José Luís Peixoto – As Rainhas

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO3

JOSÉ LUÍS PEIXOTO

GALVEIAS, 1974


AS RAINHAS


As nádegas da rainha, expostas no centro do quarto, estavam cobertas de picadas de melga. A aia estava perplexa. A rainha levantou o resto da camisa de noite, tirou-a pela cabeça, e ficou nua. As melgas tinham-lhe marcado o corpo todo, gostavam de sangue doce. Ao longe, cães a ladrar, restos de fogueiras e o início da manhã. Era Agosto e, por isso, o sol nascia logo vivo, feito. Enquanto a aia se aproximava com uma bacia cheia de água, a rainha era como uma estátua de pernas grossas. Estava grávida pela terceira vez, mas não tinha medo. Agachada, a aia molhava um pano na água quente e aplicava-o sobre as picadas de melga. Quando fechava os olhos, o corpo da rainha era uma chaga inteira de comichão. Havia o som da água que escorria do pano para dentro da bacia, e era como se a comichão fosse queimada em pontos escolhidos.
      Não entrava qualquer aragem pela janela aberta. Rainha de Leão e Castela, consorte do príncipe herdeiro da coroa de Portugal, crivada de picadas de melgas. A aia chamou-a, disse o seu nome, Constança, e perguntou se estava a aleijá-la. Nessa resposta breve, Constança não teve voz de rainha. Por causa dessa mesma dor, não prestou atenção ao crescendo de pequenos sons vindos do pátio, pedaços de gargalhadas, interjeições interrompidas, que antecederam o ajuntamento dos homens para a caçada. O último a chegar foi Pedro e, mal chegou, foi ele próprio que os conduziu. Aqueles eram os melhores cavalos do reino, os exemplares mais puros, mas pareciam desperdiçados. Quanta caça poderiam encontrar numa manhã já alta de Agosto? Constança não considerava sequer esta pergunta. O marido aparecia e desaparecia e, sobre isso, tentava adivinhar pouco, aceitava as escolhas do tempo, não acreditava no entendimento absoluto dos maridos. Os homens eram de outra espécie, como os lobos, ou as melgas.
      Constança já tinha visto muito, tinha vinte e sete anos. Quando descia as pálpebras sobre os olhos era de maneira sofrida. As razões para esse peso acumulavam-se dentro dela e eram parte da razão para não pensar nas caçadas do marido ou no entusiasmo dos homens. Quando lhe acontecia dizer a palavra ou referir-se vagamente a isso, imaginava as caçadas como repentes em que a violência explodia. Por exemplo, Pedro e os outros homens iam a galopar, o ritmo do galope e, depois, de repente, lançavam-se sobre um veado, trespassavam-no com setas e deixavam os cães arrojá-lo até ficar com o pêlo coberto de sangue misturado com terra. Esta era a ideia vaga de Constança acerca das caçadas, um assunto do seu mais remoto interesse. Há muito tempo que abandonara a ilusão de compreender, ainda que pouco, ainda que quase nada, as atitudes e os humores do seu marido. Pedro podia ser um homem diferente de manhã, se falava alto, rodeado de cavaleiros da sua idade; à tarde, se lhe chegavam más notícias; à noite, se esvaziava dois, três jarros de vinho. Às vezes, Constança passava dias à espera do momento certo para comunicar-lhe qualquer detalhe. Então, podia dirigir-se ao homem que falava alto, rodeado de cavaleiros da sua idade, e ficava surpreendida quando lhe respondia o homem a quem chegavam más notícias. Noutras ocasiões, com cautela, dirigia-se ao homem a quem chegavam más notícias e, para sua surpresa, respondia-lhe o homem que esvaziara vários jarros de vinho, ou o homem que falava alto, ou o homem que olhava para ela mas não a via.
      A rainha estava já na cama outra vez, sentada, tapada com um lençol até ao pescoço. Alguém bateu à porta do quarto com a palma da mão, Constança e a aia souberam logo quem era. Sem esperar autorização, Inês entrou. As notícias atravessavam até as paredes mais grossas, as notícias andavam pelos corredores à procura de alguém para conversar. Inês, com a mão pousada sobre o peito, como se estivesse aflita, disse que, ao saber da indisposição, tinha vindo logo ver o que se passava. Inês compôs um discurso sobre a ruindade das melgas, bicho alheio a Deus. Essas palavras, somadas aos lençóis frescos e ao apaziguamento das queimaduras, trouxeram calma ao rosto de Constança. Ao apreciar a pronúncia galega, escoita, escoita, recordava os motivos da amizade que alimentara por Inês. Essas eram memórias anteriores à viagem. Seria incapaz de esquecer. Durante os dias da viagem, logo atrás dos cavalos que se esforçavam carregados de albardas, uma fortuna de roupas e objectos, seguiam as carruagens. Constança, a quem prestavam todos os cuidados, ia rodeada pelas suas aias preferidas. Ao seu lado, estava sentada Inês. Nas horas melhores da viagem, as damas riam-se muito dos solavancos mais fundos, chegavam a dar cabeçadas no tecto forrado a tecido, chegavam a cair do pequeno banco almofadado e a ficar de pernas para o ar no meio da carruagem. Nas horas mais difíceis, cheias de ânsias, não falavam, viam tudo muito amarelo, tinham suores e vomitavam pela janela da carruagem ou à sombra de grandes árvores antigas.
      A aia fechou o rosto a partir do momento em que Inês entrou. Quando pediu água, a aia fingiu não ouvir. Por sua vez, Inês fingiu não reparar que as suas palavras tinham ficado sem resposta, suspensas, como se não tivessem existido e como se fossem a única coisa que existia. Sentada na cama, Constança estava por detrás do lençol, quase escondida, tinha as pernas abertas, a barriga a formar um monte bicudo, era menino de certeza, e não se esperava que dissesse nada. Talvez por isso, Inês continuou a falar, escolheu assuntos simples, banais. A rainha fixou-se num ponto do seu rosto, a forma das sobrancelhas. Constança era tímida, gentil, mas, no seu íntimo, já tinha chamado puta a Inês bastas vezes. No início, logo depois do casamento, pareceu-lhe que dividiam uma sorte. Constança sabia bem a maneira como Pedro irrompia pelo seu corpo, como o desarrumava e o desfazia. Na presença de Inês, esse conhecimento era uma cumplicidade dorida que partilhavam. Depois, aos poucos, sob a atenção de Pedro, o olhar de Inês foi-se modificando. Constança quis perdoar-lhe, desculpou-a com a idade, desculpou-a com a influência dos irmãos, peludos e mal lavados, mas os meses passaram e foi deixando de encontrar razões para justificar tanta soberba.
      Por todo o corpo, nos refegos das pernas, a comichão das picadas de melga reacendia-se. Nesses primeiros meses, apesar de seguir cada gesto de Inês, o príncipe passava o serão sentado apenas ao lado de Constança. Quando ficou grávida pela primeira vez, já mulher, sentiu-se menina. Nos seus sonhos, chegou a crer que Pedro a preferiria. Sozinha, naquele mesmo quarto onde se desensofria com comichão, a rainha planeou convidar Inês para madrinha do seu filho. Talvez assim, pareceu-lhe. O menino chegou a nascer, a
imagem do parto, e chegou a ser menino, a chorar, a abrir muito os olhos, chegou a ter um nome, Luís. E morreu após uma semana, morto, o seu berço rodeado de bispos. Essa morte era como a recordação da sua própria morte, era negra, imprecisa, desfigurada. Havia vezes em que sentia raiva, ódio cego, pelos irmãos de Inês, imaginava-os despedaçados e, ao serão, passava muito tempo a olhar-lhes para as mãos brutas. Nessas vezes, Inês sentava-se já ao lado do príncipe, com os braços a tocarem-se, com as suas pernas coladas.
      A partir dessa morte, Constança seria capaz de alegrar-se com os campos, de apreciar um jorro de água fresca sobre o rosto, mas era como se estivesse coberta por uma campânula. O mesmo mundo que a sujeitava, não a conseguia tocar efectivamente. O marido entrava no quarto, virava-a, rebentava-a por dentro e ia-se embora. Constança lavava-se. Não se interrompia. Deus teria definido um qualquer propósito para a sua história, não sabia ainda qual era, assistiria ao seu desenvolvimento. Lá fora, a chegada dos homens marcava o fim da manhã. Teriam ido caçar? Dentro da barriga, o filho mexeu-se, levantou o lençol. Inês parou o que estava a dizer a meio de uma frase. A rainha temeu que o veneno das melgas se estivesse a misturar com o sangue do filho, mas não fez nada, não disse nada, deixou que passasse tempo. Como num instante que durasse mil anos, as mulheres permaneceram caladas, apenas a olharem para a barriga grávida da rainha.