Luìs Carmelo – Morrer é uma casa enorme sem geografia

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO4

LU'S CARMELO

morrer é uma casa enorme sem geografia (fragmentos)

1–

O zero é uma cifra por decifrar.

Morrer é uma casa enorme sem geografia, é verdade. Disse-o três anos depois, lembro-me que ouvia Ravel e a chuva tinha feito de Lisboa um esconderijo para mortais sonhadores.

A minha mulher saíra de casa. Vi-a partir com a sombrinha negra que tinha estampada uma rosa.

Quando reentrei no escritório, havia trinta memórias pousadas sobre a mesa. Peguei nelas, uma a uma, e logo reparei que mudavam de estado como se as leis da física fossem um cabrito de boca aberta pousado numa travessa.

Arregacei as mangas e decidi descrever essas trinta memórias. Pouco tempo tinha passado, mas já o aparo e a tinta revelavam ser uma e a mesma coisa.

4–

A festa de natal.

Não conhecia ninguém. Fiquei ao fundo encostado à parede a observar os porões dos navios cheios de remadores que repetiam sempre o mesmo gesto até à exaustão. Cansava-me só de espreitar. Houve discursos e champagne. E um actor declamou O ́Neill com o verbo a vir-se nessas rimas “que tão bem desfecham e que são o pão-de-ló dos tolos” (e eu imaginei, sinceramente, que lhe torcia o pescoço).

Não conhecia ninguém e por isso deambulei pelos extremos do quintal, pelos alpendres desabitados e pela caliça espalhada no fundo das salas.

Havia tangerineiras por perto e ele, que entretanto escapara aos porões do navio, apareceu para roubar umas duas ou três. E comeu-as a rir como se estivesse de calções e fugisse a correr, a correr, a correr ao longo dos corredores do colégio. Havia jesuítas e, em frente da marquise, dizia NC, estava o Vitorino Nemésio a fazer o que se faz, quando se pensa que mais ninguém está presente.

Até que a árvore de Natal subiu ao céu levada por balões e todos levantámos a cabeça para vê-la a pairar nos ares: eu, o actor, as mulheres de branco, o O ́Neill, o Vitorino Nemésio e todos os festejados. E lá ia ele entre os balões. Como se, em directo, o mundo estivesse sempre em suspenso.

5–

O café cubista.

Vinham do Índico: ela de panos azuis e ele de jeans. O cenário era de títeres com cadeiras desenhadas por Marcel Breuer. Sobre o aço tubular e cromado, havia garotos, queijadas, fumo de cachimbo, patilhas e muitas tauromaquias. Sentámo-nos, olhámo-nos e reparámos que, no tampo das mesas, a duração dos dias tinha o seu próprio concerto. Uma sintonia das videiras e encostas que fazia da cor do feno o pretexto para a festa. E NC fotografava com a urgência dos predadores.

Que haveria aqui de tão parecido com o Índico? A largura dos sons que rasga horizontes, a vista dos harmónios que se desdobra em luz, a antiguidade dos ritmos que gravita nos vales? Seria do mosto, dos tapetes quase voadores ou da arcaria a saber a pólen?

Estávamos sentados e olhávamos para o concerto das mesas. Havia um presépio de palavras a percorrer o ócio, às vezes uma simetria escondida. E sobre o tampo de mármore rompia o arco-íris com que o tabaco se enrolava à voz. E um copo a outro sucedia.

Descíamos ao aquário que prescindia de exteriores: os peixes atravessavam as coxias do café teatro e o cortinado era um único folho de panos azuis e jeans com escamas de naja cuspideira. Por vezes, chegámos a antecipar a despedida tocando os dois, quase ao mesmo tempo, no umbigo das Femmes de Avignon. NC adorava a voluptuosidade do cubismo.

7–

A primeira casa.

A terra é um barro para voltar a ser. Uma massa que penetra no nome e o faz ser. Subíamos pela berma da estrada: cardos, cactos, poeira, cães de olhos caídos. Couves alinhadas pelo caos da horta que era um útero recatado no meio do nada. À volta havia matéria de sobro e longas histórias para perceber o que os persas pensam de Montesquieu. A futura casa era ainda só uma silhueta.

Ela não existia, mas todos avançávamos para o local onde seria construída e tocávamos-lhe, tal como se toca numa amante. Eu abria as mãos e tacteava as paredes. NC, com o rosto de óculos que avançava para além dos gestos, encostava-se aos vãos das janelas. A sua amada MN que tinha o nome feito de barro indagava os algerozes, os frisos e o recurvado das telhas.

Depois eu envolvia com gestos largos as sacadas e os frontões, enquanto ele desenhava o fumo que saía das chaminés e MN criava no ar as flores, os vasos e os perfumes que se inalam nas histórias de Montesquieu. E um dia houve muitas flautas e à nossa volta cresceu uma multidão.

A festa é uma silhueta de carne e osso que nos dá o barro para voltar a ser. Ele sabia-o bem. E a amizade foi tomando a forma de um bolbo para onde as muitas vozes de lava se dirigiam. E em vez dessa raiz foi aparecendo a futura casa que era feita de um barro ainda por criar. E assim voltámos a ser na alvorada dos dias: um útero recatado entre miragens e sobreiros.

9–

O nome do Éden.

Havia ciprestes e buganvílias. Uma mesa de ouro que dava a volta à Sé. Na nascente dos quatro rios estavam sentados os pintores: um escavava rebanhos e descobria cores vivas, o outro maculava vulcões e resumia a sombra dos dias. No ar um misto de babilónia ajardinada e de abóbadas com velame a flutuar nas mãos do grande oleiro.

Eram nuvens de palmeira, espadas de são Jorge longilíneas, fundas do tempo, quem sabe se o grande trovão que abalou a colina das oliveiras. Bebíamos com báculos cheios e exumávamos os jarros brancos que os pastores nos serviam.

Copulámos. Cada um para o seu lado com espigas e redenção de papoilas. Como leques andaluzes a esgaravatar o luar talvez de Maio. E os jarros cobriram a mesa de ouro que dava a volta à Sé. E os báculos penetraram na nascente dos quatro rios. E o grande oleiro pairou nos ares entre os jardins de buganvílias e as iluminuras dos pintores.

Houve ainda uma exposição de folhas vermelhas que eram movidas pelo vento e, pouco depois, fecharamse todas as portadas. Era já noite e o céu por dentro acendia a semente que era, afinal, o tempo de todos os dias.

12 –

Os Madrigais.

Chamei o senhor Claudio Monteverdi e ele sentou-se à nossa mesa. Encomendámos madrigais e o vinho de S. José da Peramanca. E o músico disse que deus era uma pedra. Nem isso, retorquiu NC. Talvez uma anémona, acrescentou MN. O cansaço, disse eu. Quem sabe? Havia uma praça a rodear a contenda e ossos, muitos ossos de entrecosto para que os cães pudessem saltar à vontade até à estrela da manhã. Ou seria da tarde, essa estrela?

Uma pedra, uma anémona ou nada? Monteverdi separou a textura do tecido e mostrou-nos a substância de ambos. Arrebatámo-nos. Ao fundo, o coro compunha o imenso desvelo do músico. Quando se ouviram as badaladas, o senhor Monteverdi esticou as pernas, levantou-se abruptamente e agarrou-nos aos três (éramos mais, eu sei: uma miríade é um numeral de origem grega que significa dez mil).

Pegou-nos como se pega num carrossel à deriva no espaço. E cada um de nós agarrou-se como pôde ao seu animal sagrado: uma vaca, um burro, um camelo, talvez uma zebra vinda da Ilha de Moçambique. E assim orbitámos como se fôssemos pedras presas a outras pedras numa cascata que rodaria à volta de si mesma. Vieram mais madrigais e ainda mais vinho de S. José da Peramanca. E o músico de Cremona disse que deus era afinal o carrossel. Nem isso, repetiu NC. Talvez o movimento e não o móbil, aditou MN. Provavelmente a manhã ou a tarde que se entregam como nome dessa estrela, disse eu. Talvez apenas a entrega, sussurrou por fim Monteverdi.

E lá largou o carrossel tal como se larga uma tira de couro com que se arremessam balas ou limões. Um boomerang de vozes na vasta planície onde a mais aberta vista se procurava.

16 –

O apocalipse começa em casa.

Subiu ao céu a cavalo e sentou-se à porta dos deuses. Em vez de trono havia troncos serrados e, quer em baixo, quer em cima, o mar era negro e encapelado. Vagueou por dentro da casa que era enorme, embora com uma geografia ainda possível: um quadro cheio de números e a palma da mão a abraçar o Norte da bússola. Viu copas de laranjeira a aflorarem sobre os telhados, desprovidas dos seus troncos e raízes. Viu copas de limoeiros a romperem as névoas do fim de dia, privadas dos seus caules e rizomas.

Subira ao céu a cavalo e tinha-se sentado à porta dos deuses. E o que não era passara a ser. E tão óbvia fora a experiência que nada afinal mudara, a não ser o murmúrio da demorada viagem.

E repetiu de si para si que a amizade não se diz. Está tão selada na visão crepuscular que pode acontecer em casa, como na oração dos cisnes negros da infância. Antes, depois e durante esse tempo todo, a amizade persistirá, ou seja: estará lá com a forma de um alpendre onde se sentam os justos e os injustos. Não há religião na amizade, nem a contrição é promessa que lhe dê o ser, ou a brisa de feição que lhe enfunasse as velas. Nada revelará o que a faz ser viva, antes o que a faria perder.

Os deuses entendem como ninguém este alfabeto feito apenas de coisas não ditas. Foi por isso que, um dia, acenaram com a ordem mais preciosa: que dos frutos se fizesse a verdade! Afinal nada mudara, a não ser o murmúrio da longa e desmesurada viagem. Sim: um apocalipse é uma visão (uma visão que cresce dentro de todas as visões), mas é também uma viagem constante. Uma viagem sempre inacabada.

18 –

A construção da casa.

A casa é a circum-navegação do desejo: uma nuvem profunda que, ao mesmo tempo, se evade e a si regressa. E os alicerces e as paredes levantaram-se. E o mirante e as varandas avançaram para o horizonte. E as portas moveram matéria, enquanto as janelas e as frestas abriram mundo. Os traços que desenham a casa foram movidos pela máquina da fuga e pela arte do recolhimento. Dois nocturnos que fluíram num único. E foi com essa sonoridade que as sombras atravessaram a alvenaria e as trepadeiras e os troncos entornaram a seiva da terra sobre a grande construção.

A casa é a única indústria do sonho que é centrífuga e a única diagnose da saudade que é centrípeta. A arquitectura é o ponto de encontro entre estes dois movimentos da paisagem interior e, por isso, se alimenta da ciência do projecto (que é a descida aos vãos da memória, interpretada pelos muitos gestos da previsão). E as oliveiras envolveram o corpo de cal e a piscina rasgou à geografia um chão de ardósias, abelhas e algas. E as ventoinhas desceram aos alpendres e o bulício das abóbadas penetrou no magma das vozes.

A casa é um objecto mecânico: enquanto os membros e os tentáculos irradiam, os fios da memória contêm- se e cristalizam-se. A casa é a gruta que se eleva a figura biográfica por ser capaz de reconhecer aquilo que, a todo o momento, a faz elevar ou deixar de ser. E assim andaram – por dentro – à volta da casa como uma romaria que envolve a santidade das pedras. E assim andaram – por dentro – à volta da casa como uma sombra que atrai o sol na sua marcha para além do tempo. E assim andaram – por dentro – à volta da casa como o relógio que concede ao amor uma nascente feita de foz e de algumas margens para colocar as suas palavras.

A casa é a força motriz da imaginação que prospecta o espaço ainda por vir e que sabe entrincheirar-se abraçada aos mitos que já foram. Uma balada de guerra e ainda assim um castelo armado para o maior dos resgates da pele. A casa é uma fracção do ser e não apenas um lugar. A casa é um encalço da existência e não apenas um espaço. A casa é o rito primordial e não apenas uma morada.

21 –

O sacrifício do porco.

A faca da matança fez o seu traço fatal. Rompeu o corpo do suíno em plena jugular através de um único golpe. O sangue deslizou na eucaristia do barro e foi mexido para não coalhar. Depois de sangrado, o pêlo branco foi aparado pelo fogo do maçarico. As moejas e outras gorduras encheram as primeiras taças. Começou a chover. Era uma chuva miúda.

Depois da lavagem com a mangueira, o homem de barba por fazer começou a rir, enquanto ia abrindo o animal com suavíssima mestria. Contava histórias de outras matanças, mas a verdade residia mais nas invariantes do que na pontualidade dos episódios. Como em todas as gramáticas.

Por vezes, tive a impressão de que o porco ainda mexia, ainda grunhia, ainda media com as patas o caos do derradeiro caminho. Mas não: o sangue coalhado já enchia os pratos de sopa. NC fotografava. MN circulava em rodopio tal como na última ronda. A minha luz sorria para evitar o conforto do momento. E eu estava com os calcanhares apontados ao centro da terra.

Já entre paredes, a pele do porco foi aberta junto aos tendões das patas traseiras. Como um bom soldado caído na frente de batalha, o animal foi colocado nos altos do chambaril. Chovia agora intensamente para além da porta que estava aberta de par em par. Perdi aí o olhar e vi-o aparecer de leica junto ao peito deixando que a chuva o encharcasse. Quando voltei a encarar o ritual, já o interior do suíno repousava dentro do alguidar. Aí reluziam órgãos e um emaranhado de tripas, de onde haviam de nascer os enchidos. A eucaristia fez o dia ser um dia diferente do vórtice de todos os outros.

25 –

O fim de ano

Fez da tragédia a sua fama interior, não a exterior que tinha a barba por fazer e acelerava os passos ou satirizava os gansos da falésia com as asas bem abertas. Nessa noite, havia eucaliptos e, ao fundo, a serra d ́Ossa marcava o Oriente: um dorso de animal predador como limite ou como simples Norte.

Fugira da festa. E era a última noite: o fim de ano apareceu a muitos quilómetros daquele ermo por onde seguia a pé. Na refracção dos céus, a humidade delineou fogos de artifício que alumiavam os extremos do horizonte. Eram estrelas a ziguezaguear nos confins da via láctea. Pequenas oscilações de luz a marcarem o reinício do tempo: meros atritos, se comparados com a fricção com que ele amassava a lâmpada negra do destino.

Tinha desaparecido da festa e caminhava enrolado ao capote entre arames farpados, rastos de granito, sobreiros amputados das suas cortiças e ervas e rebentos e cardos flagelados pelos rebanhos.

Os sonhos dão à fama interior as suas estrelas de carvão profundo. Sentou-se na ravina e adiou a noite, o dia e a raia que demarcaria fronteiras. Marcou talvez o tempo com um pêndulo incorpóreo e ficou a falar sozinho como se fosse esse o seu fado real.

26 –

O fado.

Dizia que uma boa fadista era uma fadista com útero. E dizia-o com as mãos em concha a estilar os gestos e a romper a construção que desejaria criar de braços no ar.

Ou dizia-o a avançar pela minha frente na direcção do vácuo como que a conceber uma mulher que não seria apenas uma mulher, mas uma argonauta cheia de anéis e diamantes como Saturno. Não, isto não era amor. Era intensidade.

A fadista abria os braços e o corpo que devolvia era uma chamada. E ele ficava colado a essa chamada e petrificado demorava em si ao vê-la e ao ouvi-la, como se assim morresse sem saber.

E ela retribuía com aquela anatomia própria das vozes que crescem para fora de si, como se houvesse um planeta paralelo onde apenas existem coisas e factos que são superiores às forças de quem os conduz. Um planeta sem centro, nem equador; um planeta sem pólos, nem trópicos. Feito apenas de intensidade ou de pranto num estado quase gasoso, aéreo, elevado.

29 –

O hotel ao telefone.

Do outro lado da linha, reparei que ele não percebeu as minhas palavras. Falei mais alto, repeti várias vezes a mesma frase, mas a rede devia estar saturada e a voz parecia roufenha, longínqua. Foi a última vez que falámos. Como saber quando é a última vez?

Na minha frente estava um prato cheio de caldo verde: a espessura era criada pela batata e a gordura do chouriço crescia à superfície da sopa. Nada naquelas formas esguias servia de augúrio ou de prenúncio. A realidade não se desoculta como se fosse um oráculo nas mãos de Colombo ou dos seus imaginados fantasmas ou deuses.

Os trabalhos do mundo inundam o ser dos seus milagres. Foi por isso que desviei o cortinado e comecei, naquele mesmo dia, a caminhar em direcção ao mar. Andei durante três dias e três noites. Atravessei a serra da Arrábida. Olhei para trás e ainda vi os recortes de África e alguns limites do Alentejo.

Desci por fim a serra a Ocidente. Deitei-me no areal íngreme. E coloquei a mão dentro das primeiras ondas do mar.

30 –

Quebra-mar

Morrer: eis a quebra. A morte avança como um farol avança para as ondas: o espaço silencia as suas figuras e deixa de auscultar o quebra-mar. Noutros faróis, a memória ampliar-se-á em espiral de tornado. Restarão os vincos e os folhos deixados na areia a que acrescentaremos a imagem de um tornado para que algo de grande possa aparecer na frase.

Morrer: eis a palavra sem âncora. Ou o verbo que devia traduzir o curso de uma acção. Ou a frase que deveria ser o ampliar da confissão sem qualquer imagem acrescentada. O que ficar esvaziar-se-á. Tal como a maré baixa, tão baixa que o mar recua para não mais avançar com as suas ondas e despojos. Com as suas frases inaceitáveis.

Não cremos na morte por ser para ela que vivemos. Dizemo-nos no assombro ao cantar Homero ou qualquer outro fado por definição: respiramos épica e aspiramos heróis e mentol para que possamos ser o que não somos. Imortais. Eis a quebra, o quebra-mar e o próprio mar que ficam para além das grinaldas em pedra e das asas gravadas no mármore.

Sentei-me no areal. A geografia esvaziara abruptamente o mundo. Vi que tudo à minha volta era uma casa enorme feita para todos os verões. Em vez de latitude havia prelúdios. Um deles continuava a ser povoado pelo senhor Debussy que se deixou fotografar ao nosso lado, no quebra-mar, com um belíssimo fauno que era mais alto do que qualquer farol deste mundo.