Em dias assim solares, soldados com a sonolência da ressaca, penso e penso em ti. Às vezes, Madrid e Lisboa são mesmo, das cidades do mundo, as mais distantes.
5.
Em Villa de Vallecas fala-se espanhol com tonada, português com sotaque, romeno castelhanizado, árabe variopinto, crioulos africanos diversos, há muito sangue criollo também. Os velhos andam todos grafitados de tatuagens e os empregados e as empregadas das repartições saem de juerga aos finais da tarde com os cabelos lacados e jerseys dos Ramones. Nos cafés e nos bares, as tapas são obscenamente andaluzas, quero dizer, grandes, gratuitas. Comove-me um pouco que os cães da vizinhança pareçam atravessar a Calle de Congosto sempre pelo mesmo lado.
6.
Madrid é uma cidade que sonha com o campo. Percebo-o quando me ponho a dar braçadas nesta espécie de esplanada contínua entre Huertas, Lavapiés e Sol. No seu artifício imperial, Madrid sonha com o campo abafado pela sede palaciana e há uma horda de desertores que desesperam pelo fim-de-semana. Quanto a mim, falta-me o mar entre outras coisas, e tu sabes quais, sobram-me as pessoas que são zombies tão obscenamente renovados em sucessiva digestão, persistentemente revezando-se entre comensais esfalfados e cerveja chocha. Dentro da Biblioteca Nacional, pasta um punhado de sobreviventes ímpios. Não sei se são o melhor ou o pior da espécie, mas são definitivamente alguma coisa. O controlo de segurança é obsessivo, desdobra-se em comportas que insistem em pôr trancas que impeçam a epidemia de alastrar para os fundos dos arquivos. Quando aterramos enfim no catre, já tudo o que era novo se tornou obsoleto, o que convém bastante a quantos tomam demasiado em sério as ideias tidas ainda com cara de ronha. Lá fora, a cidade floresce numa língua estranha, indiferente a esta fortaleza snob onde os escritores arfam nos retratos. São como num canil longínquo uma matilha de cães que ameaça converter-se em alcateia à míngua da mão que os doma. Resta-me desculpar-me por os não poder levar todos para casa. Se opto pelos mortos, é só porque fazem menos ruído. Não quero que o proverbial bulício da capital perturbe o seu sono tão impunemente vigiado.
7.
Em Madrid acordo com as cegonhas. Tenho o cabelo tão grande que temo confundi-lo com o teu cabelo e engasgar-me com ele num sono demasiado abstruso. Mas a dormência também se aquieta quando me afundo nos túneis. Repara: a carruagem em que desço à cidade bem poderia ser o primeiro turno de uma viagem que me levasse aí. E então percorro apeadeiros com os meus próprios enigmas, intransigentes, intransmissíveis, intransitáveis: Miguel Hernández, Buenos Aires, Quevedo, Rubén Darío. E não falo de livros mas dos navegáveis corredores dos espelhos foscos que outra vez vêm respirar à tona. Semi-luz poeirenta da universidade, essa larga noite de sete dias insones na alucinação portenha, esse pó apaixonado nas catacumbas da Casa Cordovil, aulas de literatura espanhola, uma antologia de pássaros nas trincheiras da minha secretária. E um voo de repente sobre a ferrugem dos cacilheiros — na memória — faz os teus olhos aguados de nadar até me encontrar neles, sem a miséria dos grandes tomos a puxar-me para o fundo, antes levitante, a pulso, repara. Este bem poderia ser o primeiro turno de uma viagem que me levasse a ti.