Manuel Da Silva Ramos – Jam session na linha da Beira Baixa

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO3

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MANUEL DA SILVA RAMOS

COVILHA, 1947


JAM SESSION NA LINHA DA BEIRA BAIXA


Era de manhãzinha cedo que Dinitério Vidal gostava de viajar para a sua terra natal. Era aí professor de música numa das numerosas escolas da cidade onde se aprendia Mozart e Mauricio Kagel. Era pois pela manhã que a viagem para a Covilhã lhe parecia ser de um beleza surpreendente tanto pela convivência tranquilizante do Tejo que lhe fazia companhia durante mais de dois terços do trajecto como pela luz calma e imatura do dia que conferia às coisas um ar lavado de fresco. Mas havia uma terceira razão. Dinitério Vidal era um homem de uma sensibilidade rara e como todos os artistas fazia da memória um instrumento sempre afinado, pronto para todas as partituras. Fora assim que vivera uma aventura extraordinária na data precisa do seu aniversário e para ser fiel a esse episódio que lhe tinha acontecido, viajava agora sempre de manhã, no intercidades que partia de Lisboa-Santa Apolónia às 8h e 16, parava na estação de Lisboa-Oriente às 8h e 24 e chegava às 11h e 56 à sua querida cidade altaneira.

***

      Entrara pois com quarenta anos nessa carruagem dois e vira que só lá estava uma pessoa. De costas parecia uma mulher. Sentou-se a uma mesinha na parte traseira da carruagem e começou a retirar o instrumento do seu estojo. Era um fagote novinho em folha. Levou-o à boca e dele saíram os primeiros acordes que se elevaram alvorada de pássaros jovens. Nesse preciso instante, o comboio passou por cima do rio Trancão e o Tejo, o gigantesco Tejo, veio ao seu encontro.
      Durante dez minutos tocou como se a sua alma gémea fosse aparecer ou das profundezas da verde natureza ou de dentro do crédulo estuário. Até Vila Franca de Xira, viu o Tejo ao seu lado, irmão benigno que o compreendia.
      Mudou para um blues dos anos vinte (Paul Whiteman ou Bix Beiderbeke?) e só antes de Santarém lhe voltou a aparecer a massa líquida. A ponte metálica, com pilares de granito e aros metálicos por baixo do tabuleiro, dava ao rio um ar de velho snob – que só queria fazer tudo à sua vontade e não ligava importância a ninguém. As velhas marcas de água patentes no granito demonstravam isso.
      De Santarém a Constância, Dinitério executou um ad lib, improvisou, e quando lhe apareceu a junção dos rios Zêzere e Tejo, pôs-se de pé para ver melhor a areia finíssima e também para apreciar a belíssima ponte onde passavam também carros. O rio trocou de margem e passou-se da direita para a esquerda. E até Abrantes, o rio serpenteou pela cabeça de Dinitério (que era um emaranhado de caracóis grisalhos) e de repente apareceu-lhe o rio tão largo por baixo dos pés que ele pensou que era mesmo o mar.
      Foi aqui que Dinitério (que se julgava só) começou a ouvir um canto de sereia, uma voz serena que o encantou. Via o rio-mar por baixo do corredor metálico por onde o comboio avançava e a voz que crescia imperturbavelmente:

Ao descer a montanha, o sombrio e taciturno viajante entra numa região onde tudo lhe parece hostil...

      Reconheceu “O Viajante” do Schubert, um lied que ele muitas vezes ouvira na Alemanha durante os seus estudos em Mannheim. Levantou-se e à medida que avançava no corredor a sua curiosidade ia aumentando. Quando chegou à altura da desconhecida, esta olhou-o fixamente. Era de uma beleza surpreendente: olhos pretos profundíssimos, cabelos compridos da mesma cor e uma cara branca como a cal. Mas havia qualquer coisa nela que o intrigava. Não lhe via as pernas. Foi matutando nisso que abriu a porta das retretes e urinou com toda a força.
      Quando regressou a sua estupefacção interior foi grande. Ela estava em cima da mesinha. Tinha uma blusa preta desapertada por onde se lhe viam dois seios magníficos a balouçar mas as pernas terminavam logo a meio da coxa da perna, não existiam para além do short preto que ela vestia. Ela estava aberta e desejava que o professor a penetrasse. Mesmo deitada, continuava a cantar enquanto o rio parecia mais sociável, não muito longe de casas e olivais:
      Ao descer a montanha, o sombrio e taciturno viajante

      Ele parou diante dela, olhou-a demoradamente e disse com ternura:
      Quer mesmo?
      Quero, disse ela, quero muito, muito.
      O professor não se fez rogado. Tirou das calças o seu pequeno mas grosso sexo e enfiou-lho até ao fundo. Foi um orgasmo duplo, quase mortal. Ela agarrandose à cabeça dele, soerguida, ofegante. Ele debruçado no abismo...
      Desligou-se... Tinha que meter a cabeça debaixo de água... Súbita enxaqueca... Quando voltou, ela dormia. Distante, respeitável...
      Regressou ao seu lugar e ao seu fagote...
      O rio era agora estreito e mais fundo como a vagina da desconhecida. A poluição branca do rio parecia vinda da sua vulva. O rio agora era negro, terrível e quando apareceram as paredes protectoras de betão da barragem do Fratel o professor fechou os olhos...
      Era sempre assim. Não gostava de protecções. De aproveitamentos. De estancamento de ideias. Tudo devia fluir. Portugal era ao contrário. Tudo parava a meio da construção, do acto, da vivência, até as vinganças eram incompletas, portanto a morte existia já em metade na própria vida... Viu ao longe no cume de uma encosta um restaurante panorâmico inacabado... Riu...
      Levou o fagote outra vez à boca e saiu-lhe o Kind of Blue do Miles. O rio veio novamente ao seu encontro. Aproximava-se da janela para o saudar, como um cão abandonado que gosta de encontrar o dono. Era convivial e a sua profundidade muito amigável. O rio, na sua louca convivialidade, entrava para dentro dele, fazia- o seu herdeiro universal... Assim foi até às Portas de Ródão...
      De repente, abriu os olhos todos porque tudo o deslumbrava até à ternura universal... Na margem direita eram agora eucaliptais novos formados depois de um grande incêndio que passara de margem para margem. Na esquerda, dispersos olivais, pequenos salgueiros, pedras... E por fim veio a ele a abertura, a fenda, a vagina por onde o rio se lançava para o mar. As famosas Portas de Ródão, dois grandes blocos graníticos intemporais... E lá nos cimos pedregosos, voos incertos de corvos marinhos... Dois túneis... E é Ródão, O cotovelo estupendo do rio ladeado de casas brancas e pinheiros e eucaliptos...
      Assim disse adeus ao Tejo, o professor do pick up band, da orquestra improvisada.
      Quando chegou à Covilhã, com o instrumento no seu estojo e a sua mala pronta, o professor não resistiu à sua curiosidade. Ficou a ver como procedia a sua bela desconhecida. E como imaginava, assim aconteceu. Um colosso de homenzarrão, um taxista com toda a certeza, levou a bela desconhecida ao colo enquanto outro homem mais magro se ocupava da bagagem.
      Nunca mais viu a desconhecida. Nem falou dela a ninguém. E nunca perguntou quem ela era, a taxistas ou a covilhanenses ou a qualquer outra gente.

***

      Passou-se um ano e o professor Dinitério Vidal continua a viajar de manhãzinha cedo em direcção à sua cidade natal. Tem uma secreta esperança dentro dele. Que um dia a mulher-tronco se converta em mulher tout court – pernas de ouro numa prótese diamantina.
      E para festejar esse dia, e não ser apanhado de surpresa, leva consigo o instrumento adequado para essa festa: uma tuba resplandecente onde ele esconde a sua merenda de viagem.

6/7/2013