Lídia Jorge – Percurso por New Orleans

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO3

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LÍDIA JORGE

BOLIQUEIME, 1946


PERCURSO POR NEW ORLEANS
à beira de um rio chamado mulher

Dere ́s an ol’man called de Mississippi
Dat’s de ol’man Id ’like to be
What does he care if the world’s got troubles
What does he care if de land ain’t free.
O
SCAR H
AMMERSTEIN

Se alguma vez forem a New Orleans e ficarem hospedados num hotelzinho do French Quarter, tomarem o vapor Natchez para um passeio na água, e derem uma volta por Jackson Square para escutarem verdadeiros blues, farão tudo o que eu fiz naqueles dias de Primavera, mas jamais conseguirão seguir os passos que dei ao longo de todo um certo dia de sábado. Eu própria, mesmo que o desejasse, jamais os repetirei.
      Para que me compreendam, bastará dizer que comprei uma passagem para um só viajante, ocupei um só lugar no pequeno avião que balouçava como uma enxerga solta na direção da Dixieland, tudo isso como se fosse uma só pessoa, e no entanto eu não viajava sozinha. A meu lado viajavam as sombras de dois forçados, bem encurralados na sua penitenciária, depois de terem andado perdidos nas águas durante a cheia de Mississippi River, ocorrida no ano distante de 1927. As suas figuras feitas de letras provinham de uma paisagem que eu tinha encontrado dentro de um livro, e havia anos que caminhavam à minha frente sem que lhes pudesse dar liberdade nem guarida. Eram eles que me levavam a visitar as suas paragens, a entrar nos campos do algodão cobertos pela água onde vezes sem conta tinha mergulhado sem remédio. Queria, pois, subir rio acima pelos estados de Luisiana e Mississippi, se possível ir até Oxford e New Albany, e por isso, a cidade de New Orleans representava apenas um sítio de paragem, uma estalagem apressada no meio do caminho.
      Mas nada iria passar-se como eu imaginava.
      Para já, o hotelzinho localizado em Toulouse Street tomou-me por completo. As janelas eram guardadas por balcões de ferro forjado à espanhola, perfumes franceses exalavam dos cestos que me haviam colocado à cabeceira, e lá fora havia a rua, a maravilhosa rua do Vieux Carré, como se fosse um palco em festa. Tudo o resto que me ocupou naquela sexta-feira não vale a pena nomear, de tal forma esses encantos andam descritos nos folhetos turísticos que organizações de propaganda se encarregam de espalhar pelo mundo inteiro. Não vale a pena falar dos restos de cultura crioula, das trágicas lutas do passado transformadas em delícias para a imaginação, dos álbuns contendo a histórias dos steam boats em góticas pinturas românticas. O que eu queria era ir atrás da sombra dos dois forçados que me chamavam a partir do interior das páginas daquele largo conto com o título de Old Man, queria ir ao encontro das ilhotas, da deambulação dos forçados, da mulher grávida pendurada da árvore, da lata enferrujada com que a parturiente cortou o cordão umbilical, dessa história de amor tão rude quanto sublime, tão intensa como sem esperança, e no entanto de sonho. Queria ir ao encontro do universo concreto que poderia ter dado esse sonho. Queria, mais uma vez, experimentar na alma o princípio legado pelo meu pai de que quanto mais nos afastamos de casa mais nos aproximamos da verdadeira morada.
      Cedo percebi, porém, como iria ser difícil reconstituir o caminho dos forçados. Para já, a grande surpresa era a relação dos habitantes da cidade com a figura de Faulkner. Não foi necessário ir além de duas ou três conversas para perceber que a idolatria literária é inversamente proporcional à distância a que se encontra o objeto. Encolhe com a proximidade até se reduzir a zero. Todos os que intervieram na conversa, e até havia um piloto de Memphis, eram da opinião de que havia alguma coisa de extravagante no facto de os europeus viverem em adoração por um escritor que eles consideravam menor. Períodos longos, confusão verbal, caracteres vis, famílias debochadas, histórias de sexo não resolvido. Pois o que queria eu ir fazer nos campos do algodão, quando forçados fugidos e recapturados tinha havido tantos, e quando o Mississippi estava sempre a mudar de curso? Se eu queria ver alligators podia tomar um cruzeiro que me poria a dois metros deles. Um outro que me mostraria cobras, ratos, toda a espécie de pássaros. De resto, que não me metesse eu nisso. Mas uma mulher de meia-idade estendeu um braço e, da ponta dos seus dedos, pendia um cartão. Nele estava gravado um nome, uma inicial e um apelido que me pareceu ser polaco. Por baixo, em letras inclinadas, podia ler-se Guide & Escort. Ela disse-me – “Please, call me Barbara”. Foi nesse instante que se iniciou a minha verdadeira viagem através de New Orleans.
      O dia seguinte era sábado e Barbara levou-me para a rua.
      Barbara era uma mulher longilínea, a roupa que a cobria dava para fazer dois vestidos de uma rapariga comum, o seu braço estendido alcançava o topo das casas, os traços do seu rosto diziam que havia sido uma linda mulher, agora restava da sua pessoa uma figura distinta. Além disso, havia um outro pormenor. Por onde ela passava, quando estendia um braço junto do balcão, alguém vinha colocar-lhe na mão uma bebida longa, uma bebida branca. Tudo nela era longo. Disse-me que no dia seguinte, sendo domingo, ela mesma me conduziria pelo caminho dos forçados. Ela conhecia a colónia penal a que se referia Old Man, ela sabia em que morro dos campos de algodão ficava o mouchão das cobras, o local onde o forçado magro entregara a lata para a rapariga cortar o cordão umbilical da criança, ela sabia de tudo, levar-me-ia pelo norte de Luisiana, Mississippi acima, levar-me-ia até Oxford e até aos condados que haviam dado a Faulkner a paisagem de Yoknapatawpha, faria comigo um percurso pela Ole Miss University, ela tinha lá amigos, Barbara tinha tudo preparado. Agora, porém, eu poderia passear por New Orleans levada pelos olhos dela. Conhecia cada canto. Aqui, outrora, debruçou-se Mark Twain tomando notas, ali, esteve sentado Tennessee Williams quando recebeu a bolsa do Presidente Roosevelt, depois da Grande Depressão. Além, em Pirate’s Alley, ficaram alojados William Faulkner e o pintor William Spratling, partilhando o mesmo sótão. Nessa altura, ainda o futuro autor era um garotinho, ainda não havia acrescentado o u a Faulkner e ainda escrevia o seu primeiro livro. Disse Barbara, mostrando os locais sagrados das suas santidades. E, de vez em quando, estendia um braço junto de um balcão, e não dizendo nada, recebia na mão estendida um copo longo com uma bebida branca.
      Mas a meio da tarde o assunto passou a ser outro.
      Barbara levou-me até ao canto de certa rua, encostou-se a uma parede e começou a entoar The House of the Rising Sun. Por alguma razão ela saía com os copos na mão e os donos dos bares não se importavam. Em cada bar onde entrávamos ia deixando um e recebendo outro. Encostada à parede, Barbara entoava a canção e rodava o copo, bebericava entre os versos que cantava de forma explícita, receosa de que o meu inglês não fosse suficiente para captar as subtilezas da história. No final, ela queria que eu dissesse quem havia composto a canção, se fora mulher ou homem. Eu pensava que era homem, mas Barbara abanou a cabeça e disse – “No, a girl, a prostitute girl wrote these lyrics”.
      Aliás, Barbara tinha a certeza de que a autora tinha vivido naquele local. Que se alguém escavasse fundo, debaixo daquelas paredes, poderia encontrar os sapatos de laço, as ceroulas de renda, os frascos de perfume com espigão de vidro, as caixinhas de rouge que ela usava no século XVIII antes de ir para a cama com os clientes. E porquê a ambiguidade boy, girl ? Ah! Porque, no seu entender, no momento em que uma pessoa começa a compor uma canção, o traço do sexo desaparece, toda a gente é homem, toda a gente é mulher, negro da Jamaica e amarelo de Saigão são só um. Ela sabia do que falava. Estava encostada à parede daquela casa, para os lados da Conti Street, o sol punha-se atrás dos telhados franceses, e ela desenvolvia a sua teoria de que bastava uma pessoa começar a compor para se transformar numa criatura sincrética. Entrámos num outro bar, e ela mudou de copo. Mas era o mesmo conteúdo. Um espesso líquido transparente, gelo no fundo, para Barbara fazer tlim tlim com ele. Claro que eu também tinha um copo, mas eu pagava o meu, e tinha de o deixar onde o tomava. Dava para entender que em New Orleans eu era uma turista visitante, Barbara um património da cidade de New Orleans.
      Então ela disse – “Estou muito feliz por que amanhã vou visitar os meus forçados que há tanto tempo abandonei com uma bola de ferro no pé, dentro daquelas paredes”. E Barbara anunciava uma surpresa. Era uma pessoa bem relacionada, uma figura cuja presença muitos requisitavam. Naquela noite, Barbara tinha um jantar com amigos que me receberiam, assim eu quisesse. Eu quis, e então fomos caminhando sob árvores gigantescas que ela dizia serem carvalhos, e a mim me pareciam ser ciprestes. Também havia buganvílias, também havia roseiras, também havia relva, muita relva verde, tão aparada que parecia uma fantasia salpicada de palmeiras, e no meio delas, uma mansão branca de dois pisos, com largo frontão triangular onde não havia sentenças gregas escritas à vista desarmada, mas era como se houvesse. Mansão clara, divina e racional. Só que ao entrarmos, Barbara disse – “Vê esta escadaria? Aqui foi feito o filme E tudo o Vento Levou. Por ali descia Scarlett O’Hara”. O dono da casa recebia-nos. A dona da casa sorria, os criados da casa serviam. Nós subimos, havia uma bebida longa para quem quisesse e Barbara queria. O dono da casa preveniu, no seu sotaque do sul – “Querida Barbara, tenha moderação, olhe que ainda começa a dizer à sua convidada que aqui, no nosso lago, se filmou a cena da passagem do Mar Vermelho com Charlton Heston e Yul Brynner”. E todos sorriram, dando vivas à imaginação. E a seguir veio o jantar entre espelhos. Só depois chegou a cálida e escura noite de New Orleans.
      Barbara disse que no dia seguinte partiríamos pelas margens do Mississippi, para irmos ao encontro dos dois forçados, antes que morressem à nossa espera nas páginas de Old Man entrelaçadas com as páginas das The Wild Palms. Eles ficariam lá, à nossa espera, atados ao chão por grandes bolas de ferro, se acaso não os fôssemos libertar. E depois, zut, pela estrada fora, até Oxford, esse local de invejas, onde nem no dia do funeral de Faulkner aquela gente fechou as lojas por mais de dez minutos. Era preciso irmos libertar tudo o que estivesse preso, arrecadar tudo o que estivesse extraviado, amar os homens que as mulheres tivessem recusado amar. E Barbara foi entrando nos bares. Mas não perdia a pose digna, nem a sobriedade, nem a memória, nem a alegria, nem o brilho dos olhos claros. Perto das duas da manhã, atravessámos o parque e as bandas tocavam ao desafio numa parada, como se fosse o início da noite. Eu tinha a ideia de que New Orleans vivia a orgia que eu sempre havia sonhado encontrar em qualquer parte do mundo, nenhum tormento, nenhuma dor, nada era mau, nada era pecaminoso, nada anunciava tristeza fosse de que natureza fosse. Restava embrenhar-me, no dia seguinte, ao longo das margens de Mississippi River. Aquela noite de sábado seria apenas uma noite de boémia preliminar antes de entrar na verdadeira morada. Então Barbara deu-me o seu braço.
      Deu-me o seu braço e sentámo-nos no balcão do vigésimo bar onde serviam bebidas crioulas de mistura indeslindável. Para ela, o mesmo copo longo de bebida branca, contendo lá dentro quatro cubos de gelo. Barbara estava tão sóbria como as figuras dos altares barrocos de Roma, Viena ou Varsóvia. Se alguma vez as madonas de Varsóvia viajassem para o Novo Mundo, e durante as viagens envelhecessem, os seus cabelos louros se fizessem pálidos e cinzentos, Barbara poderia ser uma delas. Barbara perguntou-me – “Bem vistas as coisas, falei-lhe de Faulkner, de Twain, de Tennessee, mas ainda não mencionei o meu autor particular. Acaso já ouviu falar de William Styron, o de A Escolha de Sofia? Pois devo dizer-lhe que eu fui amiga de Styron, Styron sentava-se nessa cadeira onde você está sentada. Styron e eu amámo-nos. Seja lúcida, compreenda, eu vivi aquela escolha, eu sou a própria Sofia. Pode não acreditar, mas eu sou ela mesma, eu passei por aquilo, eu tive de escolher entre um filho e uma filha. Eu dei a minha história ao Styron. Eu sou ela, tal como Styron me viu enquanto escrevia. Olhe bem para mim.”
       Eu olhava, sim, mas não sabia o que pensar. Barbara parecia-me tão verdadeira, tão lúcida, tão ciente do que estava a dizer, que eu só podia acreditar no que dizia. De facto, eu gostaria de ter lido o livro, mas não tinha tido ocasião. Sendo a produção norte-americana tão impressiva, tão premente, o reles consumidor não tem tempo para tudo, ou lê o livro, ou vê o filme. Eu tinha visto o filme, a face pílula do objeto, e de facto, a protagonista parecia-se com a mulher que estava na minha frente. Mas o que era verdade e o que era mentira? Eu própria não sabia. A música proveniente dos saxofones era tão intensa que quase não nos ouvíamos. Na palma da mão, um outro copo longo com uma bebida branca. Barbara bebia tanto que andava sempre cá e lá a caminho dos Ladies. No regresso da mansão branca, antes de sairmos pelo portão, ela tinha-se aliviado sobre a relva. Agora levantava-se mais uma vez e lá ia, atrás do balcão. Deixava o copo sobre a mesa. Seria o trigésimo copo daquele dia? Peguei no copo, andejei, os cubos tilintaram, provei. Provei uma segunda vez, e era água. Terceira vez, e era água. Pousei o copo ainda sem ter feito a síntese daquilo que se passava em torno de Barbara S. Moschovinski. Um homem veio lá de dentro e disse-me - “Ma’am, she’s telling you the truth, don ́t dout it”.
      Eu não duvidava. Barbara era um património da cidade, dos bares da cidade, das verdades e das mentiras de New Orleans. Pois o que vale uma cidade, se acaso não alimenta os mitos sobre os quais acorda todas as manhãs e se deita todas as tardes? Barbara fazia parte da mitologia do local e por acaso tinha vindo ao meu encontro. Já perto de Toulouse Street recomendou-me que estivesse preparada, no dia seguinte, às oito da manhã, para partirmos Luisiana fora, rumo ao estado do Mississippi, um olho no campo, o outro no rio. Mas eu sabia que no dia seguinte Barbara não viria nem às oito, nem às nove, nem às dez. Nunca mais viria. Ela receberia o pagamento que eu estava deixando no hotel, antes de subir ao quarto, e no dia seguinte, em vez de água pura, ela beberia álcool.
      É verdade que acabei por ir a Oxford, por visitar Ole Miss University, por andar pelos campos de Yoknapatawpha. Ao descer, julgo ter devolvido os forçados aos seus devidos lugares, isto é, aos lugares inexistentes de onde saem esses companheiros reais. Agora, penso que eles andaram comigo só para me conduzirem até ao denso mistério de Barbara. Mas não vos convido para esse mistério. Se forem a New Orleans, não queiram seguir os meus passos. Se forem a essa cidade, sigam tão só as instruções dos operadores turísticos. Fiquem pelo Natchez, pelos cantos das várias casas onde dizem que nasceu a canção The House of the Rising Sun, tomem as vossas bebidas crioulas, e amando as coisas mansas, regressem com o papo dos iphones cheio de imagens de riso e alegria, deixem- se de pessoas rios, deixem-se de coisas bravas.

Lisboa, 2007