Mário de Carvalho – Aflecha de chumbo

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO1

MÁRIO DE CARVALHO

A FLECHA DE CHUMBO

(Lisboa, 1944), escritor e advogado. A sua obra centra-se sobretudo no âmbito narrativo: desde 1981, data em que aparecem os Contos da Sétima Esfera, seu trabalho de estreia, tem publicado romances, como Um Deus Passeando na Brisa da Tarde (1994, Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores, entre outras distinções; tradução espanhola de 1998) ou Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina (2003, Prémio Pen Clube, Prémio ITF/DST). Também deu à estampa com regularidade volumes de contos (Quatrocentos Mil Sestércios, 1991).

Dizem que o rosado filho de Vénus e de pai incerto, que borboleteia com graça entre humanos e deuses, e, sendo embora pequeno, tanto fere a uns como a outros, tem eternamente na aljava duas setas, uma de ouro, para o amor, outra de chumbo, para o desprezo. Se eu fora o inventor da fábula, municiava-o ainda com uma ponta romba de latão, para as descompassadas paixões.

O Cupido é poupado nos tiros, desfere uma das setas, guarda a outra para depois. Passo sobre as situações fáceis e banais da flecha de ouro a preceder a de chumbo. A floresta do encanto, os abismos do desencanto… É o que há de mais visto.

Mais interessante é quando o miúdo começa pela seta de chumbo: o rapaz encontra a rapariga, à maneira de Hollywood, encadeiam-se os quiproquós, o casal abomina-se, e tudo corre mal, até certo dia. A seta de ouro vem rematar as tensões, os desencontros, os malentendidos, as desconversas e segue-se o desenlace, que é o triunfal matrimónio. Já uma nova seta de chumbo se apresta, mas isso fica para depois.

A situação anómala, que mais confunde os indefesos humanos, é quando dá ao infante para expedir duas setas, a de chumbo, e a de ouro em simultâneo. Aí, os sentimentos enrodilham-se muito confusos e tumultuosos.

Estas doutas considerações, não fui eu quem as produziu. Foi um amigo meu, distinto advogado, quando estava num restaurante a jantar com um grupo admirador do vinho da casa. Vinha ao caso o cirurgião Noel. Deixavam que ele contasse a história do cirurgião? Nem todos queriam, mas fez-se o silêncio à custa da imposição dos mais sóbrios sobre os mais alevantados.

O cirurgião Noel era transmontano e no princípio dos anos oitenta havia feito sucessivas comissões de serviço em Moçambique. Por generosidade, desejo de aventura, ou maus passadios em Portugal, resolvera mudar de ares e de continente. Num sórdido hospital de campanha foi encontrar Aurélia, uma enfermeira moçambicana, robusta e branca, de atraente feição, a dar-lhe para a ironia no trejeito. O cirurgião abandonara mulher e filhos em Vila Real, onde isso já ia? Agora surgia-lhe aquela mulher, muito ribalda, que saía com homens, negros e brancos, no fim das noites exaustas de enfermaria, mas a nenhum tratava mais delicadamente e docemente que a ele, cirurgião, que ficava para ali, sozinho, no hospital de campanha, atrás de um rede de mosquiteiro, a ouvir os gemidos dos doentes e as risadas riscadas das hienas, no mato longe. Alta noite, ela voltava, num jipe qualquer, ruidoso. O cirurgião via através do pano de tenda, a silhueta difusa que, à luz amarelada do petróleo se despia, provocadora, rés ao pano que a separava do compartimento em que ele se esforçava por dormir um sonho transpirado com rugidos abafados.

Acabaram por casar, claro, depois de ambos se terem divorciado dos atinentes cônjuges, através de processos burocráticos e transatlânticos cujos incidentes constituíram parte essencial na conversação do seu namoro e que o meu amigo advogado, menos generoso que eu, fez questão de não poupar a ninguém. Até à véspera de casamento, Aurélia manteve aquelas saídas nocturnas, sem descurar nunca os serviços e os horários. Noel tinha uma amante local, doce e compreensiva, mas nunca se distraía das escapadas e dos regressos de Aurélia. E Aurélia ia dizendo que, enquanto não viessem os papéis, era aproveitar a vida.

Noel, com lancinante melodramatismo, suplicou-lhe que renunciasse a majores, médicos, enfermeiros e demais avulsos todas as noites. Ele, por seu lado, comprometia-se a pôr com dono a beldade da senzala. Era, na verdade, uma proposta leonina a favor de Noel, dado o desequilíbrio de qualidades e quantidades. E teve a resposta merecida, nem por isso menos odiada: “Combinado! Eu, cá por mim, abstenho-me, mas se quiseres manter a tua mulherzinha, faz favor”. Cumpriram, mas estiveram de relações cortadas até à boda, que foi muito festiva, com batuque.

A noite de núpcias terminou cedo, com a grande bofetada que Noel deu em Aurélia. Ela fizera um comentário qualquer, desproporcionado. Ou ele ouvira mal. Aurélia desapareceu do cubículo. Noel perseguiu-a por todas as enfermarias, correu, correu, saiu porta fora. Que é dela, que é dela? Uma sentinela indicou-lhe um jipe. O jipe acendeu os faróis, veio em acelerado, de suspensão desaustinada, deslizou na lama perto de Noel e quase o atropelou. Noel atirou-se para o lado, julgou ouvir uma risada de Aurélia e o jipe perdeu-se na savana. Quando Aurélia regressou, já o sol abrasava. Noel esperava-a com um chicote de nervo de boi. Aurélia apontou-lhe uma parbellum aos olhos. Lá se vestiram e foram trabalhar. Mas a noite que se seguiu foi fogosa e terna, até ambos começarem numa tremenda gritaria que fez abrir todas as luzes, com sobrecarga do gerador.

Em Lisboa, anos depois, o meu amigo advogado que estava a contar esta história, passava o charuto pela chama duma vela, à mesa dum restaurante caro e fazia uma pausa de saboreio. Estaríamos em tertúlia, se os tópicos fossem mais elevados. No caso, estávamos apenas em grupo.

Prosseguiu o meu amigo, retorcendo o havano sibarita, com a vinda do casal para Lisboa, onde se instalaram para os lados de Benfica, em casa duma velha tia dele, que vivia com uma sopeira que, à falta de melhor, também era dama de companhia. Ambos tinham colocação no Hospital de S. José. A tia do cirurgião que era uma pessoa sensata e arguta, cria não se enganar quando se regozijava com a união perfeita do sobrinho com Aurélia. A idade dava-lhe para as conclusões fáceis.

Aurélia não disse logo, mas detestou a tia, que lhe pareceu pesporrente, odiou a criada que achou atiradiça de olhos e sabe-se-lá se de mãos, detestou o marido por lhe querer impor aquele ambiente. Na primeira noite, altas horas, ocorreu apenas uma discussão rosnada que apenas causou desconforto num remoque-moque, por debaixo de frinchas de portas. Mas a guerreia prosseguiu de cada vez que se cruzavam nos corredores do Hospital. E, numa dessas madrugadas,estalou na casa de Benfica uma zaragata tão grande que partiu a bandeira de vidro duma porta e obrigou à intervenção apaziguadora de bombeiros e polícia. A tia, vingadora, bradou, tremendo: “rua desta casa!”

Para a rua foram e não pararam de discutir, daí em diante. A altercação que já vinha de trás prosseguia, num contínuo de agressões verbais de permeio com fulgorosos e tensos momentos de paixão, que mais serviam para reacender a sempiterna querela.

Elipsemos para seis meses depois, num apartamento em Telheiras, mobilado de ocasião. Não é uma casa como as outras, não há visitas, não há crianças, nem animais, nem recantos prazenteiros, nem telefone fixo. Há, sim, recados magnéticos no frigorífico, como “Não faça ruído quando voltar” e inscrições no chão, a tinta branca: “Favor não passar desta linha”. Dois territórios. São quatro da tarde. Noel está no quarto de Aurélia, com um berbequim, pafernália míuda e um livro de instruções ao lado, muito aplicado a instalar pequenas câmaras de vídeo nos recônditos. Não repara que Aurélia o observa, com um monitor na mão. Só se apercebe quando o monitor se despenha e derrama asperamente as entranhas metálicas pela sala fora. Fitam-se, lacrimejam, caem nos braços uns do outro. Nessa noite, dançarão nas Docas e Aurélia, iluminada por focos de luz verde lembrará uma ondina, coleante e sedutora. Todos em volta param e se recolhem. Aurélia sozinha na pista. Noel afasta-se. Cessa a música, a gerência oferece espumante a Aurélia. Noel aproxima a cara e toca com os lábios a taça: “Sua bêbeda!” –rosna.

Daí a uns tempos deu-se a audiência do divórcio litigioso. Houve testemunhas a mentir, amantes a assistir, tipos que se diziam “detectives particulares”, agressões nos corredores. Cada simples acto que tivessem de praticar obrigava a uma luta venenosa até à última colher, tratando-se de partilha, até à última vírgula, tratando-se de documento. E espiavam-se, dificultavam, mandavam por mensageiros sinistros recados. Nenhum deles queria sair da casa que já era um amontoado de barricadas e caminhos de ronda, com gente que lá ia dormir para proteger Aurélia ou Noel, para servir de testemunha, ou, pura e simplesmente, para gemer de amor e fazer pirraça. E onde quer que um estivesse estava o outro, a mostrar-se, a espreitar, a interferir, a tomar notas, fosse em casa, no emprego, no café da esquina ou no fim do mundo. Em boa verdade, não conseguiam viver um sem o outro.

O incêndio na casa foi uma questão de quatro bicos de gás abertos e um fósforo. Quem? Sabe-se lá! Talvez um tenha contribuído com o gás e o outro com o fósforo. O certo é que os cadáveres carbonizados foram encontrados tão chegados um ao outro, tão confundidos, que nem sempre foi fácil aos peritos distinguir a quem pertencia qual despojo.

“—Faz lembrar a bailarina e o soldado de chumbo, do Andersen”, comentei eu.
“—Não faz nada!” O meu amigo advogado alteou as sobrancelhas. Ali quem fazia observações literárias era ele. E foi ainda de viso carregado que acrescentou: O Stendhal, a cristalização, lembram-se? Tudo concorre e se multiplica para recobrir um sentimento. Neste caso, um amoródio extremado.

A tertúlia ficou pensativa. Alguém disse: “Bom, são horas…”