João de Melo – A morada do senhor Deus Dei

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO1

JOÃO DE MELO

A MORADA DO SENHOR DEUS DEI

(Ilha de São Miguel, Açores, 1949), sobretudo ficcionista, mas também autor de uma obra variada, que inclui o ensaio, a poesia e outras formas de expressão literária. Como narrador, o seu romance Gente Feliz com Lágrimas, 1988 (tradução espanhola de 2001), obteve cinco distinções, entre as quais o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores e o Prémio Eça de Queirós da Cidade de Lisboa. Tem vários títulos traduzidos em Espanha, entre os quais Mi mundo no es de este reino (2007) e Mar de Madrid (2009).

Recordo nitidamente esse grave e melancólico dia de Outono em que ele desceu das alturas e veio anunciarme o fim das minhas memórias. Fazia frio, era Novembro, eu tinha febre. Entrara comigo um torpor, um esvaimento, um marasmo de cabeça - e aconteceu que uma dormência, ao mesmo tempo doce e fatal, acabou por apoderar-se do meu corpo já meio apagado das suas forças vitais. Por mais de uma vez, o sono da morte esteve a pontos de levar-me consigo. Mas, tendo aberto os olhos a um último aceno da luz esfriada do dia, e pressentindo eu a chegada de mais um dos muitos pesadelos que então me vinham atormentando o juízo, ainda tentei erguer-me de entre os lençóis e regressar ao meu ponto de fuga. Em vão. Faleceram-me as forças. Varreu-seme do espírito para fora todo o ânimo que ainda me restava. Apesar de me sentir acordado, a minha consciência já não conseguia apoderar-se da realidade. Os seres e as coisas eram formas esbatidas, postas à distância dos meus sentidos. A mente inesperadamente confusa, a vista turva, um desconcerto nas batidas extenuadas do coração. Lânguido, o mundo ia-se pouco a pouco esvaindo e desvanecendo em volta. Sim, é um facto: eu devia estar mesmo a despedir-me para sempre das minhas queridas memórias…

Nesses breves instantes de ausência, uma parte de mim evadia-se até àquela região do espírito onde dizem que o silêncio é definitivamente escuro e infinito; a outra parte do meu ser tentava lançar ferro, ancorar tenazmente no mar existencial que em nós comanda os últimos instintos. Até que aconteceu eu deixar cair molemente os braços, numa desistência, desprender-me das amarras do dia e ver-me erguido no ar por uma espécie de vento cavado - e depois já não haver nenhum modo de regresso à minha própria e infeliz pessoa.

Posso apenas imaginar, mas não garantir, que ele, o anjo, descera até mim vindo dos mais distantes céus - que é de onde provêm, creio eu, os belos e silenciosos mensageiros do crepúsculo. Talvez tivesse baixado do alto do castanheiro centenário que dera o nome à quinta da minha família, e cujos galhos, com a grossura de troncos, teciam sobre a nossa cabeça (à altura das janelas de guilhotina, dando vista para a serra) uma teia de ramalhais muito entrelaçados. Um raio pálido e cru de luz solar, coado por essa rede vegetal que o castanheiro fora cerzindo perante a fachada do edifício, entrava no meu quarto de dormir. A luz como que espargiu sobre o meu rosto cansado, de doente e de condenado, um breve alento de vida, pela qual tudo em mim suspirava. Pura ilusão! Fosse dentro da minha alma ou ao meu redor, o certo é que as coisas pareciam únicas e estarem todas a extinguir-se: a luz frágil do dia, os sons que dantes chegavam até ali, os movimentos e as vozes dentro de casa, os meus próprios sentimentos de abandono e despedida.

De mansinho, no tal suspiro segredado ao ouvido, a sua voz de feltro disse-me, três vezes seguidas:

“Abre os olhos, abre os olhos, abre os olhos”.

E que olhasse para ele com toda a atenção; e escutasse bem o que tinha a dizer-me. Abri-os com esforço. Vi o anjo pairar acima, a coisa de um metro da minha cabeça, planando no ar como uma enorme ave suspensa por um fio, de borco por cima de mim e com as grandes asas abertas rente ao tecto do quarto. Era, por sinal, um moço de muito bom parecer: olhos azuis e higiénicos, o rosto um tanto bojudo e uma pele sedosa e rosada, de bebé. E como me pareceu neutra e nítida - e sobretudo sólida e positiva, acrescente-se - a voz do meu anjo! Nunca o vira antes. Mas não erro se disser que logo despertou em mim um sentimento de consanguinidade com ele. Sendo embora um ser há muito ausente da minha fé, e por isso um estranho, inspirou-me uma ideia que nunca antes experimentara: a da minha continuidade corporal nele, e a dele em mim. Senti-o com uma tal convicção familiar, que cheguei a presumir sermos ambos o verso e o reverso da mesma pessoa, mas em duplo - passe o paradoxo.

Uma tal nitidez, vinda assim de surpresa e por iluminação, a ponto de me parecer sobrenatural, só me acontecera em sonhos (que era quando mais e melhor me ocorria essa tal clarividência), e nunca em estado de vigília normal. De facto, apenas nos sonhos as coisas, os ruídos, as vozes e mesmo os sentimentos se carregam de cores e matizes que não existem; que em calhando nunca existiram. Podia estar portanto apenas a sonhar com anjos e não na presença deles, nem a ouvi-los com a atenção da minha melhor obediência espiritual. Nunca se sabe por cima de que limites passa a realidade física da vida; nem como aos olhos dos humanos se mostra ou expõe a ágil figura dos seres divinos que representam a misericórdia de Deus no tão precário mundo dos vivos.

Devo garantir, isso sim, que em nenhum momento me assustei com a presença dele, sabendo embora que dessa vez o anjo-da-guarda não viera para proteger-me, mas sim para entregar o pobre de mim ao colo ou aos braços da horrenda morte. Não obstante isso, a serenidade daquele rosto só podia transmitir-me paz e confiança. Aliás, o anjo nunca se prestou a nenhuma discrição para comigo; e não usou de modéstia nem de qualquer cerimónia. Apresentouse- me com uns ares de pessoa imponente, alardeando modos altivos, próprios talvez só de uma qualquer desconhecida majestade, todo ele iluminado pelas sete cores das caudas de pavão, da aurora e do arco-íris.

Podia tratar-se de um anjo um tanto ou quanto excepcional, um ser ao mesmo tempo divino e demoníaco, visto à luz do destino que me esperava, ou tão-só fruto da mais pura imaginação. A princípio, o que me intrigou no enigma dele foi não ser capaz de adivinhar se viera para me levar ao Paraíso, ao Limbo ou ao Inferno, ou mesmo ao benévolo Purgatório, pois diz-se que os anjos e arcanjos tanto servem de mensageiros a Deus como ao Diabo. Parecem-se tanto entre si, que não há, que eu saiba, qualquer aparente distinção entre uns e outros desses figurões.

Com efeito, estava muito habituado aos anjos em geral. Lidara com eles desde os bancos da catequese, na igreja paroquial do Senhor dos Ausentes, e sobretudo desde quando fora de asas e auréola na procissão do domingo de Pentecostes. Depois continuei a estudá-los pela vida fora, pretendendo que passassem a fazer parte de mim e me fossem não só fiéis e solícitos como cães, mas também familiares ao corpo e à espiritualidade. O meu interesse por eles permaneceu intacto até mesmo depois de me tornar agnóstico e ateu. Sendo ainda um bebé, fora graças ao anjo-daguarda que saíra ileso do acidente de viação que vitimou o meu pai e a minha avó Edevires; depois, aí pelos meus dezasseis anos, fechado entre os altos muros de um colégio interno (onde o silêncio era tão frio e tão liso como as lajes), foi pelo Anjo da Consciência que me rendi à grande dor de alma a que se chama Dúvida. Embrulhado nos seus dilemas e angústias, acabei por decidir que Deus afinal não existia, nunca existira. Essa decisão trouxe um estupendo alívio à minha consciência atormentada pelas crises de fé. Não estava em condições de compreender um mundo tão injusto e cruel, tão cheio de fomes e de outros bem piores sofrimentos, mas ainda assim presidido por esse Deus do espírito, um ente misterioso que precisava de estar ausente para nele crerem os homens e o aceitarem como o único criador da vida e do universo. Mais tarde, no dia em que a minha primeira namorada me trocou por um capitão de Infantaria que regressara da guerra ferido e medalhado como herói, foi sobretudo graças ao Anjo do Louco Amor que pude voltar a crer na sinceridade das tão belas e amadas mulheres, e manter o meu desejo de continuar a vivê-las com ardor e devoção, como dantes.

Já por aqui se vê que tenho grandes dívidas de gratidão para com os anjos.

Muitos anos passados, estando já na idade da reforma, com vontade de ocupar o tempo e de reencontrar um sentido final para a minha existência, pus-me a desenhar os pássaros e as nuvens, os peixes e os seres imaginários que habitam os sonhos, os sismos e os ciclones. Decidi pôr-me também a desenhar anjos. Fazia-o com uma pura ironia religiosa, é claro, pois já nesse tempo não acreditava neles. (Ou talvez sim, mas só na medida em que ansiava por ver confirmar-se a meus olhos a sua existência real, nunca o saberei ao certo.)

Nesses meus apurados e luminosos desenhos, alguns deles eram tão belos e augustos como o foram outrora os guerreiros de Esparta; outros tinham um ar mais taciturno, conforme o que deles diziam as mitologias do Ocidente. Mas todos carregavam no corpo e no olhar o essencial do que vinha nos livros de Escatologia. O Anjo da Preguiça, por exemplo, era um ser pançudo e esquálido. Possuía o desmazelo de um taberneiro ébrio, com olhos sanguíneos e estremunhados num rosto tão rubro como o vinho. Espalmada, a sua mão direita recebia em peso, num desleixo, o volume de uma cabeça que nela se reclinava, como se estivesse permanentemente pousada numa bandeja; um dos braços, oscilante, esforçava-se por equilibrá-lo no ar, num tem-te e não caias que a todo o momento ameaçava desmoronar-se do alto do próprio sono e da sua lazeira. O Anjo da Fadiga, apesar de mole e sombrio, contrapunha ao cansaço do rosto a dignidade profética do tempo que flui à luz dourada da aurora. O do Orvalho suava por todos os poros, fizesse frio ou calor, sendo-me inevitável compará-lo a uma máquina de fluidos; o do Crepúsculo lembrava um melro pousado, ao anoitecer, na orla sombria de um bosque, com uns olhos de filósofo maldito, guardando-se das presenças indesejáveis da noite. E chorava com uma voz de bebé enfurecido. Mas nunca pudera imaginar que os anjos de fantasia que eu noutros tempos desenhava e pintava fossem afinal tão radiosos como o meu (este a que me venho referindo), no dia em que ele veio à terra anunciar-me o fim das minhas memórias.

Do mais de que me recordo, tudo permanece distante e difuso como a bruma de um dia baço e húmido a passar sobre a erva. A dor dos sonhos contrariados. A solidão sem remédio de quem olha em frente mas já não conhece a luz, nem os objectos familiares, nem as pessoas que se movem, aflitas, à sua volta. Aquela era a nostalgia do amor no fim de todas as estações da vida; e os motivos naturais por que cada um de nós nasce, vive e de repente morre e logo tudo se acaba. Coisas de anjos, enfim, que não é nada fácil descrever sem as termos vivido primeiro à nossa maneira!

Porém, do modo como chegou a minha hora, e eu a recebi com alegria e com toda a naturalidade deste mundo - de braços abertos, exposto ao poder sem apelo da sua vontade -, ah, disso sim, recordo-me lindamente. Chegou, e pronto: abri os braços, estendi-os na direcção do anjo. Esperei que fosse ele a acolher-me no seu amplexo sagrado; pelo contrário, recebi-o eu no abraço frouxo do meu colo. Só então soube que o fazia porque a minha hora, a hora de me desprender dos frágeis estames da vida, havia por fim chegado. Porque eu acabara de cumprir-me neste mundo. Não havia portanto nada a opor. Desde que a vida e o mundo existem, nunca ninguém conseguiu fugir à sua hora, nem regressar depois para contar como foi ter estado do “lado de lá”.

Sei que perdi o medo que antes experimentava à simples ideia ou imagem da minha morte. Agora o que há em mim é uma paz relaxada, um estado de espírito definitivamente conformado e até indiferente. Entreguei-me de bom grado, por isso, nas mãos do meu anjo, tal qual um guerreiro vencido e honrado que no fim da batalha depõe aos pés do senhor dos exércitos vencedores os louros e os troféus da vitória. Todo eu me completei nesse abraço definitivo, fundindo-me irresistivelmente com o anjo, para ser tal e qual como ele.

Tudo, porém, não durou mais do que um instante. Despegando-se de mim, como se de repente também ele tivesse despertado de algum torpor, o anjo tomou-me pelos braços e puxou-me todo para si, de maneira a que eu tombasse de borco por cima do seu ombro. Envolveu-me o tronco com um só braço, muito musculado. Com o outro, fez uma cadeirinha para que eu nela me sentasse. Depois, elevando-se lentamente no ar, começou a subir pelo espaço fora, a subir cada vez mais depressa, numa aceleração continuada, indo de nuvem em nuvem, atravessando espaços brancos e azuis, aragens, ventos, fumos e tempestades divinas, em direcção ao Céu infinito. E ali íamos nós os dois, abraçados, felizes, ao encontro do Paraíso. O meu corpo viveu essa viagem de glória como se fora uma graça honestamente merecida e há muito prometida, mas que só nesse dia podia ser-me concedida. Quanto ao meu espírito, não sei explicar bem o que com ele se passou. E, ainda que o soubesse, não poderia estar agora, aqui, a revelá-lo aos meus amados leitores. Sabei que há coisas, segredos, mistérios que entram para sempre no nosso código de honra - o qual, na hora solene da morte, parte connosco para a talvez impropriamente chamada dimensão incomensurável do Além.

Porque o Além não é uma distância, nem um lugar que possa ser contido entre o início e o fim de uma determinada dimensão espacial - mas antes um desejo ou uma ideia sobre a continuidade da vida que em cada um de nós se volta na direcção do infinito. Dele, Além, melhor se diria ser como uma estação a que nunca se chega, e de onde também não se pode nunca partir, porquanto tudo nela pertence ao fulgor da pura inexistência material.

De vez em quando, parava sobre uma nuvem aqui, e sobre outra nuvem mais acolá, para tomar fôlego, pois eram árduos os abismos que se nos deparavam na demanda do Céu. Quando pousava numa nuvem mais sólida e mais aplainada (todo a arfar da estafa), eu acordava e punha-me a olhar lá para baixo, a ver de cima o mundo que os vivos temporais habitavam. Via-os eu, mas não eles a mim. A Terra pareceu-me um habitáculo mesquinho e até miserável, cada vez mais evidente (não sei bem porquê) à medida que entre nós se consolidava a certeza dessa separação definitiva.

Ao fim de muito voar através do vazio sideral, lá chegámos nós à morada do senhor Deus Dei. Soube que era a morada d’Ele porque, às tantas, deparou-se-nos uma bocarra de luz escancarada, de onde saiu, a acolher-nos, a saudar-nos paternalmente, uma grande mão pré-histórica, de dedos ossudos e unhas nervosas. Logo um meio braço, trajado com hábito de frade, nos convidou, com um simples gesto, a entrar no Navio da Glória e a juntarmonos aos outros - àqueles muitos outros que lá dentro se moviam e removiam por entre arcos e espadas de luz, feixes de cores luminosas e suaves acordes de harpa. Quais sonâmbulos ou sonhadores, esses possessos divinos moviamse, lentos e preguiçosos - tão devagar, que mais pareciam imagens do que seres embalados pela suprema graça do Senhor. Vogavam numa espécie de dança dos sete mares e da perpétua harmonia, na qual repousam as águas sobrenaturais das lagoas ao luar ou sob palor das estrelas. Então uma voz retumbou pelos quatro cantos do Paraíso, como um trovão africano, a dizer que éramos bem-vindos à presença e à bem-aventurada e gloriosa morada do Eterno…

Tratava-se, não havia dúvida nenhuma, dos Justos do senhor Deus Dei. Só eles poderiam ser como ali se me figuraram: gordos, ternos, tranquilos, de uma cor rosada que atestava bem a saúde da felicidade e a boa coloração da santidade divina. Figuras bojudas, como as que adornam os quadros e os altares dos templos, irradiavam em volta uma serenidade deslumbrada e adormecida. Pareciam dormir, sonhar, reviver em êxtase. O sonho dos Justos aparentava o mais despojado de todos os gozos: um prazer deliciado e adormecido, um remanso, uma paz tão imponderável como uma levitação que os levasse sem destino pelo Além adiante, fora de todo o tempo e do espaço, a flutuar por ali, sempre a flutuar, sem ânsias nem angústia, apenas singrando no oceano da mais pura inexistência universal.

Foi no meio deles que o meu anjo por fim me largou.

Gostei logo do Paraíso. Uma pessoa tomava nele o espaço que muito bem lhe aprouvesse. Podia escolher entre ouvir a ténue música dos cânticos, as doces vozes do Além, ou chamar a si o repouso espiritual de um silêncio que parecia uma segregação do próprio Céu. Além disso, a gente punha-se inteiramente à vontade – navegando no ar, de papo para cima, sentado ou de pé conforme mais e melhor lhe aprouvesse. Notei que estava completamente nu entre os nus do Paraíso, ainda que não recordasse quando nem onde me haviam despido. Mas nem isso me causou qualquer sentimento de fragilidade ou de embaraço, pois depressa me apercebi de que a nudez era ali um estado colectivo natural. Fossem de homem ou mulher, os corpos tornavam-se indistintos, como que sublimados pelo instinto dos prazeres sagrados que não provinham nem da nudez nem da ideia de beleza da pele, e muito menos das funções do sexo de cada um. Veio-me, assim, a primeira ideia acerca do Paraíso: nele, a humanidade regressara ao princípio de si mesma, tornando-se de novo anterior à história que dela conhecemos – nua, inocente como os mitos ou os mistérios bíblicos da criação. Sexos e formas eram, aliás, coisas que nem sequer estavam por ali à vista. Tal como o grão se transforma em farinha e esta em pão, também os corpos se haviam convertido em espíritos. Eu passara a ser uma espécie de sombra de mim mesmo e como tal me movia entre outras sombras, esgueirando-me, entrando por elas dentro sem querer, fundindo-me com o vapor de água dessas nuvens humanas mas reaparecendo mais à frente, de novo na posse da minha individualidade. Lembrei-me da minha alma. Os seres que me rodeavam não podiam ser outra coisa, senão almas. Leitos, andores, navios aéreos repletos de almas. Porque só elas estariam dotadas do poder de entrar e sair do interior umas das outras, como acontece com as caixinhas chinesas, e de flutuar, de não precisar de asas para se erguerem do chão e voarem em grandes revoadas de almas, sendo ao mesmo tempo inconcretas e reais, como só os suspiros e os desejos do Além.

Tentei aplicar os sentidos à minha própria natureza, a ver se ela ainda existia em mim. E não a encontrei. Já não tinha cabeça nem tronco, nem ventre, nem braços nem pernas. No entanto, ainda podia pensar, suster a respiração, identificar os sons e os odores, ouvir o frémito ou a fragrância da passagem dos outros por mim, ver os sorrisos, os olhos sérios, a fisionomia de cada um. Como era isso possível, se afinal os espíritos não possuem olhos nem mãos nem olfacto? Houve um tempo em que eu acreditava na ressurreição da carne, é certo. Mas a minha antiga religião não admitia que isso ocorresse antes do fim do mundo e do Juízo Final. Apostava comigo que, se tentasse imitar o gesto de estender uma mão, logo outra mão tomaria a minha para me guiar através dos mistérios desconhecidos do Paraíso. Contudo persistia em mim um ser tímido que não se atrevia a fazer-se notar nem a praticar actos espontâneos. Bem pelo inverso, tentei passar despercebido, não viesse algum desses alarves que parecem ter família em toda a parte meter-se comigo e tornar-me vítima da sua extroversão. Eu entrara no Paraíso, estava bem de ver, mas queria fazê-lo a meu modo, ao meu ritmo, andando pelo meu próprio pé, conhecendo-o pouco a pouco e à medida da minha curiosidade. Sempre me habituara às situações imprevisíveis. Necessitava apenas de ganhar a confiança ou o favor de alguém, antes de lhe pedir que me levasse à presença do senhor Deus Dei.

Interessava-me conhecê-lo em pessoa, porque sempre fora o mito mais antigo, o mais belo e desejado aos olhos de todo o destino humano. Estando eu no meu perfeito juízo, queria ver como era Ele, o que pensava acerca de tudo e nada, e por que razão se ocultava tanto das guerras, fomes, tragédias e injustiças do mundo. Não é todos os dias que um pobre mortal goza do privilégio de pedir explicações ou de formular ao seu próprio criador perguntas para que nunca obtivera resposta ao longo de meia vida de fé, esperança e caridade na existência divina. Ora, a fé, a fé!, direis. Pois sim. Ganha-se, perde-se, volta-se a ganhá-la ou a perdê-la quando melhor nos convém. Não é mais do que um modo engenhoso de iludir a ausência, a angústia d’Ele na alma de um crente. Vale-nos de alguma coisa a nossa fé no Além?