Fernando Cabrals Martins – Diário de Lisboa

Fundación Ortega MuñozNarrativa, SO7

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FERNANDO CABRAL MARTINS

DIÁRIO DE LISBOA

Il ya en moi quelque chose d’affreux qui monte et
qui ne vient pas de moi, mais des ténèbres que j’ai
en moi, là où l’âme de l’homme ne sait pas où le Je
commence et où il finit.
Antonin Artaud

1 de Janeiro de 2013


Passou o tempo.
Não posso deixar de contar isto.
O meu filho passou a andar por fora de casa e não me diz nada de nada.
Não sou capaz de trabalhar, atirado a esmo para distracções e cultivando as falhas de memória, que pode ser uma boa via quando se desiste, mas antes traz inquietação e muito tempo perdido.
Não gosto de me ver ao espelho.
Quando falo acho estranho o som da minha voz, como se fosse a voz de outro, ou como se entre mim e a minha voz tivesse aparecido um espaço em branco. A consciência do som da minha voz, que é a consciência do meu corpo a actuar, impede-me de pensar bem naquilo que digo. Calo-me, portanto, como num certo filme de Bergman. Ou falo
como quem empurra um rochedo pela encosta acima.
Ora isto é um problema, dando-se o caso de eu ser professor.
As minhas memórias não me agradam.
Não tenho nada de grande nem de belo que possa contar.
Só tenho coisas verdadeiras, isto é, deprimentes.
Tudo porque tinha tanto amor para dar e não mo quiseram. Tinha tantas palavras para dizer e não mas quiseram ouvir. Queria tanto estar com os outros e voltaram-me as costas.
Ou, mais simplesmente, a preguiça. Não fui capaz de fazer nada.
Agora que sei que é tarde, o melhor é apagar da memória o que acabo de escrever.
Se calhar é toda a gente assim.


3 de Janeiro de 2013

Quem é ?
- José de Mamede.
O que é a arte para si?
- Um dom uma paixão uma beleza que se transmite.
O que o leva a criar?
- Necessidade e por gosto.
O que o inspira?
- A beleza em tudo o que nos rodeia e que nos traz na vida.
Como se sente ao criar?
- Paz e orgulho.
O que espera quando um público vê as suas obras, o que sente?
- Espero que admirem, gostem e que dêem valor às obras e isso faz-me feliz.
Qual a obra que mais o marcou e porquê?
- La Petite Danseuse, representa uma figura com um olhar que transmite vida e sabedoria.
Quais os pontos altos da sua experiência como artista plástico?
- Exposição Colectiva no Novotel em Lisboa.
Quais os planos futuros?
- Aperfeiçoar as técnicas da pintura, continuar a expor as minhas obras e criar novos projetos de pintura que demonstrem o realismo na pintura.
Que conselhos dá a quem está a começar?
- Ter confiança, paciência, tentar e nunca desistir.

4 de Janeiro de 2013

O coração não aprende nada. Na cabeça percebo tudo, mas no coração continua sempre a rodar a mesma melodia repetitiva em que uma frase absurda se vai fazendo ouvir.
Estou doente.
Na cabeça vejo claramente o afastamento do outro, o facto de o outro se ter desligado, porque a ligação não era forte ou porque o vento a fez cair. Até nem custa muito a perceber as razões por onde passaram os gestos que criaram a distância. É sempre muito claro, muito compreensível. E radical, sem retorno, sem recurso e sem tempo. Mas no centro do imaginar, no côncavo do sonho, as figuras de outro tempo e de outra lógica continuam o seu percurso de luzes eléctricas e nuvens pintadas.
Bem, como Goethe explicava a Eckermann: o amor não tem nada a ver com a Inteligência, não é a inteligência quem ama, ainda que a inteligência…
Inteligência – meu Deus, que inteligência? Quando a pele é riscada por uma lâmina, quando o olhar é vidrado por dentro na fantasia infantil, quando os sinos dobram pela morte de quem tu amas, que é mais tu do que tu és, onde pode estar colocada a inteligência, e, já agora, a caridade?
O meu coração não é um solitário caçador.

7 de Janeiro de 2013

A consulta de certos sites é absorvente e constitui uma aventura em si mesma. A internet tem-nos, não somos nós quem a tem. Nós, os pequenos autores-leitores, somos o seu conteúdo. Ela é a nossa forma. Estamos resolvidos num conjunto de relações e esse conjunto é que somos “nós”.
É preciso, pois, procurar temas que existam fora do toda a ocupação digital. Talvez a fotografia esteja bem como tema.
A literatura, deixar.
A doença limita os meus dias. Escrever, como agora, faz-me doer o pescoço. Comer faz-me doer os braços (se a perspectiva de mastigar for suportável). Cada passagem de um dia é uma perda de tempo e um ganho precioso. A minha doença não tem sintomas, mas não é virtual, está apenas escondida. O que está escondido não é imaginário,
mas aproxima-se de o ser por revestir uma das suas características principais, que é a de não se ver. De resto, o imaginário é ainda mais real do que a minha doença escondida, porque o imaginário pode ser transformado em imagem, e a minha doença é apenas um resultado positivo com um valor expresso de milhões de unidades.

10 de Janeiro de 2013

As fotos do casal foram tiradas com um ano de diferença. A primeira é de janeiro de 2007, quando Vanessa estava grávida do seu filho Jax. A segunda foi captada  Exatamente um ano depois, quando Melanie carregava no ventre a filha Ero.
“O corpo da mulher é incrível. A forma como cria e cresce outro ser humano é incrível. Esperamos que a nossa foto seja esse sinal de que algumas mulheres precisam para serem incentivadas a carregar uma criança”, acrescentou Melanie.

15 de Janeiro de 2013

Vi um bocado de um filme de Clint Eastwood. Nem sequer sabia o título original, a informação do teletexto informava apenas que o realizador era ele próprio. Parecia-me já o ter visto, de tão previsível que era. Mas agradável, claro, e de uma clareza de construção que me fez bem aos olhos durante os poucos minutos em que me mantive naquele
canal. De repente, uma face conhecida, ou que assim me pareceu. Seria um Sean Penn muito novo? No decorrer da sequência, foi a minha preocupação perceber se era ou não Sean Penn quando novo. Não consegui ter a certeza, e depois pareceu-me que não era. Fui verificar, e lá estava o nome do actor, era Chris Penn, o irmão de Sean Penn. Descobri que tinha morrido há poucos anos, gordo e drogado. Mas o que me maravilhou foi ter reconhecido, sem o ter dito com a palavra certa, que era um irmão de Sean Penn, e percebi mais uma vez que as figuras de filmes entram tanto no meu universo afectivo como a minha família ou os meus amigos.

24 de Fevereiro de 2013

Estou fraco, confuso, como tenho andado estes últimos anos, mas com a febre a mais. E vão quase quatro semanas que tenho febre, desde o dia 20 de Janeiro menos do que antes, só à roda de 37 e meio, mas isso chega para me sentir quente, suar. E tenho dores nas costas, na zona sagrada. Não sei o que hei-de fazer. Não sei o que hei-de fazer mais do que já fiz, eu que visitei quatro médicos. A hepatologista, o médico de família, dois urologistas a escolher. E escolhi, um que me pareceu mais preocupado com a minha saúde. Ando a fazer exames que não concluiram ainda nada, mas que não sei se podem ter a ver com a situação antiga. É preciso manter o espírito, a todo o custo. É preciso manter o espírito, a todo o custo.

2 de Março de 2013

O suspeito de violar um homem sem pernas no concelho de Santarém ficou em prisão preventiva. O suspeito, de 40 anos, vizinho da vítima, tinha sido constituído arguido pela GNR, mas não foi detido porque o crime é semipúblico, dependendo da queixa, o que não foi feito na altura.
O crime ocorreu no dia 3 de junho, quando o suspeito entrou em casa do vizinho, que não tem pernas, amputadas devido a problemas de diabetes. O homem foi apanhado, por volta das 22h30, quando uns vizinhos estranharam ver a porta da casa da vítima aberta. Ao local acorreram populares e a irmã da vítima, que apanharam o homem em flagrante, tendo havido altercações e o suspeito acabou por ser agredido e receber assistência no Hospital de Santarém. Segundo fonte da GNR, quando a patrulha chegou ao local deparou-se com um grupo de populares à volta de um homem.

9 de Julho de 2013

Num livro de António Telmo, Gramatica Secreta da Língua Portuguesa, Lisboa, Guimarães Ed., 1981, leio, na página 76, que Sibila de Cumas “conduz o herói pelos Infernos até ao Pai. Estão no ponto central do Y, onde as vias divergem: a da direita dirige-se para o Paraíso; a da esquerda para o reino da treva e da dor. Há correntes esotéricas que situam este ponto no cerebelo”.
Lembro-me também de um título antigo: Viagem ao Mundalucinado deste Agora, de Fernando Batinga. Que terá acontecido a Fernando Batinga? Ponho-o no google. Existe ainda. 
Tenho de pressa de chegar não sei onde. Ou melhor, sei. Ao dia 25, em que ficarei a saber se continuo ou não o tratamento.
O qual é, de facto, uma tortura. A sensação de cansaço que induz parece aparecer por desleixo, como se fôssemos nós que nos deixássemos andar. Mas é ele, a sua acção. Ou não, se calhar nunca mais deixo de ser um calhandreiro preguiçoso e a minha pobre vida vai ficar reduzida a uma pesquisa infinita de sítios porno na internet.
Levanto-me de manhã e dói-me tudo, quero adormecer outra vez para que o tempo passe, mas ele não passa, e eu não adormeço, apenas deslizo com a inclinação que dá não sentir tanta dor.
Olho muito tempo depois para o relógio, só passaram cinco minutos.

20 de Setembro de 2013

Ocorreu-me agora, numa surtida à pornografia domiciliária a que chamamos internet, que estamos a entrar numa época de tédio. O mesmo tédio que iluminou os anos do século XIX em que se geraram as comunicações de massas, bem como a sociedade secreta dos que a recusavam.
Enfim, estou agarrado ao meu destino.
Estou à espera da decrepitude. As coisas que me diziam respeito foram ficando entregues a outros mais competentes.
Sem autoflagelação: sou um homem que procura um amigo como Nietzsche procura Deus.
Ponho-me a trabalhar com a sensação de me acorrentar a um poste.
A cada momento visito blogues, jornais, agito favoritos.
Volto sem fôlego e sem tempo.
Mas a questão é mesmo essa. Perder tempo.
Tédio. Excitação do que não sei o que é. A cara esmagada contra o vidro.

15 de Outubro de 2013

Viver bem.
Tudo se reduz a viver bem.
A única arte é a de escolher viver bem.
À parte isso, dói-me cada músculo, cada centímetro de pele.

10 de Novembro de 2013

Visivelmente aliviado com o regresso de Elisabete à Casa dos Segredos, Bruno não perdeu tempo e passou a noite na cama com a instrutora de zumba. À parte das polémicas e dos insultos feitos pelos outros concorrentes, o novo casal não se coibiu de trocar carícias e chegou mesmo a fazer sexo na cama ao lado de Flávia. Agnes foi das vozes críticas que mais se fez ouvir. Muito amiga de Flávia, a romena não se cansa de reforçar que Bruno “não vale nada como homem” e aconselhou-o a cortar o pénis.

8 de Dezembro de 2013

Assisto à impossibilidade do corpo. O espírito resiste mais às coisas da vida precisamente porque não tem corpo. Já a matéria é frágil. Mas o espírito também deve ser mortal. Depois diz-se assim: é tudo mortal, o próprio universo é mortal. Pode ser que sim, pode ser que não, havemos de voltar a falar sobre issso, mas o que é certo é que não se pode conceber a ausência do que quer que seja, ou, pelo menos, de que qualquer coisa suceda no meio do nada.
No princípio era não ter havido princípio, porque tudo existiu sempre. Uma narrativa infinita, circular, em estrela, em múltiplas linhas paralelas. Ou talvez mais que uma, talvez até uma infinita multiplicidade de narrativas infinitas. O verbo inicial apenas continua uma história. É sempre e apenas o verbo inicial de uma nova história. Um novo capítulo de haver história.
Percebo que o trabalho tem todo de ser mental. Que a força de pensar é a única força. Que a única matéria que resiste são as palavras. Que a única matéria que existe são as palavras.
Resistir à dor, ao incómodo de ter um corpo.

21 de Dezembro de 2013

Estou desesperado, creio que por ter tomado café.
Destaco metáforas, desloco elipses, esmago prosopopeias. Estou perante a minha colecção de experiências do dia, um epítome da minha vida. Estou a tremer.
A minha vida parece ser feita da vida dos outros, as minhas experiências melhores são as que vivi no cinema. E as que ouvi contar, ou as que depreendi das histórias que contam os meus amigos. Mas começo a sentir a depressão provocada pelo peso das experiências dos outros. As minhas quais foram? As que imaginei? As que vivi?
Porque é que recordo tudo tão mal, tão desfeito?
Em breve poderei estar sem fazer nada.
Sem recordar nada.

Algumas imagens persistem sempre, mas alteradas por sinais estranhos, misturadas já de palavras que não dizem nada, ou dizem o contrário.
Procuro encontrar os fios que seguram as imagens, mas sei que imagino metade e que resto já não se vê. O fio fica solto, morto no chão. Perdeu-se.
A única memória fiel é a do corpo, mas está tapada pelo brilho falso do presente.