Inês Pedrosa – As mais altas coisas

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO5

INÊS PEDROSA

As mais altas coisas

As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
HERBERTO HELDER

O mar não envelhece nem sofre com a recessão. O mar guarda o corpo da minha mãe. Por isso fugi dele durante tanto tempo. Agora já não sou filho, apenas um homem livre. Regressado a São Vicente, o peso da palavra liberdade cai-me sobre os ombros como um casaco de ferro –poder tudo, escolher uma parte, saber que nada importa. Em cada escolha apagamos um universo de possibilidades; aos cinquenta anos, sou perseguido pela multidão dos eus que não fui, que abandonei, que escondi no sótão dos sonhos. Um deles ficou aqui na Madeira, começou a sua carreira como recepcionista e acabou director de um hotel, casou-se, teve dois filhos e leva uma vida tranquila, com uma ou outra aventura de passagem que não abana a solidez da família. Outro viajou pelo mundo, sobreviveu de desenhos vendidos na rua até que foi descoberto por um galerista nova-iorquino que o tornou rico e famoso, e é agora um artista cosmopolita que namora com aspirantes a actrizes e manequins. Outro ainda fundou uma escola de surf aqui na ilha e vive como um Peter Pan sem vontade de crescer.
Nos últimos anos, a perseguição desses eus alternativos tornou-se insistente; a minha vida desagradava-me cada vez mais. Era director de arte numa agência de publicidade em Lisboa, trabalho progressivamente decepcionante. Quanto mais aumentava a crise, mais tínhamos que inventar para satisfazer clientes cada vez mais simplórios e exigentes. Fazia vinte propostas de cartaz, e o cliente acabava por escolher a primeira, que havia rejeitado de caras. Os clientes tinham, aliás, cada vez menos caras –cada folheto tinha de ser aprovado por uma fila interminável de cérebros, cada um mais fosco do que o anterior. O manda-chuva da agência declarava que vivíamos a era do regresso ao básico, mas parece-me que estamos já a viver numa sub-cave clandestina em que os últimos neurónios do básico são reduzidos a pó bruto. Fartei-me. Fiz contas e concluí que tinha amealhado o bastante para poder, finalmente, dedicar-me à minha arte, desde que vivesse com frugalidade. Fartei-me dos bólides topo de gama para impressionar essas mulheres que se impressionam com pouco, e que sempre foram as minhas favoritas. Falta de auto-estima, diria um discípulo do dr. Freud, se eu o frequentasse. Nunca acreditei nos méritos da psicanálise. De que me serve saber tudo sobre mim mesmo? De que me teria valido ter desenterrado a raiva contra a minha mãe suicida? O meu pai garantiu-me que ela escorregara num penhasco e caíra ao mar, mas nunca consegui acreditar nisso. Eles discutiam demasiado. Sei que, se a minha mãe gostasse suficientemente de mim, não teria morrido. Pelo sim pelo não, tratei de nunca mais me prender a ninguém. Devo à minha mãe essa abençoada liberdade.
Abro a porta da casa da minha infância. Custa a abrir, está perra. A madeira inchou e degradou-se com a humidade. É uma pequena casa branca de telha vermelha, com a pintura muito escalavrada, uma das últimas da vila. A palmeira do outro lado da rua continua igual. A casa tem um ar de abandono. Cheira a mofo; está fechada há mais de seis meses. Entra-se directamente para a sala, que é também cozinha. Havia uma parede a separá-las, mas os alemães que a alugaram deitaram-na abaixo, fazendo um balcão de madeira. O fogão de lenha é agora imediatamente visível quando se entra. Adorava ver a minha mãe fazer pão, a massa a levedar e a ficar tostada, o cheiro que se entranhava na casa como um sucedâneo de felicidade. Junto à janela, o velho piano vertical da minha mãe. Abro a tampa, dedilho algumas notas – estão metálicas, desafinadas. No corredor, imediatamente ao lado da cozinha, para aproveitar a canalização, a casa de banho, ainda com a banheira de latão de pés de dinossauro. Depois o quarto dos meus pais: o toucador com três espelhos com o banquinho no qual a minha mãe ficava horas, todos os dias, a pentear os seus longos cabelos dourados.
— Diz-me, filho: achas-me bonita?
— És a mais bonita do mundo inteiro, mamã.
O riso dela, cascata de floresta, um fiozinho fresco, inesperado.
A cama larga, alta, “estilo D. Maria”, como a minha mãe não se cansava de repetir. Na época quase ninguém ali tinha quartos “ de estilo”. A arca de cânfora, luxo anti-traça para guardar os abafos de Inverno. O meu pai repetia:
— Tens a mania do luxo, mulher.
A minha mãe fingia não ouvir. Por amor, desistira de uma possível carreira na música. Cantava, tocava piano, viera à Madeira no circuito dos cruzeiros e hotéis, encantara-se com a rudeza franca desse funcionário municipal que gostava de ter sido piloto de automóveis. Era um tempo em que as mulheres se entregavam ao amor como se a grandeza da vida precisasse de desespero para ser perfeita. A paisagem de São Vicente, presépio gigante lançado à beira-mar num vale remansoso entre montes de um verde profundo, luxuriante, terá ajudado ao fascínio. Apaixonou-se pela ideia de ser senhora de um pequeno paraíso, e acabou uma dona de casa igual às outras, ou diferente apenas no direito à ociosidade. Passava horas ao piano, tocando as partituras das suas antigas canções –mas cantava cada vez menos. Passava horas sentada no pequeno pátio das traseiras olhando para os farrapos de algodão que interrompiam o azul do céu, como se quisesse voar com eles. Inicialmente sentava-se na rua, do lado de fora da porta, mas o meu pai acusava-a de exibicionismo indecente. Só se enfurecia quando ele a acusava de fazer olhinhos a todos os homens da vila. Gritava-lhe:
— Não te admito. Estragaste-me a vida, não te chega? Suspeitas e faltas de respeito, não te admito.
Eu encolhia-me junto ao fogão de lenha, sentindo-me culpado por essa vida estragada. Pensava que, se o meu pai não a tivesse engaiolado e engravidado, a minha mãe poderia ter sido uma estrela de cinema como essas que eu via na televisão ou, muito de vez em quando, no cine-teatro no Funchal.
Quando se embriagava, o meu pai insultava-a. Chegou a dar-lhe uns bofetões.
Na parede sobre a cama, manchada pela humidade, o mesmo quadro com estrelícias bordado a lã pela minha mãe. Tem alguns fios caídos, como pétalas murchas. A minha avó paterna tinha sobre a cama uma pintura assustadora, com duas crianças no meio do breu e de uma ponte precária, sem princípio nem fim, guiadas por um anjo gigantesco, com asas de abutre, que lhes punha as mãos sobre os ombros –passei a infância a temer que as mãos pesadas do opíparo anjo desfizessem a ponte e as crianças. Demasiadas vezes sob as asas dos anjos se acoitam a cobardia e a vaidade, coisas com plumas que nos distraem da marca dos nossos pés sobre a terra comum.
Do meu quarto de adolescente quase nada resta. A cama de ferro foi substituída por um divã cheio de almofadas, encostado à parede. Ficou a cómoda de madeira clara, ao lado da qual está uma escrivaninha branca com estantes cheias de romances alemães, muito folheados. A um canto, cheio de teias de aranha, o meu velho cavalete.
Já que não pude despedir-me da minha mãe, não quis despedir-me do meu pai. Deixei-o com a minha madrasta quando fui estudar para Lisboa e nunca mais voltei. Desculpava-me com o medo dos aviões. Esse primeiro voo foi assombrado por uma tempestade tão violenta que nem um sumo as hospedeiras conseguiram servir-nos. Decidi que não voltaria a andar de avião, até porque desse modo evitava voltar a ver a madrasta que detestava. Era uma mulher morena, alta e voluntariosa, convencida de que o mundo se dobraria aos seus desejos. Os esforços que ela fazia para que eu a aceitasse só me levavam a desprezá-la com mais força. Tirou da casa todas as fotografias da minha mãe. O meu pai guardava uma na carteira, encontrei-a certa vez em que, sorrateiro, fui a meio da noite roubar-lhe uma nota para levar uma namorada a lanchar. Acossada, séria, com o olhar oficioso que todos nós exibimos nas fotografias-tipo-passe, a minha mãe parece uma presa condenada. Não sei porque é que o meu pai guardou este retrato dela. Talvez fosse o único que pudesse esconder. Ou talvez lhe fosse mais fácil esquecê-la através daquela imagem onde ela não estava.
Durante anos aluguei a casa, através de uma agência, a um casal alemão que, depois de reformado, decidira estabelecer-se na Madeira. Quando o meu pai morreu a minha madrasta resolveu voltar para a família, na Graciosa, nos Açores. Nove anos depois, o meu inquilino adoeceu com um cancro e o casal regressou a Munique, com esperança de que a medicina alemã lhe garantisse mais uns anos de vida. Vi nessa partida uma mensagem do destino, embora me gabe de não acreditar em mensagens do Além ou do Aquém; mas sabia que a minha relação estava no fim –a mais longa das minhas relações, quase cinco anos– e a conjunção da modorra conjugal com a desvalorização laboral (tinham-me cortado o salário pela terceira vez em três anos, e trabalhava cada vez mais horas em encomendas cada vez mais boçais) empurravam-me fortemente para as minhas origens. Que me prendia, de facto, a Lisboa? Ao cabo de trinta anos, a resposta era óbvia: nada. A Sílvia acusava-me de ser incapaz de entrega autêntica. Estava cansado dela. Tudo me cansava. Tudo se tornara demasiado previsível. Tinha a sensação de que aquela cidade que inicialmente tanto me fascinara tinha morrido dentro de mim. Como a minha mãe.
Escolhi a minha solidão. Na publicidade não se fazem amigos, ninguém tem tempo. Em criança, o tempo sobrava- -me tanto que quase me sufocava. Fala-se da infância como um período de tédio. No meu caso, a angústia era o sentimento dominante; parecia-me que o resto do mundo estava a avançar e a divertir-se e só eu estava ali parado, entre a escola e o recreio. Dizem que as ilhas enlouquecem, mas eu sinto que a ilha me tem salvado da loucura. Nos momentos piores, fechava os olhos e via o vale de São Vicente, o fiel e mutante azul do mar pintado pelos dedos delicados do sol. A ilha tem sido o meu amuleto, a minha única religião. A vertigem do primeiro beijo, roubado a uma menina de grandes olhos transparentes no cimo da torre da Capela do Alto do Pico.
— Vem comigo, vou mostrar-te as costas das nuvens.
Nessa tarde, uma neblina baixa dançava sobre o vale, afogando o sol. Aproveitei o cansaço e o atarantamento da menina para lhe pegar no rosto branco e lhe beijar a boca muito vermelha. Se me rejeitasse, ninguém veria e, de qualquer modo, não poderia fugir-me depressa. Mas ela não quis fugir. Esse beijo surge-me hoje associado à poderosa sensação de dominar as ondas sobre uma prancha de surf. Ou à descoberta das cores e das luzes, deitado sobre as rochas, com papel e canetas de cor.
Fugi da ilha para experimentar as guerras da vida adulta. Queria ser artista, acabei a desenhar anúncios de cerveja. Nem sequer gosto de cerveja. Consolava-me a ideia de que a arte se transformara, também ela, num eficaz anúncio de cerveja para consumo de pretensas elites. Recordo a inauguração de uma exposição antológica de um afamado artista norte-americano cuja principal peça era um automóvel espatifado, com manchas de tinta vermelhas e negras sobre a carroçaria ferrugenta. As autoridades políticas e culturais rodeavam reverencialmente a obra, e nisto ouviu-se a voz de uma desassombrada senhora das Letras, comentando para o marido: “Olha, Alberto, quando o nosso carro ficar velho tornamo-nos escultores”. Gerou-se um burburinho de desdém; chocados, os bem-pensantes decretavam a ignorância da consagrada senhora em relação à arte contemporânea. Aquele automóvel esfrangalhado era uma obra de arte porque estava assinado por um grande artista. O império das marcas e das assinaturas: quem não lhe prestar vassalagem passa à categoria de campesino analfabeto. Fixei este momento como uma porta de acesso à libertação. À força de atravessar galerias cheias dos mesmos ecrãs com as mesmas imagens de figuras absortas em si mesmas, ou reflectindo-se em pedaços de espelhos, ou escrevendo frases em inglês, à força de ver as mesmas manchas de tinta repetidas de tela para tela, branco sobre bege ou preto rodeado de castanho ou pinceladas de cores variadas em puzzles intermutáveis, desisti de pintar. Eu era um figurativo, e garantiam-me que a figuração era um sintoma de falta de imaginação, uma coisa injustificável depois da aparição da fotografia. Os romancistas não perderam o direito à narrativa realista por causa da invenção do cinema; o adjectivo “cinematográfico” aplica-se a obras literárias como selo de valorização, o que não deixa de me parecer estranho. Mas enfim: pelo menos ninguém diz que só os asnos se entretém a descrever personagens depois do advento do cinema.
O meu pecado maior é que, além de figurativo, sou paisagista; culpa da ilha e da sua arrasadora beleza. Tenho vontade de fixar e eternizar cada mudança de luz sobre o casario e os prados, cada movimento das águas do mar. Esta vontade está fora de moda; o amor pela beleza natural é olhado com desconfiança.
— Vicente. És o Vicente, não és? Não te lembras de mim?
Quem será esta mulher redonda e sorridente, com um rosto de queijo fresco mirrado pelo sol, que me interpela?
— Disseram-me que tinhas voltado. Não mudaste muito.
Caridosa. Parti da ilha aos dezoito anos e nunca mais voltei. A cabeleira castanha e farta que então tinha é agora uma careca rodeada de alguns cabelos brancos. Atrás dos óculos da mulher sorridente encontro uns olhos transparentes muito familiares. Mas não chego a adivinhar a garota dentro deles.
— Sou a Céu. Estou assim tão velha?
Minto-lhe. A Céu que eu beijei aos doze anos, a Céu que me deu a conhecer a alegria e o pavor da paixão. Casou, empregou-se num hotel, o marido emigrou para a Suíça, deixou-a com um filho, fez-se taxista em Genebra, arranjou outra, ela voltou a casar
— Enfim, mais ou menos, porque não me cheguei a divorciar, ele nem disso quis tratar, nunca mais o vi e agora faz bordados para vender, como a mãe dela fazia.
— Mas estou bem. Estou muito bem.
Nunca saiu da ilha, a Céu. Ou melhor, foi algumas vezes ao Porto Santo.
— Conta-me como é Lisboa.
Digo-lhe que é igual ao que se vê na televisão, mas ela argumenta que cada um tem a sua visão, uma cidade tão grande não pode ser a mesma para todas as pessoas. A Céu nunca foi destituída de cabeça.
— Lisboa é apressada, barulhenta, fútil e triste.
Sei que sou injusto, procurando ser generoso; quero que a Céu da minha infância não tenha pena do mundo que não conhece. Mas a verdade é que esta descrição da capital corresponde à imagem da última mulher que amei.
— Voltaste com um desgosto, já percebi. Deixa, isso passa. O amor não pode ser um castigo, não vale a pena.
Que conversa para se ter à porta de uma mercearia. Mas não posso convidar a Céu para tomar um café; não ficaria bem. Sobretudo, não quero equívocos. Caminhamos até à padaria, que agora se chama “boutique do pão”. As pompas da globalização não poupam nenhum recanto do mundo. Aposto que numa próxima esquina encontrarei um restaurante “gourmet”.
— Estás na casa da tua mãe?
— Sim, estou na casa do meu pai.
A Céu finge não ter ouvido a resposta divisionista. As suas mãos acariciando-me o cabelo, o meu rosto escondido no seu ombro, quando me disseram que a minha mãe tinha morrido.
— Cabra, cabra, cabra, como é que ela pôde fazer-me uma coisa destas?
Essas mãos de menina estão agora gretadas, os dedos grossos e ásperos de lavrar, lavar, bordar. Pergunta-me:
— Vieste para ficar?
Encolho os ombros; não sei nem quero saber o que é “ficar”. A Sílvia dizia que queria ficar comigo até que fôssemos os dois velhinhos, imaginava-nos aqui na ilha, de mãos dadas, à espera da morte, e eu arrepiava-me. Respondo que vim para pintar.
— Fazes bem. Sempre foi esse o teu sonho. A casa deve estar a precisar de uma boa barrela. Aqueles hippies alemães que lá viveram não eram muito dados à limpeza. Já tens alguém? A minha irmã mora ali perto e pode fazer-te a limpeza.
Nos meios pequenos a vida individual é escrutinada, mas o dia-a-dia é facilitado pela rede da vizinhança. Em casa da irmã da Céu encontrei também a sua mãe. Lembrava-me do modo como, apesar de analfabeta, ela nos contava as peripécias de todos os episódios das séries da BBC, com grande pormenor. Um dia perguntei-lhe como conseguia perceber tudo, se os actores falavam inglês e ela não sabia ler as legendas.
— Tiro pelo sentido. Pelas caras deles. E já vou apanhando uma frase ou outra. O inglês apanha-se bem.
Continuava a apanhar bem as coisas, ao primeiro olhar. O olhar é o último reduto da juventude. A testa alta está sulcada de rugas, os cabelos brancos tornam-se fios de prata quando tocados pelo sol. Os rostos que em Lisboa me pareciam todos iguais adquirem aqui a singularidade que só a demora pode conceder às pessoas. Não me recordava de tamanho sossego –talvez porque só o turista que por enquanto eu sou nesta terra onde nasci possa experimentar a tranquilidade. Enquanto fala comigo, a mãe de Céu não para de trabalhar na blusa que borda– as encomendas crescem, o bordado manual é lento, muitas vezes há que trabalhar pela noite fora. As hortas pujantes que rodeiam o casario significam também muitas horas de costas curvadas, a lavrar, a regar, a semear e a colher. O campo só é tranquilo para os ricos. Sorrio: aqui, pelo menos, serei rico. Quando em Lisboa todos se degradam no empobrecimento –porque a pobreza súbita degrada, injecta-nos a ferocidade da sobrevivência– eu regresso à ilha como um senhor de posses. Aqui não tenho que pagar casa, a alimentação é muito mais barata, os entretenimentos são escassos, os templos do consumo ficam longe. As tentações não me afastarão da pintura. Trouxe tintas, telas e, acima de tudo, aquela inocência que resiste a todas as ironias e sarcasmos urbanos, e sem a qual nada se faz. Vou finalmente deixar em paz os meus eus-alternativos, esquecê-los, afastar-me da inveja que tanto e tão estupidamente me fez sofrer. A mãe de Céu compreende tudo isto sem que eu diga uma palavra:
— Bem-vindo, Vicente. Aqui vais encontrar o que andaste a procurar por esse mundo, meu filho.
Durmo na cama onde os meus pais me fizeram. Cesarina, a irmã de Céu, limpou a casa, acendeu a salamandra, deixou-me sopa , pão, lombo de porco. Sonho com a minha mãe; é uma sereia que canta sobre um rochedo, no meio do mar, para uma audiência de peixes prateados. Sonho também com o meu maior amigo de juventude –talvez o único grande amigo que tive. Aproxima-se de mim com uma faca enorme na mão, avisa-me de que me vai arrancar o coração.
— Traidor. Não vales nada. És um traidor.
Estas palavras acompanharam-me a vida inteira. Tive culpa de que a namorada dele se apaixonasse por mim? Eu nem sequer gostava particularmente dela, não fiz nada para a conquistar. Ela é que me procurou. As coisas aconteciam-me sem que eu as provocasse. Por onde andará agora o João? O tempo é uma medida do espírito, não dos dias que passam. Nunca mais quis ser amigo de ninguém, para não voltar a sentir o gume daquela palavra:
— Traidor.
A palavra “amigo”, de resto, tem hoje demasiadas vezes uma conotação sarcástica: dizemos que o ministro tal se rodeia «de amigos» ou que fulano conseguiu ascender por causa dos amigos –e eis a amizade transformada numa empresa de interesses e favores. Os amigos partilham interesses e fazem favores, sim –mas os interesses e os favores não podem ser os andaimes dessa obra de arte que é amizade. Dispensei-a, para fugir à inevitável descoberta da minha condição de medíocre. Seria capaz de rejeitar a paixão da mulher de um amigo? Seria capaz de o defender contra tudo e contra todos? Temi que não; senti-me sempre incapaz de me defender a mim mesmo. Também nunca encontrei quem verdadeiramente ficasse do meu lado –a não ser, temporariamente, as mulheres. Dir-me-ão que é a arcaica questão da reciprocidade: quem não dá, não recebe. Posso apenas afirmar que não é isso que tenho visto; vejo que os que mais dão são utilizados pelos outros até ao tutano, e largados na berma da estrada quando deixam de ter algo para oferecer. Se eu acreditasse numa qualquer transcendência, poderia pensar que a compensação virá numa vida póstuma. Mas nenhum anjo veio sussurrar-me essa possibilidade. Só a minha ilha promete algo de semelhante a essa redenção. No entanto, ouço ainda o ódio na voz do meu primeiro e único amigo:
— Traidor.
O pintor e poeta William Blake dizia que é mais fácil perdoar a um inimigo do que a um amigo. É verdade, mas que podia eu ter feito para impedir aquela rapariga de pensar que gostava de mim? O amor não trai: aparece, desaparece, é uma estrela cadente, matéria de fogo destinada à incineração. Eu pensava que a amizade seria mais importante do que o ilusório amor. Acredito ainda que um amor se substitui com mais facilidade do que um amigo, porque a pele tem pior memória do que o coração. Deixarmos de ser desejados faz doer o corpo e o ego que construímos para o proteger; mas deixarmos de ser amados é cair aos trambolhões dentro de tudo o que somos. Foi assim que me senti quando o João desapareceu dos meus dias. Os últimos meses em São Vicente foram de dolorosa solidão. Aprendi a fazer do isolamento o meu maior amigo; creio que nisso consiste aquilo a que chamamos maturidade.
O conceito de maturidade é muito conveniente, sobretudo quando outros conceitos menos metafóricos, como o de juventude, começam a desmoronar-se diante do espelho. Aos quarenta anos comecei a dedicar-me a exercícios estatísticos sobre a maturidade, e os resultados têm sido, para dizer a verdade, desanimadores. De Mozart (que aos cinco anos já tinha composições completas e aos trinta e cinco, com uma obra vasta, estava morto e enterrado) a Musil (que morreu aos sessenta e dois anos sem conseguir concluir a obra magistral a que dedicou a vida, O Homem sem Qualidades), há toda a espécie de variações. Dir-se-á que o génio é filho da arbitrariedade, ou, de forma mais suave, que é uma “puberdade repetida”, como dizia Goethe ( que conseguiu viver de puberdade repetida em repetida puberdade até aos 83 anos –morreu a escrever versos a uma menina de 19 anos–, e isto no século XIX, onde um velho de 80 anos era uma peça museológica rara). Porém, se olharmos com atenção, a vida real não é muito distinta da vida genial. Com mais ou menos profundidade, anestesia ou dor, a busca da maturidade é a busca da redenção do tempo.
Nunca como hoje conseguimos encontrar velhos de trinta anos e jovens de setenta, nunca como hoje aprendemos a jogar (se assim o desejarmos) à maturação ou à imaturidade. Penso em Van Gogh, o artista que mais me inspira, que se suicidou aos 37 anos. Pintou a história da sua conturbada e feroz amizade por Gauguin em duas cadeiras vazias: a sua, sem braços, espartana; a do amigo, com braços e assento estofado.
Basto-me a mim mesmo; pinto continuamente. Pinto árvores, pedras, flores, sapatos desemparelhados, marcas humanas que contaminam a paisagem –e atrás da vegetação e dos objectos que pinto começam a surgir-me, como fantasmas, os rostos e os movimentos das pessoas. Numa noite de tempestade perdida na minha infância, o meu pai regressava de uma noite de copos e escapou por um triz de ser assassinado por um relâmpago, que caiu sobre uma árvore de fogo, diante de si. Pelo menos era o que ele contava. A partir de então, deu em enumerar milagres como quem faz contas de mercearia; tornou-se tão beato que a minha mãe dizia que sentia um rasto de incenso quando se aproximava dele. Na cama, a beatice esfumava-se-lhe num instante –valia-lhe isso. Mas tinha saudades do cheiro a coragem que se desprendia desse homem que lhe mudara a vida –um cheiro másculo que lhe excitava aquela parte da alma que caminha mais encostada à pele. Duvido que haja outra: uma alma desligada dos apetites carnais, flutuando pela tralha interior de cada um como um anjo cumpridor e controleiro. A alma é uma coisa suja de sangue e memórias, uma matéria que a idade torna cada vez mais pesada, como o estômago ou as pernas. É a minha alma perdida que vou desenhando com as cores da terra. A minha vida deixou de ser acolchoada como um caixão.
Começo enfim a perdoar o desaparecimento da minha mãe. Por causa dela, fugi da ideia de descendência; por causa dela, escapei à tentação do grande amor. Fiz dela, afinal, o meu biombo, a minha desculpa para permanecer no território limitado e irresponsável da infância. Escolhi esconder-me atrás dela, circundá-la e amaldiçoá-la como uma ilha portátil. No regresso à ilha descubro a força da existência que vivi em cauteloso esboço. Nunca fiz nada de definitivo –e que importa isso?
— Estuda, menino, estuda bastante para não ficares acorrentado à ilha.
Nunca esqueci estas palavras da minha mãe. Ganhei interesse pelos estudos, pelos livros onde os sonhos adquiriam a espessura dos corpos e depois a uma Mariana dez anos mais velha do que eu que, como a minha mãe, estudara música e tocava violino numa orquestra. Dizia-me que encontrara em mim a sua alma gémea, e o rapazinho que eu era caiu nessa vaidade. Porém, na véspera da passagem de ano, confessou-me que não podia festejar comigo porque já era casada e tinha uma filha. Estava nu e transpirado nos braços dela, numa casa que pensava dela e afinal era emprestada por uma amiga. Enquanto procurava a roupa, de cócoras, no chão, jurei que nunca mais passaria por uma humilhação semelhante. Deambulei até ao nascer do sol pelas ruas desertas da cidade, embriagando-me de prédios e progressos avassaladores, determinado a nunca mais acreditar em nada nem em ninguém. Creio que por isso tive tanto sucesso na publicidade; tornei-me o cínico mais festivo do mercado.
Claro que a vida não se compadece com a organização de uma prancha de desenho; na realidade, o amor não me passou tão depressa quanto a fúria: agarrava-me àquela melodia da alma gémea que me circulava no corpo como uma orquestra fantasma. Servi-me do prazer que Mariana me revelara para a alfabetização erótica de um exército de jovens estudantes, que namorava em estereofonia. Habituei-me a racionar o pensamento na mesma medida em que gastava o corpo. O hábito de transformar os sentimentos em pura ginástica e os sonhos em metas concretas –um bom salário, um bom automóvel, uma boa casa– tornou-me um homem eficaz e independente. Nunca mais fui infeliz –nem, como é evidente, feliz. Era (e ainda sou) capaz de discursar brilhantemente sobre a armadilha da felicidade e o seu percurso irremediável em direcção ao beco do tédio.
Não dou pela passagem do tempo; nenhuma hora é igual à outra, neste mundo de luz e sombras que nasce dos meus dedos. A minha atenção concentra-se nas mudanças mínimas das pétalas, das folhas, das ondas do mar. As telas aumentam de dimensão para fixar os pormenores invisíveis; os meus desenhos passam de hiper-realistas a abstractos. Pinto como se deitasse toda a natureza numa lamela de microscópio. A Céu vem, orgulhosa, mostrar ao filho o amigo pintor. A Cesarina trata-me da casa e da comida. O João que me definiu como traidor faz agora, praticamente sozinho, uma rádio local. Convidou-me para uma entrevista onde me apresentou aos ouvintes como o seu grande amigo de infância. Casou-se com a rapariga que estava apaixonada por mim, e que morreu há dois anos, de cancro. Não teve filhos, e tem pena disso. Mostra fotografias dos sobrinhos com um orgulho de pai. Creio que hoje agradeceria que eu lhe tivesse roubado efectivamente a que viria a ser sua cônjuge. Entre duas cervejas, ainda procurei justificar-me:
— João, sabes que nunca houve nada de, digamos, bíblico, entre mim e a…
Nem me deixou terminar.
— E o que é que isso interessa agora, pá? Éramos miúdos, já passou.
Como um miúdo, enfio a cabeça debaixo dos cobertores nas noites de trovoada. Desligo luzes e telefone, com um pânico que não consigo controlar.
— Mariquinhas pé de salsa.
Isto era o meu pai, antes da epifania do relâmpago. A minha mãe cantava-me baixinho para enxotar o medo. Agora, canto para mim mesmo, de olhos fechados.
Mas eis que alguém bate à porta, no meio dos trovões. Escondo-me mais fundo nos cobertores. Insistem. Não espero ninguém. Não quero que me vejam assim, lívido de pavor. Os artistas não têm medo de nada, não é assim?
— Vicente! Sei que estás aí! Não tenhas medo, abre!
É a voz da minha mãe. Serão os relâmpagos, afinal, naves espaciais vindas do planeta dos mortos? A chuva parece disposta a apagar a ilha do mapa.
— Vicente! Abre a porta à tua mãe!
Provavelmente morrera sem me dar conta, e estava a entrar no tal mundo das almas em que nunca acreditara. Para ter a certeza disso, acabei por me decidir a abrir a porta. A alma da minha mãe tiritava, com uma gabardina encharcada sobre os cabelos brancos, longos e ensopados. Estava magra, curvada, enrugada –só os olhos de um imenso azul permaneciam os mesmos, terrivelmente jovens. Trazia na mão anquilosada uma pequena mala de viagem.
— Deixa-me mudar de roupa para te poder abraçar. Não quero que te constipes.
Enquanto o fantasma da minha mãe entra na casa-de-banho, espanto-me com a extraordinária semelhança entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Este espanto liberta-me por uns minutos ( ainda haverá minutos?) do pavor da trovoada.
— Toca-me.
A minha mãe estende-me o braço mole, engelhado. Veste um pijama de flanela azul.
— Toca-me, filho.
Acaricio-lhe os dedos anquilosados, ainda cheios de anéis. Depois abraço-a longamente. Cheira à minha mãe nova, à mulher que passava horas a pentear os cabelos de ouro.
— Onde estiveste?
Esta é uma pergunta de mãe, e faço-a com a voz ofendida que as mães usam quando interrogam deste modo os filhos adolescentes.
— Estive na paisagem. Não era assim que costumavas responder-me?
Sorri e explica-me que fugiu num iate de cruzeiros; ofereceu-se para cantar a troco de comida até chegar a Lisboa.
— Tinha medo de morrer. Morta também não te serviria de muito, pois não?
Diz-me que pensou chamar-me, mas não conseguiu. Pensou que um rapaz precisaria mais do pai. Pensou que não seria justo privar o meu pai de mim.
— Ele não tinha mais nada, compreendes?
E que tinha ela? A música, responde-me. Fervo de ciúmes, não sei se da música se da sombra de um homem anónimo. Era tão devastadoramente bela, a minha mãe.
— Não te vi envelhecer.
— Eu sei.
— E, mesmo assim, envelheceste.
É uma frase de vingança, mas ela responde com a maior das suavidades.
— Eu sei, Vicente.
— Ficaste sozinha?
— Não. Tinha-te a ti.
— Julgava-te morta. Disseram-me que tinhas morrido.
— Mas eu sabia que estavas vivo.
— Vinguei-me. Não amei ninguém.
— Não mintas. O amor não se decide.
— Decidi não ter filhos.
— Só as mulheres podem tomar essas decisões, como sabes.
— Porque voltaste agora?
— Voltei há muitos anos. Esperei que tu voltasses. Fiquei no Funchal. Não me pareceu que aqui me recebessem bem. Fui tomar conta de uma senhora de idade, que me deixou a casa quando morreu.
— Voltei há já quase um ano.
— Eu sei. Não sabia se irias ficar. Não podia vir perturbar a tua decisão.
— Podias ter morrido, nessa espera.
— Podemos morrer a qualquer instante, meu filho.
— É fácil chegares quase quarenta anos depois e dizeres: meu filho.
— É fácil porque nunca deixaste de ser o meu filho.
— Todos os meus amigos tinham uma mãe que os chamava ao fim do dia.
— Nenhuma mãe é igual à outra. Cada um é o que pode ser.
— Palavras. Tretas.
— Tens o direito de me mandar embora. Queres que eu me vá embora?
— No meio desta tempestade, não.
— Já não tens medo das tempestades.
— Tenho sim, pavor.
— No entanto, ela aí está, e não a ouves.
— Porque estou a ouvir-te a ti.
— Então, ainda bem que vim. De qualquer modo, não há razão para temer as tempestades.
— A razão não é tudo.
— Queres leite quente com canela antes de dormires?
— Quero. Há quarenta anos que quero.
— Falas dos anos como se fosses mais velho do que eu.
— Já não tens medo de ser mal recebida aqui na vila?
— Se ficar contigo, não tenho medo de nada.
— Vieste para que eu tome conta de ti?
— Não. Vim apenas para estar contigo. Não vou morrer ainda.
— Como sabes isso?
— Não se morre quando se está inteiramente feliz. A não ser que se morra de repente. Nesse caso, não te darei trabalho.
— Que sabes tu da felicidade?
— O mesmo que tu. O mesmo que todas as pessoas que se cansaram de a procurar.
— Eu nem tentei. Nunca acreditei na possibilidade de ser feliz.
— Tanto faz. Não é uma questão de procura, apenas de atenção. A atenção demora. Vivemos desconcentrados.
— Foste feliz, tu?
— Aprendi a ser. Sou feliz, agora.
— Porque o pai morreu?
— A felicidade é uma escolha individual. Fiquei triste quando o teu pai morreu, evidentemente.
— Eu odiava a mulher dele.
— Ela não tinha culpa.
— Já falámos mais hoje do que durante toda a vida. Estou cansado.
— Vai para a cama, eu levo-te o leite.
— E cantas-me?
— Canto, claro. Nunca deixei de cantar para ti. Nunca cantei para mais ninguém.
Cerrei os dentes para não lhe responder que estava a mentir-me. A Sílvia costumava dizer que o mundo seria muito melhor se travássemos as palavras da dor. A Sílvia cantava para eu adormecer. Não tinha voz e, ainda assim, cantava. A tempestade desaparecera. Todo o vale ficou em silêncio, aguardando a canção de embalar da minha mãe, regressada do mar.