Gonçalo M. Tavares – A queda

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO1

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RAÚL VALERIO. Serie Fadistas. Lucilia do Carmo. 2010.

GONÇALO M. TAVARES

A QUEDA

(Luanda, Angola, 1970), escritor português, com uma obra múltipla que abrange a poesia, a literatura infantil, o teatro e o ensaio. Como narrador, o seu romance Jerusalém, 2004 (tradução espanhola de 2009), obteve o Prémio Ler/Millenium BCP, o Prémio José Saramago e o Prémio Portugal Telecom, neste último caso atribuído no Brasil. A sua obra, muito diversa e agrupada de uma forma original, está a ser traduzida e publicada em 25 países.

Num certo sentido isto: assumir que a energia da gravidade é coisa para alimentar os cães, se necessário – dá comida ao mundo essa energia gravítica, como se os abutres fossemos todos nós e quando um homem cai rapidamente acudíssemos a essa queda e devorássemos a energia que fica em redor de um corpo caído, destroçado, feito em fanicos; a questão não é tanto a carne do morto, isso não interessa aos abutres que somos, o que importa é outra coisa, são os restos que estão à volta, esses restos que debicamos como se fossemos animais, esse restos invisíveis que nós e os nossos cães vamos comer ou beber, ou simplesmente aspirar como se a energia fosse uma coisa material e não uma invenção da cabeça; sim, eis o belo mundo em que poderemos crescer mais fortes, o mundo em que a cidade se alimenta da queda, das várias quedas, das quedas de um objecto, de um vaso de uma senhora distraída que com o cotovelo o faz cair, dessa queda, sim, vem energia - mas em bem maior quantidade a cidade alimenta-se da queda de corpos humanos: a queda que pode fazer cair a massa em cima da água, suicídios nas pontes dão uma energia intensa, energia que activa o comércio do centro, que faz mexer as pessoas como se as pessoas tivessem uma pequena roldana que as accionasse e assim a velocidade aumenta: a pressa que vemos subitamente em rostos mais ou menos alvoraçados teve origem bem lá ao fundo, na forma brutal e invulgar como o corpo do suicida estalou na água. Queda, portanto; a queda como a energia que substitui o petróleo e substitui todas as outras fontes naturais, a cidade mantém-se em movimento, as casas mantém a luz, a electricidade não vai abaixo porque de quando em quando há um corpo que cai; um belo corpo humano em queda desde o 60º andar, ou desde o quinto andar, quanto mais alto, claro, quanto maior o percurso da queda, mais energia gravítica é libertada e os homens que salvam são os homens que mais roubam a energia do morto, não propriamente os homens que salvam pois a queda só liberta energia quando é uma queda mortal portanto os homens não salvam, quando muito acodem à queda, aproximam-se abutres com técnicas de socorro e fingem uma última tentativa de salvamento quando afinal estão a parasitar aquela queda que não é a deles, a parasitar a energia da gravidade que o corpo desfeito já não precisa – porque certamente há muitas ciências e uma delas poderia pensar na diferença da queda de um corpo morto e de um corpo vivo. É como se no corpo morto não fosse já a terra que puxa, mas o corpo que cai, trata-se de uma passividade, o corpo morto, e ninguém faz força contra quem não reage, a terra é assim, não é diferente de um homem médio corajoso, pois então se não lutas eu também não, o corpo morto cai e a sua queda, mesmo que do alto de sessenta andares liberta energia, sim, e muita e importante, mas acredita-se que a queda de um corpo vivo é sempre mais forte, mais poderosa, mais generosa – oferece mais à cidade. A isso se chamaria sacrifício se vivêssemos noutros tempos, mas assim está bem, e os homens que recolhem o lixo são agora acompanhados pelos homens que recolhem as quedas, que recolhem em parte os corpos mortos – mas isso por vezes é tarefa que fica para os homens que recolhem o lixo e recolhem os corpos mortos como recolhem o lixo, talvez os atirem para um outro lado da camioneta higiénica mas são eles que têm essa função, por isso aqui vai ao lado deste grupo os homens que recolhem a queda, não os corpos que caíram, recolhem a queda como se esta fosse elemento com átomos, um elemento com substância, mas a queda não é isso, a queda é uma sensação que é recolhida, isso mesmo: os homens que recolham a queda recolhem uma sensação, tentam absorver uma sensação como por exemplo um fato absorve água e a faz desaparecer como se a certa altura não existisse fato e água, mas simplesmente um fato húmido, eis o que procuram os que recolhem a queda e levam a energia que se libertou na queda de um corpo sólido para a sua velhinha mãe que está a morrer, ou para os seus filhotes para que cresçam grandes e fortes, e a vida de certa maneira é isto: há sempre um certo egoísmo neste prazer que vem da queda dos outros, uma recolha, um sugar da energia que o corpo em queda tinha antes de cair, e essa energia é oferecida por vezes no natal, como prenda, não é embrulhada porque não tem volume ou comprimento, mas sim, a coisa é roubada do solo como outros homens mais materiais roubam carteiras e o produto do roubo é mais tarde colocado em cima da mesa do jantar de família. Roubei a energia gravítica de uma queda e aqui estou eu a trazer o esforço do meu dia para a mesa da família. Vamos comemorar e temos ainda energia suficiente para dançar, sim, eis como aconteceu um certo dia: as quedas tornaram-se indispensáveis: um empurra o outro para que a cidade não pare. De certa maneira é isto: trata-se de uma bicicleta que suporta todo o movimento da cidade – a bicicleta está em baixo e há um ciclista que pedala com a força que tem e essa força vai se esgotando e só não se esgota se de vez em quando existirem quedas, alguém que cai, portanto tens de cair, tu que és meu vizinho e não tens crianças, ninguém precisa objectivamente de ti e por isso te convido ofereço-te um chá, convido-te para veres a cidade da minha varanda alta, como daqui se tem uma vista do mundo, pelo menos do mundo que conhecemos, que bela vista, e sim quando o homem ao meu lado respira esse ar das alturas que quem sobe montanhas diz que faz tão bem e que permite a imortalidade, é nesse preciso momento em que um homem sonha com a imortalidade, ou pelo menos pensa que a cheira, que o outro o empurra dali abaixo para um queda de catorze andares, queda nada impressionante mas suficiente para libertar energia gravítica, energia que permite ao ciclista profissional que pedala debaixo da cidade e que com essa pedalada possibilita que o comércio prossiga, que as pessoas comprem e vendam de acordo com os seus interesses, esse ciclista absorve agradecido as quedas e a energia que lhe oferecem como na malga do cão, o ciclista profissional dobra-se e come ou bebe ou aspira, de qualquer maneira recebe a energia que a cidade tão amiga lhe tem para oferecer – e, sim, reparem é ela que pedala debaixo da cidade e com a sua energia impede que a cidade se torne má e caótica e distribua muitos dói-dóis mortais pelo seu vasto espaço, vasto mundo.