Luís Carmelo – Extraído de Órbita

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO11

LUÍS CARMELO

Extraído de Órbita
(Volume I – Visão Aproximada)

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A memória é um sonho que se sonha a si próprio, embora com a ilusão de que é possível controlar o ritmo e a dimensão das marés. Talvez mesmo uma cidade inundada de que se conhecem apenas algumas clareiras, pontos de luz, telhados aqui e ali recortados ou terraços que são afinal poliedros silenciosos e invertidos.

 

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Tudo se inicia através de uma imagem com aparato sólido, mas com o volume no mínimo. Uma imagem que, no entanto, é elástica e que se atreve a voar como as galinhas da Índia que no teu quintal levantavam asas e esbarravam na parede da casa (nada assegura que a natureza não imite, mas é ela que faz perceber a imitação).

 

87

O quebra-gelo foi o primeiro oásis que reconheceste na vida. Na tua frente flui o rio Amstel e as casas flutuantes onde habitam pessoas feitas de água, tranquilas como o gelo que emagrece o olhar. Na outra margem os edifícios marcam a paridade de uma grande sala vazia. As bicicletas têm galochas que raspam o grão de brita, completamente alheias à acção da gravidade e aos remansos da esplanada. Sobre o estrado, as torres de aquecimento permitem unir os joelhos, fechar o sobretudo e ter a mão e o cachecol sobre as folhas de papel. As vidraças do café percorrem toda a longitude que sopra de lés a lés nos acordes do violoncelo. Atrás do balcão, onde a islandesa (que é uma nuvem de beleza) apoia toda a brancura do corpo, encontra-se a galeria de arte e a sala de concertos. De lá chegam as grandes colheitas que fazem circular a manhã. O quebra-gelo, Ijsbreker no original, é um tiro com silenciador e sem necessidade de pistola. Por vezes nem o violoncelo se escuta, nem os pneus das bicicletas, nem o suspiro da islandesa que serve cappuccinos com a palidez dos lustres reflectidos no rio. Ao fim da manhã, o teu amigo JMR chega da academia de arquitectura e senta-se ao teu lado para temperar as névoas que cobrem a ponte levadiça de madeiras claras. Ele é fotógrafo de arte e nas câmaras escuras que lhe conheceste compõem-se anos de luz avermelhada e indagam-se os melhores reveladores. Nesse dia exacto do fim de Fevereiro, tinhas acabado de imprimir o que viria a ser o teu primeiro romance, um momento histórico, sussurraste. A passagem do cargueiro que tinha escrito “echo” junto à proa suspendeu a conversa por instantes. Segundos depois, parece que foi agora, levantas os braços no ar como fazem certos pássaros omnívoros que consomem vermes, bagas e frutos de pele lisa. E a resma de folhas dactilografadas, levada por um súbito golpe de vento, sobrevoou toda a esplanada, a estrada, os tampos das mesas e as amarras das casas flutuantes. Uma chuva de letras a pairar sobre todo o quebra-gelo que precedeu a feliz etapa de recolecção. Ninguém na esplanada se furtou à tarefa: um verdadeiro polvo de garimpeiros à cata da pepita de ouro. Voltaste assim a reunir as sílabas, as linhas, as páginas. Terá faltado uma única, é verdade. A tua poética de Aristóteles, disseste tu à islandesa, mas ela não compreendeu a graça, nem te ligou patavina (foi de pasmar a brancura que parecia inabitada).

 

88

Os eléctricos desinibem o vácuo, as botas da feira da pulga avançam em câmara lenta e, por fim, a luz azulada bate-te nos olhos. Era um palco geralmente para músicos de jazz, mas sobre ele permanecias ao meio a receber a projecção sobre a tua cabeça e o tronco e recitavas palavras decoradas um pouco à pressa. Via-se que improvisavas com todo o prazer, saltavas sobre ti e isso fazia toda a diferença. Uma performance é aquele momento único: um simples cacto contra a vastidão da mata, um simples silo contra a disposição dos céus, um simples socalco contra a ordem do desfiladeiro. Tinhas emigrado de vez e a distensão do acto não fora apenas uma levada da geografia; agora estava na hora de compreenderes tão-só aquilo que se inventa, como diria Valéry. Regressaras à imortalidade (toda a ciência escondida limita-se a dourar a forma de um coração sem apeadeiro).

 

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Um cheiro ácido traz-te a presença do azinho, das lareiras solitárias e das casas inventadas por dentro no seu solilóquio líquido. Do lado de fora das janelas, de cortinados sempre abertos, a grande nuvem desdobra-se com a força de uma vela ao terço. Encurtaste o passo no passeio e viste azulejos com cabeças inchadas de tamboril, peixe que em holandês é tratado por diabo do mar; viste algas e mais algas a formarem espirais sem fim e, ao fundo da ponte metálica, junto ao realejo, viste os três vestidos avermelhados e negros cheios de rasgões e picotados com pregos. Três mulheres a rirem com garrafas na mão. Depois atiraram-nas contra a parede e não pararam de rir. Os transeuntes impávidos. As tardes acabavam muito cedo e as feridas ocultavam-se como se fosse de vez (o verdadeiro diálogo apenas acontece nesse baloiço voltado de costas para o peso insular da memória).

 

92

Fernando Pessoa transformou o excessivo peso do passado numa metafísica feita de nuvens de bom tempo. Essa meia evaporação da história fez com que uma certa quantidade de mitos, espalhados em todas as direcções, se transformassem em metáforas de leitura universal. Um tal reequilíbrio não cabia na rigidez do antigo regime, mas floresceu uns cinquenta anos depois da morte do poeta que não foi apenas um poeta, mas um modo de nos lermos e de nos entendermos a nós próprios. A heteronímia serviu para mostrar que as soluções avançam por muitos carris ao mesmo tempo e que a estação de chegada, tal como todos os pontos de partida, são sempre espaços improváveis. Vivemos numa encruzilhada de proposições, em suma. Lembras-te do encontro, na Primavera de 1982, com August Willemsen, um dos grandes pioneiros das traduções de Pessoa, que teve lugar na biblioteca da universidade de Amesterdão, na altura a meia dúzia de metros da praça de Waterloo e da casa de Rembrandt (quando os turistas ainda rareavam). Comparando a Holanda com Portugal, ele disse-te uma frase que dificilmente esquecerás: “Nós naufragámos mas fomos apenas comerciantes, enquanto vocês naufragaram em Pessoa e com isso descobriram o mundo todo de uma só vez.” Ofereceste-lhe o único livro que publicaras até então, intitulado O Fio de Prumo. Ele viu o título, sorriu, deu uma volta às estantes de poesia brasileira e apareceu-te com um livro homónimo na mão. Respiraste fundo, pois um homónimo não é propriamente um heterónimo. E concluíste que apenas existe aprendizagem, se se armar uma feira que consiga preencher a alma inteira. No fundo, foi o que Almada conseguiu com aquele retrato de Fernando Pessoa que pudeste observar – anos antes – nos Irmãos Unidos e que tinha sido pintado ao ar livre em finais de Agosto de 1954: espelhar através do olhar do poeta um outro mundo diante daquele que nos é habitual, mas com um fio de prumo secreto a ligá-los (para que pudéssemos ver de fora aquilo que, ao mesmo tempo, somos e não somos, tal como a flecha e o dardo se entreolham sem quaisquer limites).

 

93

Um dia vendeste a aliança do teu primeiro casamento na loja de penhores para ir à ópera com o teu melhor amigo. Foi Lohengrin em três actos e, no último, o cisne desapareceu nas águas para logo reaparecer sob a forma de Gottfried, antes transformado em animal por obra de feitiço. Identificaste-te imediatamente com o jovem duque do Brabante (representado por um actor que nunca chegaria a cantar) por mudar de corpo para melhor manter a sua alma. Era o que sentias, ainda sentado ao balcão de um café quase sem luzes que era um verdadeiro museu de antiguidades, sobretudo de máscaras, facas e espadas. Nos domingos à noite, aquele local ficava despovoado e tu percebeste que os sons, as cores, os gostos, os odores, o calor e o frio eram impressões do espírito (impulsos instantâneos) sem qualquer semelhança com as qualidades reais dos objectos que à tua volta iam silenciando a obscuridade, como se se encerrasse um capítulo ainda por começar. Entendeste assim o significado do teu primeiro divórcio. No dia seguinte, numa universidade igualmente nocturna, explicaste quem era Fernão Mendes Pinto e contrapuseste-o a Montaigne como se um e outro fossem o mesmo cisne, ainda que com almas radicalmente diversas (a bênção é uma cor como a da neve que cega).

 

100

O delírio é uma vasta floresta sem árvores. Percebeste rapidamente que quem nunca entrou num espaço desses é porque afinal não escreve, apenas publica livros. Há um lenço branco na frente de cada visionário, por mais cego ou irascível que seja. Talvez o céu faça também a diferença: nuvens baixas e rápidas, a luz fragmentada, transversal, nua. Por trás da estação central, um veleiro à deriva com um homem meio nu, de pé, em posição de cristo rei. De resto, a paisagem despojada entre o baixo-relevo dos musgos e a incerteza de todos os bons sonhos de Ícaro (a presença do nada é muitas vezes interpretada como um mero elemento da finitude).

 

102

Num sábado de céu framboesa passaste por Delft. O sol outonal descaía nas cartilagens muito bem definidas da cidade velha. Não te conseguiste abstrair da silhueta em fuga ao longo das montras, casaco até aos pés, cores claras, jamais saberás quem é. Há pessoas que vemos apenas uma vez. Nem saberás por que razão se retém a espessura desses momentos. Talvez a relembrança, esse retábulo mecânico sempre em polimento, cogite a sua própria redenção. Vermeer tê-lo-á pensado nos brilhos em que a coloração de safira vincava as extremidades dos objectos e de certos rostos. Traria consigo memórias do primeiro orvalho da manhã a esgrimir as nuvens carregadas que fecham o horizonte para os lados do mar. Um corpo invertido na paisagem que a luz pôs a levitar diante de si. A vida na Holanda do século XVII tinha destas coisas. Eram feitiços experimentais a sonhar com a génese da fotografia. Por trás, no cenário levantado para essas silhuetas sempre em fuga (e subitamente imobilizadas), a natureza adormecida torna-se numa lava à procura de aclaramento. A fotografia, mais tarde, haveria de carregar consigo esta mesma perturbação, a sua voyance, afinal (à imagem daqueles deuses ao longe para quem os humanos são apenas reflexos de água turva).

 

103

Atrás da duna, o dique eleva-se. O corpo do fotógrafo deita-se sobre a máquina com a precisão dos pássaros que conhecem a geometria dos grandes castanheiros.

 

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No Outono de 1987 regressas a Veneza e, depois da leitura matinal do Il Gazzettino, fechas-te num pequeno hotel a escrever o teu terceiro romance. Dez anos depois, no prefácio à segunda edição, Luciana Stegagno Picchio escreveu: “É uma meta-Veneza apenas fruível de olhos fechados, tal como uma música que nos envolva e que nos absorva pelas suas volutas em espiral, ora esfumadas no enleio do sentido ora solidamente apegadas à realidade dos nossos dias, através da reprodução de factos e ambientes da actualidade”. É a mais pura verdade que um romance apenas cabe no (limite) que escapa à experiência, depois de se ter subido as escadas a correr. O esforço é essencial. O que nele se representa foge às referências que seriam óbvias, mesmo se a cidade e as suas águas e canais forem vistas de cima, a partir das águas-furtadas, em noite de trovoada. O que se passa num romance são as latas de conserva de Warhol. Elas existem para que se possa amar aquilo que passaria despercebido. Elas, as personagens, não quantificam objectos. Antes duvidam, quando não existem sequer questões para pôr em causa. Antes questionam, sem que haja sequer respostas possíveis à vista. Antes se dispõem a responder, ainda que não existam perguntas que atravessem a encenação criada. Sim: um romance tem a sua música própria ambulante que voa sobre o mundo e o captura como uma tautologia (por vezes torna-se numa máquina surda que sabe serrar todas as dunas e que adora falar de lenha como se fosse um navio a aprender o futuro).

 

130

Quando em Maio de 1990 regressaste a Portugal, o teu baptismo de cais foi a longa-metragem Asas do Desejo de Wim Wenders. A tradução do título original revelou-se pretensiosa e quis desnecessariamente acrescentar metáfora à metáfora que o filme era e é. Neste caso específico, a tradução literal (O Céu Sobre Berlim para Der Himmel Über Berlin) teria sido claramente mais vantajosa. Rodado dois anos antes da queda do muro e com palavras de Peter Handke (autor a quem responderias, trinta anos depois, com Pássaro Transparente ao seu Poema à Duração), o filme propunha um intuito poético que permitia extrair encanto ao desencanto e, desse modo imensamente subtil, recolocar em cena uma nova era. Foi o que sentiste quando abandonaste a sala e percebeste que a ampulheta voltara a contar (ou a descontar). Sete anos mais tarde, entrevistaste na televisão Eduardo Prado Coelho por causa da edição de O Cálculo das Sombras. Vários foram os temas então abordados, além do tabu sobre o pós-moderno. Lembras-te das referências a Georg Simmel e às suas concepções de porta e de ponte que definiriam a nossa época enquanto mapa de sucessivas drenagens, capazes de ligar áreas do saber e imaginários diversos. E lembras-te ainda que o livro terminava com uma carta em que se afirmava que é pelo facto de “a experiência estética implicar um choque de conversão” (do absurdo ao sentido) que a “cultura implica um certo tipo de culto”. Esta curiosa ideia de uma cartografia invisível (em que todos nos estaríamos a ligar através de uma rede de conversões inesperadas) conduziria depois ao tópico do regresso que acabou por ser o que foi debatido de um modo mais entusiasta. Eduardo esperava regressar a Portugal no ano seguinte (1998) e viria – como de facto veio – trabalhar para a área da comunicação e não para a área da literatura. Dizia que a comunicação emprestava um campo virgem e multidisciplinar a quem nele quisesse investigar, somando à metáfora de Wenders que relembrou (sublinhando “o encanto de um reinício”), o prazer de poder olhar a literatura com outras lentes que não as que a literatura construíra apenas para si, ao longo de décadas. Era contra esta cegueira de uma monovisão que o seu regresso tanto o arrebatava. Acompanhaste-o alguns anos depois nessa expedição e o ardor andou-lhe sempre colado à pele, mesmo quando o sorriso já não iludia o sofrimento. Morreu no dia em que fizeste 53 anos e nunca lhe pudeste agradecer, entre muitas outras coisas, a coincidência acerca da metáfora de Wenders que, ao fim e ao cabo, ainda hoje te serve de ampulheta para decantar as várias fases desta nossa maratona.

 

181

Em dias de pandemia, os crepúsculos chegam durante o dia e enfrentam a luz como uma música que subverte a imaginação, por vezes o tédio. Uma imagem que te devora e que te alimentou nessas tardes desavindas. A biografia é, ou poderia ser, esse breve parágrafo que enche a possibilidade de teres sido e de, apesar de tudo, aí continuares a inventar o tamanho do desassossego. Imaginemo-la como uma fotografia – sempre a mesma – a passar em loop e sem esquadria. Ou como a chuva a transbordar os vidros da janela. Uma fotografia que se diz natural apenas porque é ou será olhada por alguém. O que se apresenta como natural visa afinal, e com toda a inocência, o futuro. Não sei se a biografia inventada é um género que te interesse. O que ainda te interessará mais é a própria invenção, já que a biografia, essa, seria sempre o reboque da viatura (é preferível ser já os destroços a ter que espreitar o big bang do homem bomba que é deus, esse narrador que se esquece sempre do não dito).

2020–2021