Miguel Filipe Mochila – A separação

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO7

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MIGUEL FILIPE MOCHILA

A SEPARAÇÃO

Il ya en moi quelque chose d’affreux qui monte et
qui ne vient pas de moi, mais des ténèbres que j’ai
en moi, là où l’âme de l’homme ne sait pas où le Je
commence et où il finit.
Antonin Artaud

                  Tomara que a Tamara viesse, varada veria ao longe mãos,
                  as minhas,
                  betumadas de poeira branca, salpicadas de suor e de cimento, trabalhando a matéria da casa, alijando as fôrmas, baralhando serrilhas e martelos, besuntando betão e madeira cos acrílicos frígidos dos trezentos, e vindo desenxabida haveria a Tamara de desolhar trôpega e triste com o seu ar de ronha, afectando desprezo, simulando não crer que eu me atrevera, mas aninhando-se já nela então o afogo contorcido, um pozinho de consternação, polvilhando-lhe os dias futuros espezinhados pela dúvida, e se ela perguntasse:
                  João?
                  eu engoliria o riso, e pensaria:
                  e não é que eu vim mesmo, Tamara?, não é que eu disse que haveria de erguer uma casa qual palácio de cristal só pra abafar a tua crista que desejaria vassourando baixa os caudais do chão, trincando bichos, sendo a ramela enfezada do olho do cão, e não é que eu vim?,
                  e então eu veria a tua nuca enlameada do cocuruto às pontas do cabelo lascadas plo sol, do tanto tempo engalanado no olho da rua, eu veria a tua nuca rebaixada na humilhação, sopesando um pensamento triste, e eu teria ainda o riso miudinho escoltando a minha glória, por isso tu anda, Tamara, vem ver o meu dedilhado mansinho já no acabamento da mansão só minha, tu atarantada e tanto que a trela do cão esmaiada nas tuas mãos remoídas plo desconsolo, e ele ofegando ao rés de ti com o seu orelhudo modo de afagar-me, com o seu olhinho sério comovido, querendo vir já focinhar na casota de lata que levantei pra ele na soleira da casa nova, e tu repreendendo-o súbita, pensando
                  não
                  repreendendo-o embargada:
                  quieto, Caju,
                  de modo que desta vez é a sério, Tamara, eu retorcendo na euforia do corte das vigas a minha vida em titubeante equilíbrio, não é que eu disse que ia e fui mesmo, Tamara, alinhavar arestas e rodapés culminando a minha sede de haver um longe de ti onde fazer a cama, instalar a minha tralha, deixar o cotão paciente acotovelado no recanto até se entrincheirar em cada bocejo do meu corpo, da barriga à garganta, do umbigo à fronte, eu haveria Tamara de rir se viesses agora, no teu modo emproado e vadio, debicando com o teu passo-holofote a calçada deserta, com o teu tupperware ajoujado no bafo viscoso a lavanda do sovaco, com o cão de rojo balofo da vida contigo, cuidando ser observada plo mundo ao ralenti como uma star de cinema, bordando de comoção requentada uma banda sonora parola, como que ensaiando pose prá câmara, mas no fundo sozinha, Tamara, no fundo sozinha,
                  mas é que, João, eu tenho o mundo todinho a estrear
                  a tua sanha sem o mundo todo assoberbado a olhar pra ti, eis a tua sina, sem o mundo a babar a tua juba impecavelmente postiça, borbulhando ao rés da caliça das paredes ratadas da rua de baixo, tu só saindo de casa, sem cão nem nada, sozinha-inha,
                  mas é que João
                  trazendo o teu decote fundeado pelo imenso estertor do suor, e talvez até quem sabe um tipo mesquinho baixando o olho pra não topar o teu balanço de parideira atascada ao pico do sol, o teu menear deslavado, o teu batom espampanante de rubor e caruma, ai se o mundo soubesse que a tua boca é um ralo onde a maior porcaria se acumula, que usa catarro com frequência, que diz muita merda também e depois se acha donzela escalavrando no mato, pra deixar perfume de ranço à passagem dos pés picotando a terra batida, pensando que fizeras de mal pra merecer isto,
                  mas é que
                  mas eia por onde começar, Tamara?, por onde começar contando da tua lepra diária carcomendo os meus dias, do teu olhar oblíquo desprezando os meus gestos um a um até serem só caretas de gestos pedinchando caução, por onde começar sem embasbacar logo no tropel de andrajosos à espera do teu baixar a guarda que sempre vinha,
                  não consigo eu não consigo evitar
                  tarados trepando a tua vulva até ao paraíso que congeminavas com coisas acontecendo lá ao alto da cerração, por sobre o montado, com nuvenzinhas de idílio e talco abespinhado de palacetes benzidos esvaziadas logo logo ao alfinete da sensaboria do sexo, que trazias contrafeito com o bando de catraios à bordoada em ti quando fervias de tédio, dizendo
                  ai, ui
                  que tinhas de ser de outro modo, que não fora isso o prometido, a praga do sexo somente não, algum carinho também pra apimentar noites cochiladas em conchinha, e tu já nessa altura embaçada de mel,
                  um tediozinho sussurrado aqui
                  vendo-os persignando-se em amorosos trabalhos toda borrada lá vinhas tu,
                  olha, João,
                  de novo acorrendo esfalfada à minha beira, pedindo, beicinho transido, que trocasse a fechadura da casa cujas chaves ofertaras numa noite treslouca a um deles,
                  é que eu às vezes, João,
                  que cortasse os fios do telefone roufenho já de ofensas no bocal imundo dos perdigotos atiçados plo rancor deles, mendigando que fizéssemos uma ilha na casa só prós dois,
                  João-ão
                  a contrapelo do mundo fétido de injuriosas cobiças, que esquecêssemos os teus amantes emborcados nas trincheiras do quintal, contigo dobando monos escabrosos de retê-los em nenhures, pedindo-me de novo que desse corda ao teu coração, dizendo jurando que a gente havia de arranjar maneira,
                  a gente é a gente, João,
                  que o amor também é isto, este apeadeiro genital, que logo logo te fulminaria de novo o raio ardente da
tusa por mim, que até já sentias a primeira pontada de calor no baixo ventre,
                  põe a mão a ver se sentes,
                  só de estares fazendo muita força com a mente, Tamara, de me quereres daqui além ao pé da lua, que plas minhas contas é na esquina da clínica veterinária ao fim da rua, e eu logo zonzo de pena dizendo
                  pois sim, vem logo, Tamara,
                  aninhar-te ao rés de mim com o teu bafo azedo de brandy e tabaco mascado, com a tua transpiração de outros, com os teus cabelos lentos desprendendo ainda os gritos lascivos dos garotos teus ex-servidores nas arte&manhas da cama, e eu de novo subjugado à tua determinação cadela, embocando o ar, subtraindo-me o oxigénio, deixando-me à nora demandando ternura no teu olhar calado,
                  oi?
                  e tu tosquiando um pouco mais a minha atenção com o teu zelo tímido, esse teu irritante sorriso perfeitinho até me teres rendido de volta ao aconchego mole da casa, mas hoje não, Tamara,
                  desta vez não,
                  só queria que me visses erguendo pedra a pedra uma casa só minha pra nunca mais te ver amochada a mexericar nas minhas coisas, metendo o bedelho, com as tuas brasas cínicas do tabaco no lençol, manhãzinha ainda, desasando tudo,
                  torrada manteiga mel parmesão
                  o teu leite pastoso na bancada ao primeiro arremedo de manhã, o mentol chocho da pasta dentífrica em lascas ressecas na pia do lavatório, as tuas olheiras medonhamente arrotando a melodia esmaecida de outra manhã,
                  tô tão cansada, João,
                  prostrando mais um dia igual a tanto dia, escalavrando o nosso amor num rascunho repetitivo, mas é preciso agora esquecer tudo isso, Tamara, ah se tu me visses erguendo o palácio barato e pontual com casota pró cão, ficarias um tanto estremunhada de raiva eu sei, batida de alto a baixo por uma comichão perdigueira, já nem sequer perguntando:
                  João?
                  a fitar-me depressa fanhosa de pranto sem entender sequer, e eu com os meus dedos túmidos traulitando a cervical da casa só pra embirrar, a mirar-te de entreolho, fazendo um afago no alicerce central até a casa se contorcer toda estremecida num cochicho arrepiado, a casa rindo baixinho, insinuando-se libidinosa só pra mim, e eu a começar então a gostar dela, Tamara, a pensar pra mim:
                  eis a minha casa que é minha
                  e a começar a amá-la, a querer fazer ronha nela, a curtir o cimento fresco as abóbadas mudas à brava, as cócegas que eu farei nos seus tampos frescos, e lá fora tu com a tua histeria baça, com o teu modo espantalho de fitar
                  oi?
                  o borboto indignado da tua saliva cuspida contra o oco do janelão, dentro eu coçando as virilhas deliciosamente, colhendo do ar o vapor bruto da tua raiva salivada para o interior da sala nova, que é minha, Tamara, grato pelo frescor imprevisto contra o furor do sol, e estaria tão na minha que se tu quisesses, Tamara, se tu quisesses eu dir-te-ia até quem sabe
                  vem
                  e pensaria:
                  tomara que a Tamara viesse à tardinha toda anestesiada assanhada de mim, e quisesse roer os meus cabelos flácidos, franzir uma harpa buliçosa com o meu fecho das calças, e tiritasse na fivela do cinto um gemido langoroso do metal puído contra a minha ganga, e depois eu haveria de descer à mão cheia uma aranha de dedos que se arrastasse na tua nuca, e se abrisse depressa qual pensamento consumado, e no teu couro cabeludo desovasse um trilho de calafrios que te descesse o dorso até ao sexo, e tu te arrepiasses toda da testa ao cóccix, a espinha debruada num esgar sedento,
                  faz isso, João,
                  e fosses um, dois, três segundos novamente a minha casa, e eu fizesse a cama em ti e ficasse a ornar no lusco-fusco o teu hálito vencido, a conduzir os meus dedos pela tua pele sumida, e se tu não estorvasses muito, se não me trouxesses aborrecido em demasia, se tu quisesses eu rediria talvez até quem sabe
                  vem
                  e tu hesitarias um pouco, tossicando no medo, e dirias
                  está bem,
                  e então subiríamos juntos ao polibã do quarto de cima, Tamara, e a água corrente trautearia o seu bolçar quente até o vapor se grudar nos vidros feito sanguessuga, e eu tombaria o teu corpo por sobre a água a escaldar, devagarinho pra não sujar os mosaicos do chão novo de água com flor de sabão, e veria entre o vapor as borbulhinhas açucaradas da tua barriga arrepiada coloridas de ardor, rosa vermelho fogo, a tua pele tinindo como panela pressionada plos cem mil graus de desejo que eu me inventaria só pra ti, Tamarazinha, fazendo a pele das tuas bochechas requentes até estalarem fervidas numa crosta nova da água carnuda do chuveiro, contigo debatendo-te numa temerosíssima ternura por mim, e a tua boca lavada até ao estômago por esse caldo límpido até gritares
                  meu Deus,
                  até eu dizendo
                  sim,
                  e tendo-te então já vencida posto ao alto em meu lugar, olhando-te lá do alto, criatura vermelhíssima até mais não, e podendo dizer-te enfim
                  bem-vinda à minha casa, Tamara,
                  contigo desmaiada nos meus braços marejados de espuma fofa de sabão, pétrea estarrecida no lençol borbulhoso da água, podendo dizer-te
                  bem-vinda, Tamara,
                  à minha casa que é minha, e por isso adieu, songamonga linda, por isso bye, c’est fini, adeus.