José Viale Moutinho – A aldeia das pobres cobras

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO6

JOSÉ VIALE MOUTINHO

A aldeia das pobres cobras
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Ilustração de Fedra Santos

     Nas proximidades da aldeia havia uma ribeira triste onde apareciam cobras, as mais tristes cobras que há, as cobras da água. As cobras da água, diz-se na aldeia, não fazem mal a ninguém, sendo certo que onde houver cobras da água não há peixes, mas naquela ribeira, que corria entre os campos, mal cultivados uns e outros abandonados, e sob algumas lajes servindo de passagem em lugares estratégicos, as pessoas receavam e não levavam o gado a beber daquelas águas. Os pássaros, quantas vezes, eram alcançados pelas cobras, e tragados e viam-se as suas pequenas penas a boiar.

     - Ó senhor pai, as cobras da água também comem gente?

     O cavador, tolerante, sorria e pensava noutras coisas, apoiando no peito o cabo da enxada. Porém, mesmo na dúvida, as crianças atreviam-se junto da ribeira, procuravam ver as pobres cobras e lançavam-lhes calhaus com toda a força dos seus bracinhos, mas a água protegia as cobras e estas riam-se das expressões furiosas do rapazio e ansiavam que um se precipitasse na ribeira para o poderem envolver e, entre todas, chuparem-lhes o sangue. Depois que dissessem se eram inofensivas. Mas o professor ensinara-os bem na arte daquela guerra em que não havia vencidos, muito menos vencedores. Pobres cobras, pobres cobras, diziam e voltavam a dizer os rapazinhos da aldeia, descalços, artilhados com os calhaus e os olhos postos na água, espreitando entre as ervas alta, a ver se viam movimento de cobras. Nunca haviam conseguido matar nenhuma, embora, entre eles, houvesse dois ou três mentirosos que juravam o contrário, mas sempre em inacreditáveis aventuras solitárias. E nunca conseguiam exibir o animal morto. Nunca. Nem os pais, que nisso pensavam quando cavavam, quanto mais não fosse para afastarem outros pensamentos mais perturbadores. Quais? A necessidade que tinham de ir dali para longe em busca de trabalho. Os berros do patrão, por exemplo, as trapaças no jogo, as mãos cheias de coisa nenhuma quando abriam a arca ou remexiam a tulha, sempre com os olhos postos no nada. Ah, se pudessem meter-se a caminho das araganças!

 

     Por trás da taberna havia uma arrecadação fechada com um cadeado bastante oxidado. Ali só entrava o velho Patriarca, um homem alto, ainda bastante forte, com muita vida vivida, que se fechava durante horas e, quem escutasse de ouvido encostado à porta, aperceber-se-ia de estranhos ruídos. Uns diziam que ele construía uma máquina de voar, outros um triciclo a motor, outros que reabilitava uma velha lambreta, outros ainda que queria fazer uma máquina que fosse fogão no inverno e frigorifico no verão. Faziam-lhe insistentes perguntas sobre o que ali tinha, mas ele não respondia, apenas se ria e afastava de si os curiosos. E, certa vez, interrogado com rispidez por uma patrulha da Guarda, que descera à aldeia, dera uma espécie de explicação ainda mais vaga:

     - Na verdade, saibam os senhores, trata-se de uma determinação, algo que vem de trás. Direi que é uma espécie de obstinação no encontrar de uma embocadura.

     Afastou-se dos guardas e estes ficaram a mastigar aquelas palavras, com os polegares metidos na alça da espingarda ao ombro. Só quando, daí a pouco, o procuraram para tentar esclarecer o enigma em que se convertera o que inicialmente lhes parecera uma resposta pronta à pergunta capciosamente formulada, não o encontraram na aldeia e toda a gente lhes dizia que ele saíra em diversas direcções. Ninguém explicou aos guardas que ele se encontrava com uns rapazinhos junto da ribeira, a espiar as cobras. Estava até preocupado porque um deles tinha feito a pergunta:

     - Ouça lá, tio, as cobras comem-se?
     - É assim tanta a fome em tua casa, moço?

     Os olhares encontraram-se, mas o rapazinho, como resposta, tirou do bolso uma côdea de pão e começou a mordê-la com vagar. O velho Patriarca ria-se e afagava- lhe os cabelos, mas os olhares dos outros estavam, inquietos, à procura das cobras da água.

 

     Da varanda de minha casa vejo a encosta de um monte coroado pelo Penedo Branco, um fenómeno da natureza. Um raio, dizem, há muitos anos, que abriu o céu e tornou arredondada e alva como um ovo uma pedra disforme e enegrecida pelos tempos que todas as trovoadas tinham respeitado. Ninguém se atrevia a tocar- lhe e ali ficara como um desafio ao equilíbrio, apenas apoiada por um ponto, fazendo recear aos povos que um dia rebolasse por ali abaixo, pelo que ninguém se atrevia a construir casas ou barracos na sua suposta linha de queda. O velho da oficina tinha um desenho a lápis na parede a prever como seria.

     - Se um dia aquele Penedo Branco cair cá em baixo e se quebrar, ides ver…
     - O que vamos ver?

     O homem que bebia o resto da malga de vinho, respondia, de olhos baixos, num sussurro:

     - Quebra-se o cascarão e sai um pássaro…
     - Que pássaro?
     - O pássaro, será um pássaro como daqueles antigos, de antes do Diluvio Universal…
     - E depois?
     - Não faço ideia,,, Ninguém pode fazer a mínima ideia… Mas nada de bom será. Esta aldeia será riscada do mapa…

     O outro pensou um bocado e trocou um olhar com o taberneiro. Depois falou muito vagarosamente:

     - Ainda domingo passado parou aí um carro com gente de longe e abriram um mapa. Era gente que andava perdida e queria ir para a Cabreira e não conseguia localizar aqui a aldeia. Procurámos todos no mapa, foi preciso um guarda ali do subposto trazer um mapa militar porque no mapa das estradas não estava assinalada a nossa aldeia, só a sede do concelho. Nem a estrada que liga à estrada de,,,

     - Foi no domingo?

     O velho Patriarca coçava a barba de dois dias.

     - Já cá não estão, então é porque encontraram caminho para sair daqui, e encontra-se o caso arrumado.

     Todos assentiram com movimentos de cabeça.

 

     Da varanda ouvi ladrar os cães em vários sítios. E um sino que tocava a mortes.

 

     Na oficina, aquela que que eu disse que fica por trás da taberna, está em construção uma escavadora cujos problemas se poderiam resolver com conhecimentos que aquele velho, mesmo carregado de boa vontade, não tem. Depois, parece utópico o seu desejo de escavar o fundo da ribeira de modo a encontrar outros caminhos, ou seja túneis, para a salvação dos homens. É que houve tempos em que desta aldeia se emigrou muito, mas os homens sofriam como clandestinos, e a ideia era encontrar-se um caminho no fundo do curso da água que conduzisse a outros países onde dessem trabalho sem sofrimento. E chegar lá de modo engenhoso. Mas, ele acabaria por convencer-se que a escavadora nunca poderia substituir uma máquina para voar.

     No entanto, em dada altura, o velho Patriarca, como que descobriu a pólvora.

 

     Daqui da varanda, sentado numa cadeira de verga, embrulhado numa manta, vejo o pedaço do mundo que me cabe, e a gente da aldeia aponta-me como O Doente, dizem uns aos outros que o senhor professor veio para cá morrer, que só se poderá salvar com um remédio feito à base de um produto extraído das cobras da água. Mas eles, na taberna, onde se sabe tudo, riem-se até dos seus, mas riem-se com a mais miserável das crueldades. Querem saber? Pois há um homem que padece dessa doença horrorosa, a Parkinson, que lhe faz tremer constantemente as mãos, e todos dizem que ele é tocador de guitarra mas empenhou-a em hora aziaga!

 

     A ideia foi-se esvaziando, mas muitos dos que saíam não chegavam ao destino, pois eram presos na fronteira, onde tentavam passar sem que dessem por eles. Porém, caçavam-nos. E eles lembravam-se das cobras escorregadias. E queriam ser escorregadios como as cobras da água. Mas também sabiam que na água elas eram mais escorregadias que em terra. E quando eles se sentiam perseguidos buscavam cursos de água e só viam urzes e silvas na escuridão das noites raianas. E sentiam as balas impiedosas passarem perto ou cravarem-se-lhes nos corpos e os gritos dos guardas. E isto assim aconteceu até que um dia, um dos clandestinos, deitado no chão, ouviu que na profundidade da terra, havia gente que andava a passo e falava, contando coisas triviais. E como os que corriam pelo monte fugindo aos guardas fronteiriços sentiam que aqueles não passavam os mesmos perigos volviam para trás dispostos a indagar o que acontecia ali porque, estavam certos, existia a solução. Deveria estar nas mãos do velho Patriarca da oficina por trás da taberna, e assim, de facto, acontecia,

 

     Parecia dispor de pouco tempo e guardar uma certa frugalidade. O velho Patriarca tomava o seu café fraco ao balcão, ante os olhares dos outros homens que bebiam malgas de vinho. Nenhum era tão alto como ele, nem tinha os ombros tão largos e afastavam- -se para que ele pudesse pousar o chapéu castanho a seu lado. Tinham-lhe um infinito respeito, mas não se atreviam a acompanhá-lo até à porta da oficina, a alimentar grandes conversas com ele. Ouviam tudo o que ele se dispunha a dizer, mas não o interrogavam, mostravam-lhes os relógios avariados e admiravam-se como aquelas mãos grandes, de dedos grossos, conseguiam mexer nos pequenos aparelhos e engrenagens, pondo-os a funcionar em pouco tempo, ao som de uma música assobiada, inimitável. Agradeciam-lhe muito e ele limitava-se a sorrir e a guardar no bolso do colete uma diminuta chave de fendas, que lhe aparecia nas mãos durante a reparação.

- Já apanhou alguma cobra da água?

A pergunta soou como uma provocação e andou dentro da taberna, de um lado para o outro sem se saber a quem pertencia. E tinha sido um jogador de dominó, que não encontrava parceiros. Fizera a pergunta e arrependera- se logo. Olhavam-no com censura os que sabiam que fora ele. O velho Patriarca saíra, a caminho da oficina. A sua misteriosa escavadora abrira um subterrâneo fantástico até à fronteira. Ultrapassara serras e rios e campos e vinhas, dezenas de homens e mulheres andavam a caminho de outros países em busca de melhor sorte e mandavam recados pela mesma via, indicações de oportunidades, que o velho Patriarca, incapaz de revelar segredos, fazia circular por quem devia, sangrando o país do medo e da miséria, salvando os seus.

 

- Aprendi tudo o que sei com as cobras da água e queriam eles que as matasse ou os ensinasse a apanhá- -las – disse-me há pouco o velho Patriarca, sentado comigo à lareira, aqui em minha casa. Eu tinha-lhe pedido que viesse consertar-me o relógio de pesos que trouxera comigo, uma peça de família.

     - Tudo?

     - Sobretudo a determinação.

     Como lesse nos meus olhos qualquer perplexidade. Explicou:

     - Quando os rapazes atiram pedras às cobras, elas afundam-se mais na água e as pedras perdem a força e não lhes fazem mal.

     Depois calou-se e ficámos ambos a contemplar as chamas da madeira a arder. Assim, até que o relógio deu as seis badaladas. Nesse momento ergui-me e disse-lhe:

     - Vou fazer café.

     E o velho Patriarca recomendou:

     - Fraco, fraco, se faz favor.

     E enquanto eu ligava a cafeteira eléctrica, ele tirou dos bolsos duas mãos-cheias de papéis e comentou:

     - Tenho de pôr isto em ordem. Este pessoal quer passar todo para fora, Devem ser uns trinta e tal. Imagine que até há um homem de sessenta e tal anos! Diz que está farto disto. Ou vai ou se pendura numa oliveira, lá na terra dele.

     - Numa oliveira?

     - Explica que nessa oliveira já se enforcou o pai e outras pessoas da família.

Porto, 27 de Dezembro de 2015.